• Nenhum resultado encontrado

Nosso olhar se volta, então, para a teoria que conduz o processo de análise. E buscamos em “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas” (BAKHTIN 2011[1959-61/1979]) as releituras acerca das relações de

sentido entre os enunciados. Entendemos que, se o sentido se inscreve em vozes discursivas, a linguagem somente tem vida na comunicação dialógica, dito de outra forma, atribuímos sentido somente por meio do outro, precisamos do outro para significar, não há compreensão fora da relação dialógica.

O texto é, para Bakhtin, o ponto de partida para uma pesquisa em ciências humanas, independente de quais sejam os objetivos da pesquisa. A condução da pesquisa se dá nas relações dialógicas entre os textos e no interior de um texto, e sendo cada texto único, individual, o autor lembra que a verdadeira essência do texto se desenvolve na “fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (idem, p. 308 a 311).

No processo de leitura investido por nós nesta pesquisa, tal fronteira se dá entre o querer dizer do sujeito-autor e o vir a ser do sujeito-leitor, entre o projeto discursivo do autor e a atribuição de sentidos pelo leitor. Nesse sentido, Bakhtin defende que:

Ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito (“Du”). Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. (...) Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica (BAKHTIN (2011[1959-61/1979]), p. 316, grifos do autor).

Nessa perspectiva, ao assumirmos a teoria enunciativa discursiva como norteadora de nossas leituras, admitimos, para todas as atividades que envolvem a pesquisa, considerar as relações de alteridade entre sujeitos e, por que não, entre sujeitos e o objeto de pesquisa, pois, quando lemos, não lemos palavras, lemos visões de mundo, pontos de vista.

É preciso considerar, ainda, que o sujeito se constitui pelo olhar do outro, numa relação de alteridade fundante do diálogo, logo, e da mesma forma, a linguagem se constitui e se desenvolve por meio das relações sociais entre os sujeitos. Pensando assim, cabe explanar o papel fundamental do conceito de exotopia para nosso processo de seleção e análise do corpus.

Com base nessa concepção dialógica, em que os discursos estão totalmente povoados de discursos outros, anteriores a ele, e são construídos ainda na previsão de uma réplica vindoura, antecipando-a, podemos inferir que produzimos novos sentidos a partir de nossa visão de mundo, por meio da imersão no espaço do outro, no campo de visão do outro, uma vez que nos constituímos por meio dele. Logo,

temos no movimento exotópico atividade essencial para a produção estética, devido a essas articulações de aproximação e distanciamento entre os olhares. Cada olhar reflete um ponto de vista diferente, único, irrepetível, se revelando diretamente na produção de sentidos.

Duas pessoas podem olhar o mesmo objeto, mas cada um, de seu lugar, sócio-historicamente situado, terá sua apreciação valorativa diferenciada acerca do objeto contemplado. Isso implica acentuações valorativas diferenciadas aos signos ideológicos utilizadas na construção de cada enunciado. O outro dá o acabamento necessário ao eu, por meio do seu excedente de visão, do seu lugar único, situado fora do eu.

O excedente de visão se funda nessa diferença, considerando, no acabamento, as concepções teóricas de cada um. Sendo assim, a exotopia é inerente ao processo de compreensão e, por conseguinte, condição fundamental para a produção do conhecimento em ciências humanas.

O termo exotopia refere-se, especificamente, à criação estética e de pesquisa, ao trabalho do artista ou pesquisador na elaboração de sua obra a partir de análise de um objeto específico.

Do ponto de vista do enunciado, exotopia refere-se ao sentido de se situar em um lugar exterior, em ciências humanas, ao texto do pesquisado e o texto do pesquisador. Para esclarecer, Amorim (2006, p. 102) destaca:

A criação estética ou de pesquisa implica sempre um movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridade para fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dado contexto e os valores que ali afirma. Na pesquisa em ciências humanas, o pesquisador analisa o trabalho de outrem acerca de determinado assunto e tenta perceber o olhar de seu pesquisado sobre aquele determinado objeto, voltando ao seu “lugar exterior” para elaborar o seu texto (criação estética) sobre o que ele conseguiu captar em sua pesquisa. Trata-se então da diferença entre dois olhares, entre dois pontos de vista. Nesse momento, a fim de sintetizar o que vê, o pesquisador utiliza-se de seus valores, suas perspectivas, suas impressões, sua formação, para discorrer acerca do que viu.

Em consonância, em Metodologia das Ciências Humanas, Bakhtin (2011[1974-79]) afirma que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e

falante, cujo sentido e significado é inesgotável, considerando que este ser não

coincide consigo, mas se revela, se constitui no horizonte do outro.

