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3. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO

3.2 A caminhada e a pesquisa

Conforme visto na primeira parte desta pesquisa, caminhar não é apenas uma forma de locomoção para o ser humano. Ela se faz presente nas mais diversas situações do cotidiano, se manifesta em variadas expressões culturais e seus usos transcendem o utilitarismo. A caminhada, assim, revela-nos e, sobretudo, se revela em suas múltiplas possibilidades de apreensões pelos indivíduos ou pelos grupos sociais, apresentando-se como um elemento marcante na história do ser humano. O objetivo desta segunda parte foi investigar a caminhada como uma atividade diferencial que permitisse identificá-la como característica de um estilo de vida ativo, reverberando na qualidade de vida. Para o nosso propósito e em conformidade com o referencial teórico proposto, não nos interessamos pelo uso da caminhada como atividade física tão somente, porém, que ela representasse algo mais do que isso aos praticantes.

Uma busca pelos domínios eletrônicos nos possibilitou encontrar grupos de caminhantes com diversas ênfases, contudo, a maioria das propostas se direcionava para práticas relacionadas ao ecoturismo ou turismo religioso, muito em voga na atualidade. Mas ainda não era esse o foco de nossa atenção, pois ansiávamos por encontrar algo distinto e com características próprias.

A investigação via internet foi finalizada ao nos depararmos com um grupo de caminhantes do município de Ribeirão Preto (SP), que nos chamou a atenção pela abordagem filosófica e concepção da prática da caminhada. Este grupo, intitulado PEREGRINOSRP, foi constituído em 2007 com o intento, a princípio, de percorrer os mais de 400 km que separam o município de Tambaú (SP) ao de Aparecida (SP), naquele que é conhecido como Caminho da Fé38.

Entretanto, concluído o propósito, o grupo decidiu continuar caminhando, sempre passando por áreas rurais e perpassando cidades, como forma de se preparar para outro desafio: o Caminho de Santiago de Compostela39. Ao finalizarem este projeto, optaram por não mais parar de caminhar por Ribeirão Preto e região, abrindo à participação de qualquer interessando a partir de 2009 (PEREGRINOSRP).

Com o objetivo de “agregar pessoas que gostam de caminhar”, o grupo representa um “espaço aberto para os praticantes da caminhada”, uma forma de “democratização do lazer, de respeito ao ser humano, à natureza e à história”. Ainda mais, as atividades do grupo, isto é, as caminhadas, prezam pela

natureza cívica, para despertar ou consolidar a nossa responsabilidade como cidadão e, sobretudo, para o reconhecimento das condições em que se encontram os ícones históricos, arquitetônicos e ambientais da cidade e da região. Enfim, a preocupação dos “peregrinosrp” é dar espaço para as pessoas que têm um mesmo perfil, aquele de gostar de caminhar, de interagir com a natureza, de preservar a história (...) (PEREGRINOSRP)

A opção pelo grupo de caminhantes de Ribeirão Preto, portanto, se deu em face de suas características peculiares e tipo de abordagem em relação à caminhada. Não se trata de ecologia, turismo ou religião, temas comuns relacionados às atividades que envolvem a caminhada e que são os mais explorados, comercialmente, e debatidos, academicamente.

Mas se trata do modo como a caminhada é utilizada: uma possibilidade de resgate e preservação de aspectos primordiais da natureza humana (caminhar longas

38 O Caminho da Fé é uma iniciativa de três peregrinos de Águas da Prata (SP), inspirado no milenar

Caminho de Santiago de Compostela, Espanha, foi criado para dar estrutura às pessoas que sempre fizeram peregrinação ao Santuário Nacional de Aparecida, oferecendo-lhes os necessários pontos de apoio (CAMINHO DA FÉ).

