• Nenhum resultado encontrado

Construção de sentidos e posições ideológicas

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin e Voloshinov definem a relação entre o tema e o enunciado, demonstrando que ambos são concretos, únicos e irrepetíveis. O tema reflete o instante do acontecimento da enunciação, abarcando o enunciado, que é dotado de significação. A significação, por sua vez, refere-se aos elementos idênticos, reiteráveis e mobilizados a partir do tema.

O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura

adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em

devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010[1929], p. 134, grifo do autor).

Considerando que a significação refere-se, como vimos, ao repertório linguístico a ser utilizado de acordo com nossas intenções discursivas, podemos

inferir que são os contextos, isto é, as situações envolvendo a enunciação que vão imprimir novos sentidos; daí a instabilidade da significação, como já dissemos anteriormente. A cada encontro entre sujeitos numa relação de interação (contexto), a significação se renova, por isso, é tida como um estágio anterior à capacidade construir sentidos, é apenas potencial, e só se realiza num tema, pois este denota um sentido concreto, contextual, ligado à situação real de comunicação, utilizando- se dos recursos da língua (dicionário) para realizar a enunciação.

A significação comporta as formas fixadas da língua, e o tema abarca a interação, o contexto em que essas formas são utilizadas e, sendo assim, tema e significação são mobilizados no processo de enunciação. Porém, cabe analisar que, embora a significação preceda ao tema, por estar instituída em um sistema linguístico, ela é dependente do tema para existir, uma vez que sem um tema, sem um contexto, uma situação de comunicação, não há significação. Como conjunto de elementos verbais e extraverbais que se manifestam na interação verbal, o tema mobiliza as formas da língua para produzir os sentidos da enunciação, sendo, então dependente da significação.

Ao contrário da significação, o tema é dinâmico, está ligado à designação de sentidos que nascem na interação dialógica, e, novos contextos criam novos temas; daí a dinamicidade da língua para o Círculo. Acerca da relevância desse conceito, Bakhtin revela que:

O tema do sujeito que fala tem um peso imenso na vida cotidiana. Ouve-se, no cotidiano, a cada passo, falar do sujeito que fala e daquilo que ele fala. Pode-se mesmo dizer: fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que os outros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas, etc (BAKHTIN, 2002 [1934-1935], p. 139).

Em cada contexto, a cada interação social, cada um de nós toma para si posições diferentes em relação aos mesmos fatos, aos mesmos enunciados. Isso significa que cada sujeito (o eu e o outro) é prenhe de valores e crenças, que são formados a partir dessas interações ao longo da vida. Por conseguinte, essas interações influenciam nossa singularidade, como seres únicos que somos, nossas ações e nossos enunciados, isto é, influenciam diretamente a maneira como respondemos aos fatos da realidade social – ao que chamamos de posição ideológica.

Porém, mesmo sendo únicos e singulares, organizamos esses enunciados em direção ao outro, aguardamos sua aprovação, sua resposta. Articulamos nossas ações e nossos enunciados a partir de enunciados anteriores, isto é, nos apropriamos dos enunciados dos outros para elaborar o nosso enunciado, sempre, e ainda, na expectativa da resposta que ele causará no outro, num ciclo ininterrupto de comunicação.

Essas apropriações (de enunciados anteriores) executadas pelo sujeito na elaboração de seu enunciado revelam uma certa seleção de signos ideológicos a serem utilizados no seu querer dizer, na direção de suas intenções discursivas. Isso porque, voltamos a frisar, o sujeito é um ser social, concreto, e responde ao outro nas suas interações sociais, em tempos e espaços definidos, únicos e irrepetíveis. Neste sentido, Bakhtin (Idem, p. 135-136) nos revela que o sujeito falante é um ideólogo e suas palavras são sempre um ideologema, uma vez que uma linguagem representa sempre um ponto de vista, está direcionada a um motivo ideológico e ocupa uma posição ideológica.

A palavra é um fenômeno ideológico em virtude de sua orientação para o social, isto é, está sempre direcionada a alguém, a um interlocutor, logo está sempre carregada de intenções (Ibdem, p. 31-37). Sob esse viés, todo signo é constituído dialogicamente nas coerções estabelecidas dentro das esferas sociais em que estes são acreditados e desacreditados, instituídos e destituídos, ou seja, os signos são ideologizados a partir da sua circulação em determinada esfera, e são selecionados mediante a intenção do sujeito falante. Na ânsia de uma resposta futura do outro, o sujeito mobiliza os signos, dialógica e ideologicamente, mediante as relações sociais nas quais interagem, dando vida à linguagem. Então, como é construída no social, a ideologia não vive dentro da consciência do ser humano, mas na atmosfera dos acontecimentos em que esse a mobiliza.

Em Discurso na vida e discurso na arte, Bakhtin/Volochinov falam sobre o

presumido da enunciação, destacando o papel do dito e o não dito no processo de

atribuição de sentidos. O não dito refere-se à apreciação valorativa do ouvinte, isto é, à axiologia. Ponzio (2008, p. 93) completa que “o que se presume são vivências, valores, programas de comportamento, conhecimentos, estereótipos, etc.”, ou seja, o presumido nasce no social, nas relações familiares, de trabalho, acadêmicas, religiosas. Isso quer dizer que a compreensão do sujeito sobre determinado enunciado está condicionada ao seu contexto de vida; sua valoração vincula-se à

amplitude e diversificação de suas relações sociais (nas esferas de atividade humana).