Nesse ensaio, o autor esclarece, ainda, que, ao contrário das ciências exatas – onde o conhecimento é produzido de forma monológica, em que um sujeito contempla uma coisa, emitindo um enunciado sobre ela -, em ciências humanas:

Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2011[1974-79], p. 400).

Nossos estudos nos permitem afirmar que, no processo de leitura, ao tentar alcançar o querer dizer do autor, estamos fazendo um movimento exotópico de tentar enxergar com os olhos do autor, tentar saber o que o autor quis dizer no seu discurso e depois reproduzir, voltar ao nosso ser único, ao nosso lugar situado sócio-historicamente, para tentar reproduzir a partir dos nossos valores o que nós entendemos do querer dizer do autor. Então, o processo de exotopia está diretamente relacionado à atividade de leitura, e, por conseguinte, à pesquisa em ciências humanas.

Nesse viés, considerando a constituição e a evolução da língua/linguagem e do próprio sujeito por meio das relações sociais dialógicas que estes estabelecem em tempos e espaços situados, Bakhtin/Voloshinov (2009[1929], p. 129) propõem uma ordem metodológica para o estudo da língua, definida como método sociológico, o qual é composto de três estágios:

1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições

concretas em que se realiza, isto é, a formação de sentidos a partir do tema e das

esferas de comunicação humana;

2) As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação a interação verbal, ou seja, ao gênero discursivo;

3) O exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual, isto é, a constituição do enunciado concreto.

Para Santos (2011, p. 48), o método sociológico organiza categorias textuais de forma a definir uma ordem de relevância entre elas, a partir da qual, a pesquisadora infere que o discurso é que significa o texto, e não o contrário.

Nessa perspectiva, passamos à análise do corpus selecionado para esta investigação. Já vimos que as vozes representam os sujeitos falantes nos discursos. Falamos, ainda, que essas vozes abarcam visões de mundo, apreciações valorativas, pontos de vista, os quais revelam o lugar em que esses sujeitos se situam. Sabemos também que essas vozes anteriores também estão povoadas de outras vozes e a elas respondem. Nossa empreitada, então, se baseia na investigação desses sujeitos discursivos, dos lugares que habitam, das vozes anteriores a elas, a quem destinam suas falas, por que são elaboradas, que lugares sociais representam. Nosso olhar vai para os discursos que constituem discursos, e não apenas a realidade imediata que os envolvem. Pretendemos, a partir do presente, refletir sobre passado em direção ao futuro.

CAPÍTULO 3

POR UMA ANÁLISE DIALÓGICA DE DISCURSOS

Pretendemos, neste capítulo, evidenciar os diálogos que se estabeleceram entre os discursos selecionados por nós por ocasião da polêmica do Livro Didático “Por uma Vida Melhor” e, ainda, demonstrar como esses discursos são arquitetados, no movimento de refração de discursos anteriores e antecipação de discursos futuros.

Nesta perspectiva, organizamos uma investigação de natureza qualitativa, de cunho documental e bibliográfico, gerando dados por meio de análise de textos que circularam na mídia por ocasião da polêmica do livro didático “Por uma vida melhor”, a fim de, após leitura e seleção do corpus coletado em notícias, artigos e colunas assinadas online, elaborar uma análise de discursos baseada no diálogo entre os sujeitos que se fizeram participantes nessa polêmica, desde o senso comum às colunas mais prestigiadas da mídia.

Para tanto, consideramos os Estudos de Bakhtin e seu Círculo e trabalhos de pesquisadores de sua obra, a partir da concepção dialógica da linguagem, uma vez que, para Bakhtin (1997, p. 108), “a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo”. Logo, consideramos em nossas leituras as relações de alteridade em que são elaborados os discursos, pois entendemos que é por meio das relações comunicativas entre sujeitos que a língua entra na vida, num intenso e cíclico movimento de encontros e desencontros.

Na visão bakhtiniana, isso significa que todo discurso é elaborado a partir de discursos anteriores a ele e, ainda, se constituem na expectativa de uma resposta futura. Logo, o discurso prevê, antecipa suas possíveis respostas, já em sua fase de elaboração (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 89). É preciso destacar ainda o contexto de produção dos discursos, ou seja, o fundo dialógico que o influencia em seu projeto discursivo

Nessa perspectiva, para delimitar o corpus - tendo em vista a vastidão de textos que já havíamos coletado nesses dois anos após o início da discussão acerca do livro didático “Por uma vida melhor” -, iniciamos a leitura atenta de cada um desses textos, com a missão de encontrar fios discursivos que ligassem uns aos

outros, caracterizando as relações dialógicas entre eles, por meio da identificação de semelhanças e diferenças, respostas e contrarrespostas, encontros e desencontros. Sendo assim, selecionamos os textos que melhor evidenciam essas características que desejamos analisar, isto é, os textos em que mais facilmente podemos identificar as vozes, isto é, as reações ao evento, e que melhor evidenciam as suas posições ideológicas expressas por meio de suas formações enunciativas.

