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2.2 A caminhada e seus usos culturais e sociais no Brasil

2.2.4 Cortejos fúnebres

Morrer é uma condição natural do ser humano e uma expectativa certeira de quem vive. Entretanto, com os constantes progressos da ciência e da tecnologia e com o homem cada vez mais civilizado, isto é, distante de sua condição natural, a morte tornou-se uma experiência também distante do próprio homem. Parece que ela não mais pertence à esfera natural da existência e, sim, apenas se constitui em mais um acontecimento banal da vida em sociedade, pois somos tão bombardeados, diariamente, pela televisão e pelos jornais, por notícias de assassinatos e acidentes fatais que, talvez tenhamos nos tornado insensíveis à morte, principalmente quando esta não diz respeito a alguém próximo.

17 Conforme Bruno (1953), apenas a Venerável Ordem Terceira do Carmo, com a tradicional

procissão do Enterro, ainda mantinha certo prestígio junto à população e a crítica social (conduzida pela imprensa de então, que tratava comumente as manifestações populares com irreverência e ironia).

18 Em pesquisa de Carlos Rodrigues Brandão sobre as festividades da Semana Santa no município

de Pirenópolis/GO, verificou-se que a tradição do catolicismo popular se faz intensamente presente na rememoração dos supostos acontecimentos históricos que antecederam à crucificação, morte e ressurreição de Cristo (observado nos trajes, gestos e rituais típicos que caracterizavam uma devoção contrita, respeitosa e solene). Ao longo da semana de celebrações, inúmeras procissões são realizadas (de N. S. das Dores, dos Passos, das Palmas, do Enterro, da Aleluia), confirmando a vocação do “povo da caminhada” (BRANDÃO, 1989).

Entretanto, se para os nossos antepassados a morte era parte da condição de estar vivo e o morto era merecedor de reverências, pois se entendia que este cumprira com êxito a etapa terrena de sua existência, atualmente, com as formas de morrer que desconsideram antigas tradições, tanto a morte quanto o morto parecem ter sido banidos do convívio social, apresentando-se a nós como mais um espetáculo ao qual somos apenas expectadores passivos e não mais participantes ativos do enredo da própria vida – até que chegue a nossa própria hora.

Nos dias de hoje, portanto, à dor da perda de um ente querido segue-se todo um processo burocrático – e não mais um ritual de celebração, como ditava as antigas tradições – que tende a nos afastar da possibilidade da alcançar a sabedoria e a serenidade para lidar com esse momento. Na maioria dos enterros atuais, o cortejo fúnebre praticamente inexiste, e a procissão mortuária ficou reduzida a alguns poucos passos, a saber, do deslocamento do velório – geralmente um prédio contíguo ao cemitério – até a funérea campa.

O melhor que fazemos, e isso a apenas uns poucos privilegiados, seja pelos seus feitos esportivos, artísticos ou políticos, é conceder as honras de um périplo pelas ruas da cidade, ainda que com o intuito de atender às demandas da população em despedir-se de seus ídolos. Não se trata mais de uma celebração da morte, de um cortejo fúnebre, mas de uma celebridade que morre e, pela sua influência na sociedade, considerada merecedora de um último adeus público.

Contudo, até meados do século XIX, morte e vida seguiram juntas, em paralelo, onde o “(...) sagrado e profano interagiam e se diluíam em uma única forma de conceber a fé e a religião” (PAGOTO, 2004, p.19). Isto, entretanto, até a chegada do discurso sanitarista ganhar cada vez mais adeptos entre as autoridades e a própria população que, gradualmente, foi persuadida a adotar as medidas higienistas. É assim que os cemitérios vão tornar-se o símbolo do progresso e sinal de higiene em uma cidade em desenvolvimento e rumo à modernidade.

A questão da morte no Brasil foi tão relevante para a vida social e religiosa que, em 25 de outubro de 1836, um episódio na Bahia conhecido como Cemiterada, marcou a revolta popular contra as autoridades locais e a proibição do costume de se enterrar os mortos nas igrejas, ao mesmo tempo em que concedia privilégios a particulares para comercializar os sepultamentos no ainda não inaugurado cemitério do Campo Santo, em Salvador.

O protesto teve início com a convocação das irmandades, ordens religiosas e organizações católicas leigas que, reunindo centenas de seus membros no pátio da igreja da Ordem Terceira de São Domingos, caminharam em direção a Câmara Municipal, o centro político de Salvador. Vestidos a caráter e com suas cruzes e bandeirolas coloridas, a multidão de confrades e a população que ali se aglomerava, despertada que fora pelo repicar dos insistentes sinos das igrejas, intimidou a própria polícia local, que se viu impotente para exercer sua força diante da procissão que para ali se encaminhou.

Entre os vários discursos e protestos veementes contra a perda do direito aos ritos funerários, a multidão foi se inflamando até que, aos gritos de “morra ao Cemitério”, a turba ensandecida, deslocou-se para o tal Campo Santo e “com machados, alavancas e outros ferros, e em número de 3 mil pessoas, em menos de uma hora, deram com o Cemitério abaixo, quebrando tudo e deitando fogo ao que podia arder” (Jornal do Commercio apud REIS, 1991, p. 17).