De acordo com os estudos do Círculo, o termo ideologia não pode ser confundido com a ideia de falsa consciência ou instrumento de manipulação ou alienação, ocultação da verdade. Para muito além disso, os estudiosos do Círculo concebem a noção de ideologia ligada à produção imaterial de determinadas esferas de atividades humanas, à tomada de posição do sujeito relacionada àquilo que ele acredita, guiada àquilo que ele conhece, dentro de determinado campo. Logo, entendemos ideologia como interpretação da realidade social, a qual é expressa por meio de signos em espaços sociais situados historicamente.

Concluímos que o signo constitui-se numa resposta dada em relação a algo que foi dito, a partir da compreensão atribuída a esse querer dizer, isto é, o sujeito produz os signos observando a significação e o tema relacionados ao discurso proferido dentro de uma situação (social e histórica). O signo ideológico está vinculado ao meio em que é produzido.

Em consonância, Ponzio (2008, p. 109) traz sua contribuição a este respeito ao comentar que o signo é sempre ideológico por revelar um ponto de vista valorativo, uma tomada de posição diante de um contexto situacional dado, isto é, “onde está presente o signo está também a ideologia”. O pesquisador destaca que o que diferencia o signo do objeto ou fenômeno natural é que ele faz parte de um processo de interação social e reflete um ponto de vista ideológico, isto é, é formado a partir de vínculos sociais.

Para Bakhtin, o termo ideologia está ligado tanto aos sistemas superestruturais (política, direito, religião, arte, conhecimento científico), ou seja, à Ideologia Oficial, quanto aos diferentes substratos da consciência individual, à ideologia do Cotidiano, ou não oficial. Nesse contexto, para Ponzio:

Os signos ideológicos refletem – “refratam” - a realidade segundo projeções de classe diferentes, e em contraposição a elas, as quais tentam manter as relações sociais de produção, inclusive quando as mesmas se convertem em um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas ou, ao contrário, propõem-se como instrumento de luta e de crítica do sistema. (2008, p. 116)

E, nesse viés, Ponzio alega que a forma ideológica do signo é a expressão de interesses sociais, a qual confere sua importância, consistência, duração e circulação.

O autor busca fundamento, novamente, em Marxismo e Filosofia da

Linguagem, para falar dos fios ideológicos mobilizados na tessitura das tramas das

relações sociais nos diversos campos de atividade humana. O material signico registra as novas formas ideológicas elaboradas a partir de mudanças sociais em organização nos sistemas ideológicos, isto é, a consciência coletiva mantém uma relação interdependente entre estrutura e superestrutura, pois,

A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p.36).

O vídeo O Bonde das Garotinhas dançando Bonde das Maravilhas6 postado no Facebook na atualidade nos fez refletir sobre questões de crenças e valores que constituem as diferentes posições ideológicas disseminadas na sociedade.

Os questionamentos oriundos de tal publicação foram:

Kkkkkk.... Fazer quadradinho de 8 é fácil! Quero ver chegar no Ensino Médio sem engravidar. #sojesusnacausa

podiam tirar da preparação para o sexo e colocar numa escola de atletismo, ou ginástica olímpica.

pois é, agora funk é "cultura"... então acho q pode, né?! muita dó dessas crianças que, ao que tudo indica, perderam a inocência... acredito q a pergunta n é "chegarão ao ensino médio?", mas "aprenderão a ler e a escrever?" Em minha opinião, (... )

Esses comentários dos nossos amigos virtuais nos levaram a refletir sobre a questão da alienação. Existe alienação? O sujeito bakhtiniano responde ativamente ao seu outro e ao mundo que o rodeia, como já comentamos na conceituação de linguagem. Pensando assim, inferimos que se trata então de uma questão de escolhas. O sujeito escolhe alienar-se, uma vez que responde ativamente aos apelos comerciais veiculados na mídia das grandes massas. O sujeito precisa consumir. Não se limita a consumir aquilo que pode pagar. Consome mais do que pode produzir. Quem não for produtivo não tem valor no mundo contemporâneo.

A ideologia nasce em determinado lugar social e serve a um propósito social, com finalidades específicas, pois:

6

A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é um arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p.36).

Certamente que, em se tratando de grandes meios de produção, tais objetivos se prestam a aumentar os lucros das empresas que anunciam na mídia. Mulher

precisa ser bonita, magra, bem maquiada, usar salto alto, roupas justas e curtas, ter cabelo liso e loiro. Não interessa ao capital que a mulher seja politizada. A modinha

da vez é o funk veiculado na novela global, isso é comercial, isso é sucesso, para algumas pessoas. Essas pequenas garotinhas tiveram acesso ao funk, não à ginástica olímpica, não aos livros; ou, se tiveram acesso, escolheram aquilo que lhes parecia mais interessante.

Sobral (2008, p. 41) observa que o tema dos gêneros está ligado aos recortes ideológicos que fazemos da realidade, uma vez que os sentidos são atribuídos nas relações concretas de interação entre sujeitos. O social é povoado de confrontos entre grupos, que articulam a linguagem, o discurso, a partir de suas necessidades sociais. Assim, a linguagem é um fenômeno ideológico, e o signo participa integralmente do comportamento comunicativo dos sujeitos nos campos e atividades sociais em que interagem, estando sujeito a avaliações ideológicas, refletindo e refratando a realidade social. Logo, a ideologia é parte integrante da atribuição de sentidos.