Organizamos nosso corpus da seguinte maneira:

NºOrdem Gênero Data de

publicação

Autor/Veículo Título

Texto 1 Notícia 13/05/2011 Redação do Jornal

Nacional/G1

MEC defende que aluno não precisa seguir algumas regras da gramática para falar de forma correta

Texto 2 Artigo assinado

17/05/2011 Alexandre Garcia/G1

Aboliu-se o mérito e agora aprova- se a frase errada para não

constranger Texto 3 Notícia 18/05/2011 Redação do

G1 em

Brasília

MEC não vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad Texto 4 Notícia 31/05/2011 Robson

Bonin, G1 em Brasília

Haddad chama de 'injustiça crassa' críticas a livro didático do MEC Texto 5 Notícia 31/05/2011 Robson

Bonin, G1 em Brasília

Ministro da Educação compara críticas a livro do MEC a fascismo Texto 6 Coluna assinada 17/05/2011 Augusto Nunes/Veja A dona do português Texto 7 Coluna assinada 14/05/2011 Reinaldo Azevedo/Veja

Livro didático faz a apologia do erro: exponho a essência da picaretagem teórica e da malvadeza dessa gente Texto 8 Artigo assinado 18/05/2011 O Estado de S. Paulo/O estadão A pedagogia da ignorância Texto 9 Artigo assinado 20/05/2011 Nathália Goulart/ Veja

As lições do livro que desensina Texto 10 Artigo assinado 20/05/2011 Gaudêncio Torquato/ Estadão A “espertocracia” educacional Texto 11 Coluna assinada 22/05/2011 Augusto Nunes/ Veja

Os aiatolás do idioma insistem na vigarice lucrativa e levam mais um troco do escritor Deonísio da Silva Texto 12 Artigo Assinado 19/05/2011 Carlos Alberto Faraco/ Gazeta do povo Polêmica vazia Texto 13 Artigo Assinado 25/05/2011 Luis Nassif/ Filosomidia

O escândalo do livro que não existia Texto 14 Artigo Assinado 24/05/2011 Cristóvão Tezza/ Gazeta O poder do erro

do povo Texto 15 Artigo

Assinado

29/05/2011 Sérgio Fausto/ Estadão

Educação para o debate Texto 16 Coluna

Assinada

15/05/2011 Reinaldo Azevedo/Veja

Eles odeiam é a civilização! Texto 17 Artigo Assinado 16/05/2011 Hélio Schwartsman/ Folha de S. Paulo

Uma defesa do “erro” de português

Texto 18 Artigo Assinado

23/05/2011 Marcos

Bagno/ O Globo

Outra opinião: uma falsa polêmica

Texto 19 Artigo Assinado

19/05/2011 Ana Cássia Maturano/G1

Opinião: Enquanto escrita exige rigor, linguagem oral é mais solta Nesse processo de seleção de corpus, procuramos evidenciar que os discursos são elaborados sócio-histórica e ideologicamente, circulando de forma ininterrupta nas diversas esferas da comunicação verbal, renovando-se constantemente. A cada novo contexto a acentuação da palavra se modifica, demonstrando sua natureza ideológica, pois sua significação depende do contexto de produção, circulação e recepção.

Temos claro, conforme estudamos capítulo 2 desta investigação, que todo enunciado é dirigido a alguém, a outros enunciados, se posicionando em relação a esses seus outros, na intenção de obter uma resposta que venha a apoiar o discurso corrente.

Torna-se imperioso, ainda, vislumbrarmos os recursos linguísticos utilizados para retomar e antecipar outros discursos, os quais denotam a relação entre os mesmos, evidenciando os posicionamentos ideológicos do sujeito que fala e as representações marcadas pelas vozes discursivas - quem enuncia, de que lugar

enuncia, para quem enuncia - a fim de demonstrar os diálogos nessas construções

enunciativas.

Ao revelarmos tempos, espaços e sujeitos, inevitavelmente trabalharemos os valores atribuídos ao objeto dos discursos e, ainda, os projetos discursivos inseridos em cada enunciado proferido. Considerando que grande parte desses enunciados configuram discursos antagônicos, apontando para índices de valoração, não podemos deixar de utilizar, para tal análise, o conceito de ideologia cunhado pelo Círculo de Bakhtin, ao considerar que sua definição refere-se a toda tomada de posição do homem em face de seus reflexos e interpretações da realidade social.