39 O Caminho de Santiago de Compostela é considerado um dos trajetos turístico-religiosos mais

tradicionais e percorridos do mundo. É composto por vários percursos que partem de diversos países europeus (Portugal, França, Alemanha, etc.) e fora da Europa (Israel), em distâncias que podem alcançar 5000 km (O CAMINHO DE SANTIAGO).

distâncias como forma de locomoção, por exemplo), de observação de ambientes rurais e da própria natureza (plantações, riachos, montes, pastos com animais, etc.) e sempre considerando o contexto histórico e cultural dos caminhos por onde se passa. Além disso, o Peregrinosrp, pelo que observamos, não é uma associação ou algum tipo de organização com fins lucrativos ou interesses comerciais. São indivíduos que se reúnem para caminhar, em livre participação, para conhecer os lugares por ondem passam, para socializar e aproveitar o dia fazendo aquilo que gostam.

Na confluência do lazer com a qualidade de vida e destes com as práticas e atividades que constituem as preferências pessoais (estilo de vida), a seguir apresentamos os resultados das análises e intepretações realizadas a partir das informações coletadas junto aos sujeitos investigados.

3.3 Resultados

A pesquisa de campo, pela coleta dos dados empíricos via questionário, trouxe resultados que nos proporcionaram identificar e analisar aspectos da prática da caminhada que pudessem ser associados ao estilo de vida ativo.

O questionário foi respondido por quinze sujeitos do grupo “Peregrinosrp” de Ribeirão Preto, após caminhada de dezenove quilômetros realizada entre Analândia – São Carlos, em 16/3/2013. A amostra apresentou a seguinte classificação:

SEXO

Masculino (10) Feminino (5)

IDADE

Até 30 () 30-45 (2) 45-60 (8) Acima 60 (5)

ESCOLARIDADE

Esta classificação inicial nos permitiu identificar alguns aspectos socioeconômicos que pudessem servir como parâmetros para a análise e interpretação dos dados40. Assim, conforme esclarecido por Bourdieu (2004), o nível de escolaridade pode se constituir um indicador do gosto por determinadas atividades de lazer, dentre elas, a caminhada.

Ao serem questionados se praticavam a caminhada de modo espontâneo ou com orientações técnicas de profissionais (gráfico 1), apuramos que 52% deles caminham com regularidade e sem orientação profissional. Neste item também foi verificado que a caminhada é uma atividade organizada, isto é, tem horário e lugar para ser realizada.

A organização da caminhada como atividade para ser realizada no tempo livre (portanto, à margem das obrigações familiares, sociais, religiosas ou políticas) demonstra, como esclarecido por Dumazedier (1973), que esta prática, de certo modo, é prioritária na vida desses sujeitos, ainda que não seja uma necessidade ou obrigação, todavia, “são realizadas livremente a fim de proporcionar satisfação aos indivíduos que as praticam” e “alcançam seus objetivos por si próprias” (DUMAZEDIER, 1973, p. 270).

40 Um dos sujeitos não preencheu os dados iniciais.

52% 24%

24%

Gráfico 1 - Caminhar é algo que:

faço com regularidade e de modo organizado, porém, espontaneamente e sem orientação profissional

faço com regularidade e de modo organizado, em

horários e lugares reservados para isso no meu tempo livre e com orientação profissional faço com frequência e de modo espontâneo, como parte do meu dia-a-dia (ir ao trabalho, fazer compras, etc.)

Em relação aos motivos que levaram os sujeitos a optarem pela caminhada (gráfico 2), apuramos dois fatores como principais: lazer e qualidade de vida (57%) e saúde e prevenção de doenças (33%).

Lazer e qualidade de vida parecem estar associados pela maioria dos sujeitos, como fatores que se complementam, ainda que considerem saúde e prevenção de doenças como outro fator relevante para praticarem a caminhada. Entendida como forma de lazer pela maioria dos sujeitos investigados, interpretamos, pela nossa análise, que a caminhada se impõe como elemento atrativo e carregado de valores essenciais capazes de reverberar na qualidade de vida e na própria saúde.

Isto nos parece vir ao encontro do que diz Marcellino (2007) em relação ao lazer como “um tempo que pode ser privilegiado para vivências de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural” (MARCELLINO, 2007, p. 3). Assim, a compreensão dos sujeitos em relação à caminhada como possibilidade de lazer e qualidade de vida e associada à questão da saúde, nos permite a intepretação de que a caminhada, de fato, para eles, é um elemento essencial do seu estilo de vida ativo.

