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Caminhada e estilo de vida: implicações no lazer e na qualidade de vida

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Academic year: 2017

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INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS

CAMINHADA E ESTILO DE VIDA:

IMPLICAÇÕES NO LAZER E NA QUALIDADE DE VIDA

MARCELO ROBERTO ANDRADE AUGUSTI

Março - 2014

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE (PEDAGOGIA DA MOTRICIDADE HUMANA)

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do

Câmpus de Rio Claro,

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Marcelo Roberto Andrade Augusti

Caminhada e Estilo de Vida: implicações no lazer e na qualidade de vida

Orientadora: Profa. Dra. Carmen Maria Aguiar

Rio Claro / SP 2014

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do

Câmpus de Rio Claro,

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Em 220 a.C., Eratóstenes de Cirene, responsável pela biblioteca de Alexandria e apaixonado por geografia, dedicou-se a uma tarefa até então impensável: medir a circunferência da Terra.

Convicto de que a Terra não era plana, porém esférica, Eratóstenes, como bom matemático e atento observador da natureza, sabia que uma circunferência tem 360° e, talvez imaginando que a Terra pudesse ser repartida em diversas frações iguais, caso descobrisse o ângulo de uma dessas frações, ele poderia dividir 360 pelo valor do ângulo e, então, descobrindo o número de frações que formavam a Terra, determinar o tamanho de sua circunferência.

A partir da observação das sombras projetadas pelo Sol em Alexandria, no primeiro dia do solstício de verão quando o Sol se encontrava em seu ponto mais alto no céu, comparada com as informações de viajantes referentes à incidência do Sol, no mesmo dia e horário, sobre um poço que se localizava na cidade de Siena – o outro ponto de observação – a Eratóstenes cabia apenas saber qual a distância entre Alexandria e Siena.

A tarefa de medir a distância entre as duas cidades coube aos bermatistas, especialistas na técnica de caminhar sempre no mesmo passo, com a mesma medida e capazes de calcular distâncias lineares com razoável precisão.

Sob os auspícios do rei Ptolomeu III, os bermatistas partiram, caminhando, de Alexandria a Siena, concluindo, após o desfecho da jornada, que estas distavam cinco mil estádios1 uma da outra.

Com o resultado em mãos, Eratóstenes sentenciou em, aproximadamente, 250 mil estádios ou 39.250 km o tamanho da circunferência da Terra, e isso apenas por meio da observação do Sol, dos conhecimentos matemáticos e geográficos da época e, principalmente, por meio de uma caminhada...

Atualmente, com toda a tecnologia à disposição dos cientistas, a medida aproximada da circunferência da Terra é calculada em 40.075 km.

1 A medida de 1 (hum) estádio (medida de comprimento utilizada para aferir a distância de uma

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RESUMO

A pesquisa teve o propósito de investigar a caminhada como um elemento característico de um estilo de vida, direcionado para a qualidade de vida e o lazer. A partir de uma perspectiva histórica foi possível localizar a caminhada no âmbito social e, assim, determinar uma trajetória de seus usos e apropriações culturais no Brasil. Estabelecido o percurso desta prática e das atividades adjacentes, foi possível estabelecer relações entre a caminhada, os modos de vida e os estilos de vida que emergem desses contextos. Posteriormente à elaboração desse panorama histórico, buscamos, nos domínios eletrônicos, verificar a existência de grupos de caminhantes que atendessem ao perfil procurado, encontrando o grupo Peregrinosrp, de Ribeirão Preto/SP, que evidenciou elementos que consideramos adequados ao propósito da investigação, ou seja, a caminhada como forma de lazer, expressão de um estilo de vida e reverberando na qualidade de vida, porém, como algo compreendido além do contexto do exercício físico. A pesquisa de campo foi realizada durante um evento do grupo, uma caminhada entre os municípios de Analândia/SP e São Carlos/SP, em percurso rural de, aproximadamente, dezenove quilômetros, onde, ao final da atividade, foi feita a coleta dos dados a partir de uma amostra de quinze sujeitos, via questionário e, posteriormente, uma entrevista via e-mail com os idealizadores e organizadores da proposta. Os resultados obtidos das análises das informações, fundamentados nos conceitos e definições de lazer, qualidade de vida e estilo de vida, apontaram que a caminhada do Peregrinosrp manifesta característica que, a princípio, podemos interpretá-las como expressão de estilo de vida voltado para a qualidade de vida. Entretanto, sugerimos que outras investigações se sucedam, com tal proposta e em maior escala, pois a amostra considerada nos permitiu apenas interpretações parciais do fenômeno abordado, inviabilizando considerações generalizantes.

Palavras-chave: Modos de vida. História e Cultura. Tempo livre.

