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Lembremos, como já foi dito, que o princípio da alteridade postula que o sujeito só se define como tal a partir de sua relação social com o outro, isto é, ele age e elabora seus atos em direção ao seu outro, logo, a própria constituição do sujeito é fundada no dialogismo – seu pensamento, sua visão de mundo, sua consciência, ou seja, sua identidade se constitui nas relações dialógicas com o outro.

É também por meio do diálogo que o ser humano adquire a sua linguagem, é no contato com o outro que surgem as primeiras palavras de uma criança e não a partir dos dicionários. Por fim, o sujeito desenvolve sua linguagem, seus atos, seus discursos a partir de seu contato dialógico com o mundo que o cerca, nas relações

sociais que estabelece nas várias esferas em que atua, interagindo com os seus vários outros.

Já discutimos na seção anterior que todo enunciado se constitui numa relação dialógica que prevê, ao menos, dois outros enunciados, dois sujeitos, duas visões de mundo.

Vimos também que os sujeitos se alternam nesse diálogo, enunciando de maneira conclusiva em turnos alternados, e assim, cada ação de cada falante gera, a partir de uma compreensão ativa, uma atitude responsiva ao enunciado anterior, que pode ser uma réplica, uma resposta, uma pergunta, uma contraposição, uma aquiescência. E nesse movimento dialógico, a realidade social vai se construindo o tempo todo, se transformando, se modificando, é sempre inacabada, inconclusa. É nesse tom que Bakhtin mostra que os sujeitos não trocam orações (unidade da língua), mas trocam enunciados (unidade real da comunicação discursiva).

Dessa forma, Bakhtin demonstra que os enunciados não são indiferentes uns aos outros, eles se conhecem, se refletem em ecos e ressonâncias por estarem interligados na esfera de comunicação discursiva em que são elaborados, pois:

O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso- resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo (BAKHTIN, 2002 [1934-1935], p. 89).

Como resposta a enunciados que o precederam, dentro de um determinado campo de atividade humana, o enunciado pode se organizar a partir de enunciados de outros sobre o mesmo tema, por meio de respostas, polemizações, repetições, seleção de expressões, tonalidade. “A expressão do enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o fim levando-se em conta apenas o seu conteúdo centrado no objeto e no sentido” (BAKHTIN, 2011[1952-1953], p. 297).

Nesse sentido, tomamos o plurilinguismo como forma específica de constituição dialógica do discurso. Para tanto, encontramos apoio em O discurso no

romance (BAKHTIN, 2002 [1934-1935]), publicado em Questões de literatura e estética: a teoria do romance (BAKHTIN, 2002 [1975]). Tal conceito refere-se ao

pluralismo constitutivo da linguagem, o que vai além das variações de uma língua (originadas por regiões geográficas, idade, escolaridade, etc.). Para Bakhtin

(...) todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si, oporem-se umas às outras e se corresponder dialogicamente (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 98).

Nessa direção, Bakhtin define a plurivocalidade, a qual se refere às vozes discursivas que permeiam a construção dialógica de um discurso, pois, em Bakhtin (2002 [1934-1935], p.88), temos que todo discurso é orientado dialogicamente, em direção ao seu objeto, o discurso se encontra com os discursos de outrem, participando com eles de uma interação viva, contrapondo, impondo, acrescentando, acreditando e desacreditando. Isso quer dizer que nesse movimento de réplica entre o “já dito” e o “devir” muitas vozes outras são convocadas a participar da construção do discurso.

Pensando assim, inferimos que todo enunciado nunca é o primeiro, estando sempre povoado de vozes dos outros e aberto a respostas futuras. Nessa visão, toda voz humana está relacionada a várias vozes, se constitui através de vozes anteriores e na direção de vozes’ posteriores, ou seja, nenhum falante é criador primeiro/único daquilo que diz, pois:

(...) o objeto está enredado pelo discurso alheio a seu respeito, ele é ressalvado, discutido, diversamente interpretado e avaliado, ele é inseparável da sua conscientização social plurívoca. (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 132).

