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Não pretendemos tentar produzir um histórico das influências filosóficas que colaboraram na construção dos conceitos da teoria bakhtiniana. Primeiro para não incorrer em redundância, apenas relatando o que já foi amplamente discutido sobre a obra, mas também, e sobretudo, porque já fomos contemplados por outros pesquisadores do Círculo, como Sobral (2009), Faraco (2009), Brait (2009), Fiorin (2006), e muitos outros, cujas publicações serviram também de base para este trabalho. Logo, nosso intuito neste capítulo é demonstrar como as ideias do Círculo podem contribuir para esta análise, especificamente, dos discursos produzidos, aqui delimitados em nosso corpus, a partir da polêmica do Livro Didático “Por uma vida melhor”.

Para tanto, discutiremos, primeiramente, o conceito de linguagem apresentado em Marxismo e Filosofia da Linguagem. Nessa obra, os pesquisadores russos fazem severas críticas ao que denominam de “objetivismo abstrato”, rejeitando o estudo da língua como sistema, com estrutura fixa, argumentando que, ao elaborar sua fala, o falante não enuncia pensando nas regras do sistema linguístico que ele vai utilizar nessa empreitada, mas age a partir do contexto sócio- histórico (no tempo e no espaço) do seu ato, no momento único do seu querer dizer, na sua intencionalidade discursiva. Do mesmo modo, em contraponto ao que denominam “subjetivismo idealista”, ponderam que a língua não pode ser considerada mero fruto da criação individual, obra da criatividade do falante, limitando-se a uma criação artística, pois é fruto da interação social, carregada de ideologia. E, por ser social, ela é dinâmica, evolui no tempo e no espaço, porque o sujeito evolui, isto é, a língua evolui porque atende a uma demanda social dos falantes, “como uma corrente evolutiva ininterrupta” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010 [1929], p.93-113). Logo, considera a língua viva, fruto e semente das relações de interação humana. Da mesma forma, rejeita o teoricismo, partindo do singular, do irrepetível, do momento único, vivo, real, concreto. Para os pesquisadores, “a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo.” Isso quer dizer que o sujeito não recebe a língua pronta para ser usada, mas passa a interagir por meio dela nas várias esferas de comunicação em que se relaciona dialogicamente (idem, p. 111).

Bakhtin (2011[1952-1953], p. 276-278) define a oração como unidade da língua em contraponto ao enunciado como unidade da comunicação discursiva, uma vez que, enquanto o enunciado é delimitado pela alternância entre os sujeitos do

discurso, mantendo relação imediata com a realidade e com os enunciando alheios, a oração tem natureza gramatical e fronteiras gramaticais.

Sobral (2008, p. 16), contribuindo para a compreensão do pensamento de Bakhtin, esclarece que essa “concepção dialógica da linguagem” baseia-se na atribuição de sentidos que são produzidos por meio da intersubjetividade das trocas verbais em situações concretas de exercício da linguagem. Trata-se de uma concepção centrada no sujeito, que é então um agente que produz enunciados (e não frases/orações), num processo de intercâmbio linguístico nos atos verbais. Na cadeia de enunciações, o locutor e o interlocutor têm o mesmo peso, uma vez que cada enunciado é uma resposta, uma réplica a enunciações anteriores e posteriores. A concepção de linguagem está, por assim dizer, fundada no diálogo, que tem como caráter central a interação, por meio da qual os sujeitos atribuem sentidos ao que dizem.

O autor enfatiza que o sentido é fruto da interação, a qual está fundada no diálogo, que envolve o eu e o outro, a pergunta e a resposta. E lembra ainda que a pergunta e a resposta podem ser feitas por um só sujeito, e mesmo a conversa consigo mesmo é um diálogo, uma vez que “não há eu sem outro – nem outro sem eu!” (idem, p. 21). Isso nos mostra que a interação é constitutiva da produção e atribuição de sentidos; fora do diálogo, não há sentido. É no ambiente da vida concreta que os sujeitos produzem enunciados, os quais respondem a perguntas que surgiram antes e às que poderão surgir. A interação é base para a produção de sentidos na relação entre sujeitos.