A violência dessa marcha de protesto que teria ocorrido durante todo o dia foi tamanha que nada foi poupado: portões de ferro, pilares, grades, cocheiras, o muro que cercava o local, carruagens e a própria capela deitou-se a baixo. Ao término do massacre, os manifestantes caminharam de volta, triunfantes, ao pátio municipal, trazendo nas mãos os espólios da derrocada do Campo Santo como verdadeiros troféus de sua vitória. A caminhada dos revoltosos marcou a intensidade de sua indignação e o ápice de seus protestos.

Os costumes referentes à aproximação do homem com a morte, que os tais manifestantes defendiam com ardor, eram reflexos do domínio que a Igreja Católica exerceu sobre os indivíduos e a sociedade durante a Idade Média e até meados do século XVIII, na Europa. Enterrar os mortos nas igrejas ou nos cemitérios imediatos às mesmas era uma tradição que vinha desde o século V e que promovia a integração da morte, embora fato comum à vida cotidiana, à condição de merecedora de considerável respeito.

Pela tradição do catolicismo popular, uma morte sem o devido cortejo fúnebre ou sepultamento adequado era motivo para que os vivos temessem os mortos. O ritual fúnebre estava associado a algumas crenças, dentre elas, a de que a morte é apenas ocasião de passagem para o outro mundo e não a aniquilação total de uma existência individual. Deste modo,

(...) as pessoas para quem não se observam os ritos funerários são condenadas a uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo dos mortos ou se incorporar à sociedade lá estabelecida. Estes são os mais perigosos dos mortos. Eles desejam ser reincorporados ao mundo dos vivos, e, porque não podem sê-lo, se comportam em relação a ele como forasteiros hostis. Eles carecem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu próprio mundo e consequentemente devem obtê-los à custa dos vivos. Ademais, estes mortos sem lugar ou casa às vezes possuem um desejo intenso de vingança (Van Gennep apud REIS, 1991, p. 89).

Disso decorria, por exemplo, a pompa que acompanhava os funerais de soberanos, aristocratas e burgueses, comportamentos típicos do europeu. Os ritos funerais, assim, se caracterizavam pelo luxo dos caixões, pela enorme quantidade de velas, pela multidão que acompanhava o périplo, pela soberba do vestuário e, por fim, pelo local escolhido para a sepultura.

Mas a caminhada não se fazia presente apenas durante o cortejo final, mas também, no momento da extrema unção. O último sacramento era marcado pela procissão dos viáticos, isto é, aqueles que levavam ao moribundo a última comunhão eucarística e que servia ao propósito de provisão espiritual rumo à eternidade. Na caminhada dos viáticos, as ruas eram “atapetadas com folhas de cravo, canela e laranjeira, as casas se iluminavam com lanternas e castiçais, os acompanhantes levavam tocheiros acessos e cantavam rezas apropriadas à ocasião” (REIS, 1991, p. 104), enquanto que as pessoas, durante o trajeto, ao verem o séquito passar, ajoelhavam-se e batiam no peito em sinal de contrição e respeito.

A morte, assim, era reverenciada. Como mais uma etapa importante na vida de uma pessoa, tal qual o nascimento, o batizado, o casamento, etc., morrer era, pois, um desses momentos únicos e significativos na vida social de qualquer indivíduo e, como tal, ao falecido devia-se a honra de manifestações rituais que marcassem a sua passagem pela terra dos viventes, que a isso denominavam o ritual da ‘boa morte’.

A presença da religiosidade no cotidiano brasileiro era intensa, com igrejas, mosteiros e ordens que influenciavam os modos pelos quais as pessoas lidavam com a morte. Para alcançar o Paraíso celeste, o ritual da boa morte era obrigatório e, tal celebração, legitimada pela Igreja Católica, consistia na derradeira etapa rumo ao descanso eterno. Morrer, nos tempos coloniais, era algo tão significativo que,

para os mais pobres, era a última ocasião para ser considerado alguém na sociedade, pois ser enterrado como indigente ou sem os ritos, significava ter tido uma vida pública marcada pela derrota e pelo fracasso. A derradeira caminhada que acompanhava o defunto, portanto, era o emblema representativo de uma boa-morte. A celebração da morte tinha início muito antes do moribundo despedir-se da vida, quando a este cabia deixar testamento de todos os bens e não deixar dívidas pendentes. Falecido o distinto, ouvia-se o repicar dos sinos das igrejas pelo decorrer das horas, missas eram rezadas pela intenção de sua alma e, no périplo funeral, uma multidão se reunia para acompanhar o cortejo, caminhando pela cidade, geralmente à noite, pois os efeitos das velas e tochas carregadas pelos participantes durante a caminhada em direção ao solo sagrado da igreja onde se efetuaria o sepultamento embelezavam ainda mais a grandiosidade do evento.

