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Para nomear esse processo-produto da interação verbal dada por meio do diálogo constituído a partir das relações sociais, Bakhtin define o enunciado. Para o filósofo, a interação social é a realidade na qual a linguagem é fundada, sendo então, a partir da comunicação verbal, materializada em enunciados concretos, que são demandados pelas relações entre sujeitos situados no tempo e no espaço em uma situação de comunicação única, real, concreta, irrepetível.

Uma vez que surge na sociedade, num dado momento, único e irrepetível, numa situação distinta de interação entre sujeitos, momento singular na existência, conclui-se que o enunciado tem uma estabilidade provisória, pois, se mudarmos alguma das condições de produção, seu sentidos e alterará, pois se instala de forma

diferente, dependendo dessas condições dadas pela interação (tempo, lugar, sujeitos envolvidos, situação imediata e mediata, estrutura social, cultura...).

Trata-se, portanto, de um evento social, não de uma abstração; é um elemento da comunicação discursiva que estabelece relação indissociável com a realidade da vida; é concreto, fruto dos atos de fala estabelecidos nas relações dialógicas entre interlocutores concretos; é unidade real da comunicação discursiva, pois:

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social (BAKHTIN, 2002 [1934-1935], p. 86).

Mais que os fatores linguísticos que regem o enunciado, a situação extraverbal que o envolve é extremamente relevante, compreendendo três fatores: “1) o horizonte espacial comum dos interlocutores (...), 2) o conhecimento e a

compreensão comum da situação por parte dos interlocutores, e 3) sua avaliação comum dessa situação”. Logo, o enunciado concreto envolve os interlocutores como co-participantes do discurso, uma vez que estes devem conhecer, entender e avaliar

a situação extraverbal de comunicação, o contexto (VOLOSHINOV & BAKHTIN, 1926, p. 4-6).

O discurso é um conceito subentendido na natureza da concepção dialógica da linguagem como interação, está relacionado ao querer dizer, ao projeto discursivo, aos efeitos de sentidos produzidos por meio da interação, ou seja, fora da vida, o discurso perde sua significação. Já o enunciado é a unidade discursiva desse querer dizer, sendo constituído a partir de uma interação entre os sujeitos envolvidos, utilizando-se das formas da língua para imprimir o verbal e o extraverbal, o texto e o contexto, mediante as condições pragmáticas em que é produzido; e a enunciação, ao nosso ver, é o processo/atividade de produção, é o ato de proferir um enunciado.4

4 Conforme nota de rodapé na primeira página do texto Os Gêneros do Discurso, em Estética da Criação Verbal,

Bakhtin não faz tal distinção em sua obra. O autor utiliza para ambos o mesmo termo, Viskázivanie, que significa ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. em palavras (BAKHTIN, 2011, [1952-1953], p. 261)

Vimos em Bakhtin (2011[1952-1953], p. 275) que os limites de cada enunciado concreto se dá pela alternância dos sujeitos do discurso. Todo enunciado tem um princípio e um fim, um antes e um depois. O falante termina o seu enunciado para dar voz ao seu interlocutor, à sua compreensão ativamente responsiva. O interlocutor responde ao perceber a conclusão do enunciado, ao notar que pode articular uma resposta. Essa alternância cria limites nos enunciados nas diversas situações de comunicação.

Padilha (2009), analisando trechos da canção Resposta, de Samuel Rosa e Nando Reis, reflete acerca dessa construção de enunciados e, falando da interação verbal inerente à elaboração de respostas e das trocas discursivas denotadas palavras próprias e palavras alheias, esclarece que:

É claro que quando pedimos respostas pedimos também aceitação, quando damos resposta, demonstramos aceitação ou não. Mas, nesse momento, da resposta, os versos já deixam de ser só meus e passam a ser seus e meus, nossos. A linguagem, em suas múltiplas manifestações, nos serve para que possamos dar respostas ao mundo, ao outro, e quando o fazemos, fazemos também com o outro, com a palavra alheia que tornamos palavra própria (2009, p. 104, grifo da autora).

Da mesma forma, Sobral (2008, p. 49) acrescenta que os enunciados/discursos são o produto do processo de intercâmbio linguístico entre sujeitos (interlocutores), considerando o processo de produção, a circulação, a recepção. Dessa forma, a atribuição de sentido está interligada ao processo de produção. Trata-se de um processo contínuo, uma vez que a concretização dos sentidos se dá numa circunstância histórica e social, isto é, sujeitos diferentes, em momentos diferentes, lugares e circunstâncias diferentes, criam/renovam sentidos diferentes a um mesmo enunciado. Isso significa que o enunciado é concreto, uma vez que se dá numa relação concreta entre sujeitos concretos. O enunciado se concretiza a partir da existência de uma situação comum aos sujeitos envolvidos no processo de enunciação, os quais precisam conhecer tal situação e estarem de acordo na compreensão e avaliação de tal situação.

Esse autor finaliza sua análise defendendo que não há discursos sem contextos e sem sujeitos, uma vez que os discursos vêm a existir por meio de apreensões de sentidos atribuídas por sujeitos em situações reais de comunicação, ou seja, a produção do discurso nasce da ação dos sujeitos envolvidos em uma interação, os quais carregam consigo um projeto enunciativo e um tom avaliativo,

conferindo perguntas e respostas que se alternam no projeto discursivo e, por fim, o discurso é entendido, então, como unidade de sentido e não como mera soma de frases.