Em relação às tendências sobre a prática da caminhada (gráfico 3), verificamos que os sujeitos preferem caminhar por lugares que ofereçam atrativos da Natureza, história e cultura local (52%). Neste aspecto, as áreas rurais são as preferidas do

57% 33%

10%

Gráfico 2 - Motivos para caminhar:

lazer e qualidade de vida

saúde e prevenção de doenças

para pensar sobre as coisas da vida, para conhecer o mundo

grupo, pois proporcionam o encontro do cidadão urbano com os modos de vida do campo e paisagens que mesclam natureza e cultura (riachos, montes, plantações, moradias típicas, pastos com animais, etc.). Parques e praças públicas também são lugares utilizados pela maioria dos sujeitos para a realização da caminhada que, pelo que se percebe, preferem caminhar ao ar livre.

Isto parece estar de acordo com Lipovetsky (2007) onde, em sua análise sobre aspectos do bem-estar contemporâneo, salienta a estetização dos gostos e do meio ambiente que pode ser observada no “apego ao patrimônio, às paisagens naturais e culturais, paixão pelas viagens (...)” (LIPOVETSKY, 2007, p. 286), deixando-nos uma ideia de que, para o bem-estar vivenciado pelos sujeitos em sua caminhada pelas áreas rurais, o importante é sentir-se bem consigo mesmo (conforto emocional e satisfação pessoal) fazendo aquilo que se gosta e em lugares representativos desse ideal.

Sobre os hábitos relacionados à prática (gráfico 4), a maioria dos sujeitos investigados caminham a mais de dois anos (86%), com uma frequência de até três vezes semanais (66%) e duração entre uma a duas horas (53%). Tais dados reforçam a questão relacionada à prática da caminhada como atividade de lazer, considerando que ela não é apontada como prática diária, costumeira, porém, como algo a ser feito em ocasiões e finalidades específicas.

52% 26%

18% 4%

Gráfico 3 - Lugares preferidos para caminhar:

campos, bosques, estradas rurais

parques e praças públicas

ruas e avenidas esteira ergométrica na academia

Para a maioria dos sujeitos da pesquisa (73%), a caminhada não é uma atividade para ser controlada por especialistas, sejam estes médicos ou educadores físicos. A maioria também concorda que caminhar é uma atividade espontânea (77%), que deve ser realizada como fonte de satisfação pessoal e conforme disposição e interesse do praticante (77%).

Entretanto, a maioria dos sujeitos se mostram conscientes em relação ao exame médico preventivo (como uma espécie de comprovante de garantia das condições de saúde adequadas à prática) e tampouco repudiam a orientação profissional (53%), que consideram de utilidade, porém, não necessária (gráfico 5).

Dois sujeitos nos revelaram que a caminhada não é apenas atividade física, porém, algo mais, uma atividade contemplativa, reflexiva, um momento que supera até mesmo algumas expectativas de outras práticas:

“Se a caminhada, para mim, fosse apenas atividade física, eu caminharia em volta do quarteirão”. (Sujeito A)

“Caminhar para mim é espiritualidade. Depois que comecei a caminhar, o futebol do fim de semana ficou pequeno, perdeu o sentido”. (Sujeito B)

66% 26% 8% 53% 40% 7% 86% 7% 7%

Estes dados podem ser interpretados a partir das considerações de Mészáros (2007) sobre a busca de objetivos livremente escolhidos pelos indivíduos como ponto fundamental para a concretização de suas expectativas e benefícios prometidos pela atividade que se realiza.

Assim, a caminhada pode ser interpretada como uma forma de apropriação do ‘tempo disponível’, isto é, uma ação que “emerge das próprias deliberações autônomas” do ser humano, constituindo-se em uma “maneira de transformar os potenciais emancipatórios da humanidade na realidade libertadora da vida cotidiana” (MÉSZÁROS, 2007, p. 53).

A recusa ao especialista e ao controle corporal / social por ele representado pode ser o fator que possibilita a satisfação pessoal e a sensação de liberdade, aspectos tão caros aos sujeitos da pesquisa em sua relação com a caminhada. Esta falta de controle, embora possa ser interpretada como exposição desnecessária aos riscos contra a saúde – pela suposição de que não conheçam a caminhada (como exercício físico) do ponto de vista biomédico e científico, portanto – não significa, entretanto, que não possuam saberes práticos sobre a atividade que realizam.