Constatamos, então, que o enunciado é uma concentração de vozes discursivas, as quais criam um pano de fundo por meio do qual o sujeito tenta sobrepor a sua voz, na previsão de uma nova réplica que venha a sustentar o seu discurso. Acerca dessa relação dialógica, Bakhtin destaca que “o locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo aperceptivo do seu ouvinte” (2002[1934-1935], p. 91). Isso significa que o enunciado corrente se volta para o objeto e para os enunciados dos outros, gerando atitudes responsivas ao já dito e novas contribuições ao tema. Então, passamos à produção do nosso enunciado, definindo-o como resposta e ainda, antecipando possíveis respostas a ele, articulando-o de maneira a influenciar uma atitude responsiva favorável ao nosso ponto de vista. Para tanto, é necessário considerar as concepções e convicções do interlocutor, sua visão de mundo, seu conhecimento sobre o tema, seus pré-conceitos, etc. O destinatário tem papel

essencial na elaboração do discurso do falante, tanto quanto ao conteúdo temático, como ao estilo de linguagem e a estrutura composicional do enunciado.

Sobral (2008, p. 19-24), em consonância, destaca o discurso como arena de enfrentamentos entre vozes, uma vez que, em face da presença do outro, não podemos admitir a existência de um discurso monológico. O autor destaca que “o simples fato de alguém enunciar algo como “a verdade” já pressupõe a existência de alguma outra “verdade” possível”, isto é, para defender sua posição é imperioso correlacioná-la à posição do outro, ou a outras posições.

A esse respeito, Bakhtin (2002 [1934-1935], p. 86) diz que quando produzimos um enunciado acerca de determinado objeto, encontramos esse objeto já contestado, elucidado, analisado de diferentes formas. Esse objeto se torna então palco de encontro com opiniões diversas, visões de mundo diferentes, correntes, teorias, apreciações, entonações... E é nesse diálogo tenso que emergem interações complexas, formando um novo discurso.

Logo, nenhum discurso é produzido no vazio, todo discurso é direcionado a alguém, mesmo que esse outro seja o próprio sujeito discursivo, mesmo que seja um ser imaginário. Em seu projeto enunciativo, o falante não pensa e nem tem consciência de todas as vozes presentes em seu discurso, que, embora atravessado pelos discursos de outros, destaca sempre a voz do locutor corrente, o qual não perde sua individualidade.

A diversidade de linguagens encontradas dentro de uma mesma língua é explicada ao considerarmos as inúmeras vozes sociais encontradas nessas linguagens. Essas vozes se atravessam, se completam, se aproximam e se distanciam, dependendo de vários fatores (tempo, espaço, sujeitos, contextos). Bakhtin (2002 [1934-1935], p. 74) fala em dialetos, jargões profissionais, linguagens de gerações familiares, linguagens de momentos, de lugares, transitórias, que possuem estruturas e finalidades próprias a determinados contextos.

Pensando assim, percebemos a linguagem como composta de variedades, que se dão nas fronteiras entre vozes sociais, entre momentos de interação, entre movimentos dialógicos, definidos através de forças centrípetas (de hegemonia, de centralização, de limitação, de priorização de um grupo privilegiado em detrimento dos demais, determinando que uma língua, um visão de mundo, se sobreponha às demais) e forças centrífugas (descentralizadoras, que admitem outras linguagens, outras vozes, outras ideologias, considerando a dinâmica da vida real a partir da

diversidade) em conflito. Portanto, numa pesquisa sobre a linguagem, como a que nos propomos neste trabalho, é imperioso considerar e entender as tensões entre essas duas forças, a fim de não incorrer numa abordagem monológica do objeto estudado (BAKHTIN 2002 [1934-1935], p. 82-83).

Quando falamos em vozes sociais, lembramos de representações sociais, em linguagens específicas de determinados campos de atividade humana, chegando até os jargões profissionais; podemos assim estratificar a língua dos profissionais do direito, dos vendedores, dos políticos, dos padres, dos funkeiros, dos rappers, dos sertanejos, do pescador ribeirinho... A língua revela quem fala, não apenas pela articulação de recursos linguísticos, mas pelas formas com que esses discursos são elaborados e materializados. Segundo Bakhtin,

Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções (2002 [1934-1935], p. 100)

Considerando, então, que toda a linguagem é constituída a partir de relações dialógicas, e que por meio disso ressoam vozes sociais, não podemos restringir o conceito de plurilinguismo apenas a variedades da língua; mais do que isso, o plurilinguismo constitui o diálogo entre discursos e a plurivocalidade refere-se às vozes discursivas arquitetadas na construção dos discursos.

Pensamos no processo de construção de sentidos que permeia o movimento de vir a ser do discurso em constituição, isto é, em como se dão os movimentos dialógicos entre as vozes que elaboram o discurso construído, sempre na perspectiva do inacabamento, da renovação constante da construção discursiva. Falamos da articulação de recursos linguísticos na construção de enunciados a fim de gerar novos sentidos ao já dito em enunciados anteriores, corroborando, ainda, para novas formações enunciativas que façam coro ao discurso corrente.