A fim de explanar melhor sobre essa concepção de linguagem do Círculo, o pesquisador afirma que a situação pessoal, social e histórica dos participantes, e ainda as condições materiais e institucionais envolvidas no intercâmbio verbal interferem diretamente nas condições de interação. Em outras palavras, a relação dialógica dos sujeitos discursivos é constituída por níveis de interação, os quais estão presentes nas relações entre sujeitos em todas as suas práticas comunicacionais, se articulando para que haja interação e, logo, produção de sentidos. Sintetizamos esses níveis de interação da seguinte forma:

1) Intercâmbio verbal – refere-se à situação material da interação, à presença dos interlocutores, ao ambiente físico e aos meios de mediação da interação que podem alterar a produção e a recepção

do discurso (aula presencial, aula à distância ministrada por meio virtual);

2) Contexto imediato – refere-se aos lugares (papeis) sociais, à posição dos interlocutores, à imagem dos interlocutores, às formas de interação social (o quê, a quem, em que momento, de que maneira); o sujeito manifesta sua identidade de acordo com o outro diante do qual está e da situação em que está envolvido;

3) Contexto social mediato – refere-se ao tipo de lugar em que ocorre a interação e às exigências que esse lugar faz aos interlocutores (grupos sociais, instituições formais e informais, etc);

4) Horizonte social e histórico mais amplo – refere-se à interação entre culturas, entre gerações, entre tradições diferentes.

Os estudos do Círculo de Bakhtin nos esclarecem que a língua/linguagem tem seu conceito estabelecido a partir da dinamicidade, do inacabamento, do vir a ser, pois ela é constituída no movimento dialógico, nas relações sociais e nas trocas discursivas efetuadas mediante constantes processos de interação entre sujeitos, nas inúmeras esferas de atividade humana em que se relacionam. Esses sujeitos apreendem sentidos e organizam seus enunciados a partir desses movimentos de constantes diálogos. O outro, nessa perspectiva, tem papel fundamental nessa construção de sentidos, uma vez que ele não é passivo, ele responde ativamente ocupando uma posição responsiva em relação ao interlocutor. Os sentidos são atribuídos e percebidos a partir de atitudes responsivas dos sujeitos nas relações sociais; atitudes que ocorrem a partir de níveis diferenciados de compreensão, a qual só é possível se os interlocutores compartilharem de um conhecimento comum do contexto social e histórico em torno do objeto do discurso.

Bakhtin/Voloshinov (2010[1929]) esclarecem o processo da compreensão, por meio do qual o sujeito, em contato com o enunciado do outro, busca correspondência em enunciados próprios para então elaborar sua resposta. Contrapomos à palavra do outro inúmeras palavras nossas, e “quanto mais numerosas e substanciais forem [essas palavras], mais profunda e real é a nossa compreensão” (Idem, p. 137). E é nesse processo que a significação se realiza na palavra, por meio da interação entre os interlocutores.

A esse respeito, podemos ver ainda, em Bakhtin (2011[1952-1953], p. 272), que o falante, ao elaborar seu enunciado, o faz na intenção de uma compreensão

ativa de seu interlocutor; o falante deseja ser compreendido e leva em conta a reação presumida do outro. Da mesma forma, toda compreensão é ativamente responsiva e denota uma fase de preparação para uma resposta, que pode ser uma concordância, uma objeção, uma sinalização, uma pergunta, até mesmo o silêncio.

A partir do sistema linguístico disponível aos interlocutores, eles elaboram suas respostas e contrarrespostas, denotando o nível de compreensão acerca do discurso do outro. Daí o papel fundante do dialogismo na construção da linguagem, pois se responde tanto a algo que já foi dito quanto ao que se espera que vai ser dito, antecipando uma resposta. E nesse movimento contínuo, os interlocutores vão edificando a linguagem, totalmente ligada ao uso real em situações específicas do agir humano.

Para Bakhtin, a compreensão passiva é apenas um momento de abstração do ato de compreensão ativamente responsiva. O outro, portanto, tem papel ativo nessa cadeia de comunicação.

Em suma, a língua é um organismo vivo que se constitui nas relações de interação social entre sujeitos que dialogam nas várias esferas das atividades humanas em que se relacionam. Da mesma forma, podemos pensar que os sujeitos são constituídos sócio-historicamente por meio dessas relações e das trocas discursivas que estabelecem, em movimentos de infinitas possibilidades de encontros e desencontros.