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ABSTRACT

The research aimed to investigate the walk as a feature of a lifestyle, focused on quality of life and leisure. From a historical perspective be found walking in the social sphere and thus determine a trajectory of its uses and cultural appropriations in Brazil. Established the route of this practice and adjacent activities, it was possible to establish relationships between walking, livelihoods and lifestyles that emerge from these contexts. Subsequent to the preparation of this historical overview, we seek, in the electronic domain, check for groups of hikers who met the profile sought. Peregrinosrp found the group of Ribeirão Preto / SP, which revealed elements that we consider appropriate to the purpose of the investigation, ie, walking as leisure, expression of a lifestyle and reverberating quality of life, but as something understood beyond the context of the exercise. The field research was carried out for a group event, a hike between the towns of Analândia / SP and São Carlos / SP, rural route in approximately nineteen kilometers, where, at the end of the activity, was taken to collect data from a sample of fifteen subjects via questionnaire and later an interview via email with the creators and organizers of the proposal. The results of the analysis of information, based on the concepts and definitions of leisure, quality of life and lifestyle, showed that walking Peregrinosrp expresses the feature that, in principle, we can interpret them as an expression of lifestyle focused on quality of life. However, we suggest that further investigation is succeeding with this proposal and on a larger scale, for the considered sample allowed us only partial interpretations of the phenomenon addressed, preventing generalizing considerations.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 01

2 PANORAMA HISTÓRICO E CULTURAL 08

2.1 A caminhada, a história e a cultura 08

2.2 A caminhada e seus usos culturais e sociais no Brasil 12

2.2.1 Trilhas indígenas: as primeiras caminhadas 15

2.2.2 Caminhos do mar: entre o litoral e o planalto 18

2.2.3 Peregrinações e procissões 22

2.2.3 Cortejos fúnebres 30

2.2.5 Caminhada e cidade 36

2.2.6 Redescobrindo as trilhas 41

2.2.7 Atividade física 43

3 ANÁLISE E INTEPRETAÇÃO 48

3.1 Caminhada, estilo de vida e qualidade de vida 48

3.2 A caminhada e a pesquisa 72

3.3. Resultados 74

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 83

BIBLIOGRAFIA 90

APÊNDICE A 95

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1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como enfoque geral situar, historicamente, a prática da caminhada no Brasil, a partir de seus usos culturais e apropriações sociais. Não se trata de uma pesquisa da caminhada no sentido de propor orientação ao exercício de sua prática, contudo, de uma investigação sobre caminhada, ou seja, observá-la em contextos históricos e sociais ao qual se manifesta para, então, tentar compreendê-la para além de um objeto, porém, como fenômeno sociocultural em seus variados sentidos, significados e formas históricas de expressão. Disto decorre a problematização deste estudo: como a caminhada, para além de um exercício físico destinado à saúde, pode contribuir, nos dias atuais, para a melhora da qualidade de vida do indivíduo a partir das preferências que compõe seu estilo de vida?

Na abordagem proposta por este estudo pretendemos, assim, ampliar a compreensão da caminhada, o que implica em exceder o entendimento exclusivo e especializado que a Educação Física tem a ela dedicado. No contexto de tal abordagem, sentidos e significados distintos emergem conforme se verifica seus usos a partir dos costumes e das tradições de uma sociedade, dos seus modos de organização política e econômica e das peculiaridades do jeito de ser de cada indivíduo ou grupos sociais. De modo, a compreensão da caminhada, em sua diversidade de expressões e multiplicidade de manifestações, torna-se um interessante desafio para o investigador.

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Para Guedes (1999), os primeiros debates sobre a relevância de se considerar o movimento humano em uma perspectiva sociocultural, datam da década de 1920, com reflexões relacionadas à filosofia e história da Educação Física. Entretanto, os conteúdos epistemológicos do campo de conhecimento em questão contemplam – não de modo exclusivos, porém, predominantes – temas desenvolvidos, principalmente, por disciplinas acadêmicas como a Biomecânica, o Desenvolvimento e Aprendizagem Motora e a Fisiologia do Exercício, em geral legando a um segundo plano de importância às abordagens do corpo e movimento humano que são consideradas pela Sociologia, Antropologia, Pedagogia, História e Filosofia.

As grandes áreas de conhecimento da Educação Física, portanto, constituem-se das Ciências Biológicas e da Saúde, e os estudos socioculturais do movimento humano aparecem como uma área de menor importância para a formação profissional e atuação no mercado de trabalho. Assim, para a concretização de projetos científicos dá-se a preferência por investigações em linhas de pesquisas que atentam para os pressupostos biológicos relacionados ao movimento humano2, não considerando que nas interfaces da Educação Física com as Ciências Humanas e Sociais é que se poderão encontrar subsídios teórico-metodológicos capazes de proporcionar uma visão ampliada do fenômeno que se constitui o movimento humano e das próprias intervenções pedagógicas da Educação Física na vida social (GUEDES, 1999).