Bakhtin (2011[1959-61/1979], p. 312), em O problema do texto na Linguística,

na Filologia e em outras ciências humanas, ressalta que a atitude humana é um

texto em potencial, o qual pode ser entendido a partir de um contexto dialógico. O texto, apreendido aqui como enunciado, dotado de entonação e expressividade, representa um estilo, uma visão de mundo, um contexto ou contextos, nele há duas vozes, dois sujeitos. Assim, mesmo a oração mais complexa pode se repetir um número ilimitado de vezes e de forma igual, mas, como enunciado, não se repete jamais, é sempre nova, mesmo que seja uma citação. Isso porque a cada vez que se repete, o enunciado muda de lugar e de função na cadeia discursiva.

Na forma de enunciado, um texto é sempre outro, é sempre novo; quando reiterado, quando repetido, nunca é o mesmo, em face dos outros textos com os quais já dialogou, em face dos outros textos que já ajudou a construir, em virtude dos novos sentidos que podemos atribuir a ele a cada vez que o retomamos, pois nós também somos outros. “Quando o texto se torna nosso conhecimento podemos falar de reflexo do reflexo. A compreensão de um texto sempre é um reflexo do reflexo. Um reflexo através do outro no sentido do objeto refletido” (BAKHTIN, 2011[1959-61/1979], p. 319).

O filósofo revela que dois enunciados que tocam o mesmo tema/objeto, ainda que não se conheçam, ao serem confrontados em um plano de sentido, passam a estabelecer uma relação dialógica entre si. Já os elementos da língua dentro de um sistema linguístico ou mesmo dentro de um texto não podem estabelecer relações dialógicas. Somente o enunciado possui relação com a realidade social, com os outros enunciados que compõem determinado campo da comunicação discursiva e o sujeito que fala, a língua apresenta apenas as possibilidades dessas relações. É a partir da relação com a realidade que valores como justiça, falsidade, verdade, beleza, bondade são dados aos enunciados; tais valores não podem tornar-se objeto da linguística, pois, conforme Bakhtin/Volochinov,

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. a palavra está sempre

carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.

àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (2010[1929], p. 98-99).5

Considerando que os enunciados estão vinculados a situações concretas de comunicação entre participantes situados em determinado campo de atividade humana, sentimos necessidade de falar das formas de manifestação/materialização desses enunciados nessas práticas sociais que envolvem os atos de produção das enunciações. Estamos nos referindo aos gêneros do discurso, um conceito por meio do qual Bakhtin trata das condições e finalidades de cada esfera como reflexo norteador na escolha do conteúdo (tema), estilo (recursos lexicais, gramaticais, etc) e forma composicional (estrutura) do enunciado, dados pelo caráter da interação social entre os participantes do processo de enunciação (MOLON & VIANNA, 2012, p. 8).

Nessa perspectiva, são as esferas de atividade humana, lugar onde se dão as práticas sociais, os responsáveis pela elaboração de seus tipos relativamente estáveis de enunciados, chamados Gêneros do Discurso, com conteúdo temático, estilo de linguagem e forma composicional que correspondem às especificidades de cada campo. E, uma vez que são diversas as possibilidades de atividades humanas, a lista de gêneros discursivos é também inesgotável (2011[1952-1953], p. 262).

Em face dessa heterogeneidade dos gêneros discursivos, Bakhtin (2011[1952-1953], p. 263) categoriza, de acordo com seu nível de complexidade, os gêneros em primários e secundários. Os gêneros primários são os menos elaborados, mais flexíveis, ocorrem nas situações de comunicação imediata, no cotidiano dos falantes, conjecturam com mais rapidez as mudanças sociais, podendo se manifestar tanto em linguagem oral quanto escrita – conversa entre amigos nas redes sociais, diálogo entre colegas no corredor da escola, lembretes entre colegas de trabalho, etc. Os gêneros secundários são construídos nas esferas de comunicação culturalmente mais elaboradas, complexas e desenvolvidas, se apresentando, predominantemente, em linguagem escrita – romances, novelas, contos, editais, portarias, ofícios, reportagens, documentários, etc.

SANTOS (2011, p. 38) ressalta a natureza social dos gêneros como sua característica fundamental, uma vez que estão vinculados às esferas da comunicação verbal e se orientam dialogicamente por meio das interações sociais entre sujeitos socialmente situados nas esferas de atividade humana.

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Falamos por meio de enunciados concretos, os quais adquirem estabilidade relativa na materialização do gênero do discurso, cujo conteúdo temático, estilo e forma composicional atendem à demanda social de uma esfera específica de produção verbal. Dito de outra forma, todo gênero é um tipo de enunciado, que é relativamente estabilizado dado sua forma composicional, conteúdo e estilo de linguagem, definidos pela sua esfera de circulação e da relação entre os falantes; todo enunciado pertence a um gênero, porém, ao contrário deste, que possui relativa estabilidade, o enunciado é sempre atualizado, dado o contexto de interação discursiva entre os falantes.

Nesse mesmo viés, em seu ensaio Discurso na vida e discurso na arte (1926), Bakhtin/Voloshinov se dedicam a um estudo da linguagem situada no cotidiano e da linguagem na criação literária. Para os pesquisadores, a linguagem fora da relação com a vida social perde totalmente sua significação, uma vez que quando produzimos enunciados estamos muito mais focados nas avaliações e assimilações que causarão do que nas estruturas verbais (linguísticas) que o compõem. Nesse sentido, o extraverbal, isto é, o evento da vida em que o discurso é elaborado exerce papel determinante na construção de sentido. A situação concreta de uso da linguagem é essencial para a significação. Fora da vida social, o discurso é nada mais que um conjunto de elementos linguísticos.