No contexto da morte, praticamente em todo o Brasil, podia-se dizer que ela era uma festa e um evento social dos mais aguardados pela população (REIS, 1991). Quanto mais suntuoso o cortejo, quanto mais pessoas caminhando pelas ruas – sejam padres, bispos, mulheres, crianças, escravos – maior consideração era dada ao defunto. Pompa e circunstância eram a tônica do último momento e os padres e demais religiosos das irmandades não economizavam no luxo das indumentárias e variedade de ornamentos para ostentar a honra do morto.

O cortejo funeral, com toda a sobeja que lhe tornava um momento especial, não era apenas coisa de gente branca e rica. Dentre os negros – escravos ou libertos – pairava uma hierarquia que podia ser observada durante a celebração da morte. Veja-se, por exemplo, alguns trechos da descrição de Debret sobre o enterro de um negro, considerado como nobre entre seus pares, no Rio de Janeiro, século XIX:

Ao morrer ele é exposto estendido na sua esteira com o rosto coberto e a boca fechada por um lenço. Quando não possui nenhuma das peças de seu traje africano, o mais artista de seus vassalos supre a falha traçando no muro o retrato de corpo inteiro e de tamanho natural do monarca defunto no seu grande uniforme embelezado com todas as suas cores. (...) Embora nenhum ornamento funerário designe a porta da casa do defunto, pode ela ser reconhecida, mesmo de longe, pelo grupo permanente de seus vassalos que salmodiam, acompanhando-se ao som de instrumentos nacionais pouco sonoros mas reforçados nas palmas dos que os cercam (...). A esse ruído monótono, que se prolonga desde o amanhecer, mistura-se por intervalos a detonação de bombas e isso

dura até seis ou sete horas da noite quando se inicia a organização do cortejo funerário. A procissão é aberta pelo mestre de cerimônias (...) fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obstrui a passagem; erguendo-se o negro fogueteiro soltando bombas e rojões e três ou quatro negros volteando dando saltos mortais ou fazendo mil outras cabriolas para animar a cena. (...) O cortejo dirige-se para uma das quatro igrejas mantidas por irmandades negras (...). Durante a cerimônia do enterro o estrondo das bombas, o ruído das palmas, a harmonia surda dos instrumentos africanos, acompanham os cantos dos nacionais, de ambos os sexos e de todas as idades, reunidos na praça diante do pórtico da igreja (...) (DEBRET, 1972, p. 179-180).

O barulho e a animação que acompanhava essa última caminhada eram motivados por uma crença ancestral que, segundo diziam eles, uma morte silenciosa era motivo de má sorte. Por isso as bombas, os cânticos, os saltos mortais, as reviravoltas acrobáticas e as bengaladas eram elementos comuns do cortejo fúnebre de um negro, indicando, de certo modo, que a vida continua apesar da morte de quem se foi.

Assim como Salvador, São Paulo também teve manifestações de protestos contra a interdição dos ritos fúnebres. Com o discurso médico do ideal do higienismo tem início uma ‘limpeza urbana’, contudo, não sem muitos conflitos com a população que não aceitava a destituição de suas formas tradicionais de enterrar seus mortos. Em 1858, ano de inauguração do Cemitério da Consolação – o primeiro a atender exigências sanitaristas – o presidente da Província, José Joaquim Fernandes Torres, proclamava o seguinte discurso:

Recommendo-vos a determinação de uma quantia maior, que a do orçamento vigente, para auxiliar as obras do cemitério desta capital... É de summa necessidade que se conclua quanto antes, essa importante obra, altamente reclamada por uma cidade que, como a nossa cresce todos os dias em população. Quando os cemitérios extra-muros não fossem uma necessidade de hygiene publica, nem por isso deveria merecer menos a vossa atenção a obra, á que me refiro, já para se não perderem as despesas ali feitas, já porque é certo que semelhantes construções concorrem para o aformoseamento das grandes cidades (...) (O Correio Paulistano, 9/2/1858 apud PAGOTO, 2004, p. 106)

O novo modelo de urbanização, fundamentado em pressupostos sanitaristas, e a consequente racionalização da morte, não pouparia a ninguém, nem negros e brancos, pobres ou ricos. Não mais os religiosos e as pessoas em comum deteriam

o domínio dos ritos fúnebres, porém, todos estariam sujeitos à medicalização da morte e às empresas funerárias, agora as responsáveis pela organização do enterro. A festa da boa morte estava chegando ao fim, pois, afirmavam os médicos reformadores, a causa de inúmeras doenças e surtos epidêmicos estava associada aos miasmas – o ar pestilento – que exalava dos corpos em putrefação. Para eles, “nada mais deplorável, anti hygienico, e tão retrogrado do ponto de vista da salubridade, como o enterramento nas igrejas” (O Correio Paulistano, 9/2/1858 apud PAGOTO, 2004, p. 106).

Assim, para o bem da saúde pública, diziam os médicos, os mortos deveriam ser afastados dos vivos e enterrados em lugares adequados, que eram os cemitérios extramuros. A caminhada pelas ruas, como expressão do último adeus ao falecido, com sua pujança característica, ainda que com protestos, deixaria, em breve, de integrar os novos modos de vida de uma cidade que, rumo ao progresso, não pararia mais de crescer.

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