Na fala de um dos entrevistados, revelou-se que a caminhada é algo desde há muito incorporado a um determinado modo de vida, isto devido às condições materiais de

15% 77% 73% 53% 73% 7% 13% 26% é assunto exclusivo de especialistas deve ser realizada livremente é fonte de satisfação pessoal orientação profissional é necessária

Gráfico 5 - Opiniões gerais sobre a caminhada:

Concorda Não concorda

existência específicas, mas que, posteriormente, tornou-se parte de seu estilo de vida:

“Quando eu tinha 7 anos, caminhava 12 km diariamente para ir à escola”. (Sujeito C)

Isso demonstra que caminhar não é uma experiência nova para este sujeito, pois que já era praticada de forma utilitária, e talvez tal consideração seja válida aos demais. A mudança, entretanto, se opera no modo como a caminhada se reincorpora ao momento atual: não mais como uma necessidade cotidiana, porém, como atividade prazerosa.

Dentre os aspectos considerados pelos sujeitos como mais importantes para a prática da caminhada (gráfico 6), o gosto pela atividade e a sensação de liberdade que ela propicia foi o mais indicado (66%), preferencialmente realizada em lugares que atentam para a questão das paisagens naturais e por lugares onde a história e cultura se revelam (46%). O exame médico aparece como algo importante (40%) para se caminhar sem pôr em risco a saúde.

40% 46%

66%

86%

46%

40%

Mais importante Menos importante

Gráfico 6 - O que é mais e menos importante na caminhada:

exame médico preventivo sensação de liberdade lugares naturais e históricos

caminhar mais rápido apelo da propaganda uso de equipamentos eletrônicos

Os sujeitos rejeitam a caminhada como atividade imposta pela propaganda (86%) e consideram que caminhar mais rápido (46%) não é algo importante nesta atividade, tampouco o uso de equipamentos eletrônicos como meio de controle da atividade (40%).

A sensação de liberdade e o contato com áreas verdes e ambientes rurais, predominantemente, e que oferecem possibilidades de aquisição de um conhecimento despreocupado com a objetividade científica, demonstra o quanto a caminhada, para a maioria dos sujeitos participantes, parece ser compreendida a partir da perspectiva de Gros (2011), ou seja, relaxamento, comunhão com a Natureza, sensação de plenitude, algo que não requer aprendizado prévio ou específico, tampouco equipamentos sofisticados, onde basta apenas a presença pessoal, o espaço a percorrer e o tempo a desfrutar, constituindo-se em um momento de lazer e uma experiência espiritual.

A caminhada, do modo como praticada pela maioria dos sujeitos da pesquisa, talvez possa ser interpretada como uma

Atividade física ligada à incorporação ao estilo de vida, isto é, (que

diz respeito) às práticas sem o intuito de alcançar os limites de alto

rendimento físico do organismo, privilegiando o antissedentarismo, o prazer pela prática e a socialização. Podem ou não ser sistematizadas, embora não excluam o sentimento de esforço e cansaço (ALMEIDA et.al., 2012, p. 48).

Cada qual ao seu passo, em seu ritmo próprio – foi assim que se deu a caminhada entre Analândia e São Carlos. Um tipo de caminhar terapêutico e meditativo, se podemos assim afirmar, um passeio que distrai a mente, que acalma e excita os sentidos, que provoca percepções e que remete a um esforço físico controlado pelas sensações subjetivas de cansaço e não, exclusivamente, por controles fisiológicos pré-determinados por aparelhos tecnológicos.

Uma caminhada no sentido de ‘estar no mundo’ e fazer dele parte, uma caminhada que, por onde se passa, vai se deixando para trás não um espaço percorrido, mas um lugar que será sempre lembrado e reconhecido.

Figura 1 – Estrada rural entre Analândia e São Carlos, observando-se o Morro do Cuscuzeiro ao fundo. Foto do autor (2013).

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