As propostas de estudos na perspectiva histórica e cultural, logo, visam a compreender as relações entre o corpo humano e a gama de movimentos que dele emana e de ambos com os aspectos referentes aos modos de ser de cada sociedade, constituindo-se ainda em uma referência para analisar e interpretar o mundo vivido. Trata-se, sobretudo, de investigações que, dentre outros, abordam temas relativos à maneira como a atividade física, o movimento humano e os cuidados com o corpo relacionam-se com o lazer (este, entendido como um

2 Em novembro de 2012, o autor empreendeu uma investigação com o intuito de obter dados

referentes à produção do conhecimento científico sobre a prática da caminhada no âmbito da Educação Física. A pesquisa, de caráter exploratório e qualitativo, inicialmente, abordou os grupos cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, selecionados pelas relações entre os

termos “caminhada”, “educação física”, “atividade física” e “práticas corporais”. Posteriormente, na

Plataforma Lattes, buscou-se informações sobre publicações que traziam o termo “caminhada” nos

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fenômeno cultural que reproduz o estilo de vida do indivíduo ou de uma coletividade) e afetam, justamente, a qualidade de vida3.

A abordagem inicial deste estudo, portanto, se fará a partir das trajetórias da caminhada no Brasil, onde buscamos encontrar elementos do cotidiano que pudessem ser apontados como fatores inelutáveis da ocorrência de formas de organização social e estilos de vida característicos de determinadas épocas e que também fossem considerados como representantes de uma provável ‘cultura’ brasileira.

Estabelecido o olhar sobre o objeto de estudo como fenômeno histórico e sociocultural, determinamos as trajetórias da caminhada – isto é, catalogamos suas formas de manifestação recorrentes ao longo do tempo – a partir da reconstituição parcial dos modos de vida, ou seja, direcionando a atenção para cenas comuns do cotidiano, cujos fragmentos nos serviram de suporte para averiguar se as atividades ou práticas associadas à caminhada estabeleciam relações entre esta e os estilos de vida que se expressavam no contexto sociocultural de cada época histórica.

Das disposições gerais do enfoque proposto, portanto, a pesquisa toma rumo ao objetivo específico que determinou as fronteiras dessa investigação, qual seja, analisar a caminhada como elemento característico de um estilo de vida que se convencionou denominar de ativo e saudável. Tal estilo de vida diz respeito à inclusão de atividades físicas na rotina dos indivíduos como um meio propício para obtenção do bem-estar físico, espiritual e social e, assim, presume-se, alcançar um patamar mais elevado de qualidade de vida.

Como se trata de tema de vasta amplidão e, certamente, não teríamos a condição elementar para empreender uma longa investigação que nos desse suporte para uma abordagem abrangente e esgotadora sobre a temática em voga, optamos como espaço e tempo que deflagra a pesquisa e a ela abarca, o Brasil do século XVI até os dias atuais, porém, não deixando de considerar algumas situações históricas e culturais do mundo europeu que tanto nos influenciou em hábitos e costumes, e

3 A coleção

Saúde em debate em Educação Física, em três volumes, traz importantes reflexões

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mesmo outras que, porventura, escapem a tal espaço / tempo, mas que, contudo, dão o sentido ao escopo para melhor compreendê-lo.

Considerando a caminhada e os usos que dela se faz e as apropriações individuais ou de grupos específicos como um elemento cultural que emerge dos modos de vida dos tipos de sociedades que vão se configurando ao longo dos tempos, assim, dirigimos a ela o olhar perscrutador para então, buscamos a compreensão de suas variadas formas de manifestações que expressam momentos que caracterizam determinadas épocas históricas.

Para alcançarmos o objetivo determinado, dividimos a investigação em duas partes, a saber: na primeira, denominada como “Panorama Histórico e Cultural”, procuramos estabelecer as possíveis trajetórias da caminhada no Brasil, desde a chegada do colonizador europeu, passando pelos índios e escravos africanos até os dias atuais. Traçar esse percurso da caminhada não significa que pretendemos estabelecer uma história da caminhada, porém, fazer a tentativa de desvendar alguns elementos sociais e culturais que serviram de pano de fundo ao cenário onde a caminhada se fez presente, incontestavelmente, no cotidiano, ainda que não percebidas sua relevância e particularidades pelos atores do momento.

Nesta primeira etapa da pesquisa, portanto, o levantamento das fontes bibliográficas foi de importância fundamental para que a caminhada pudesse ser situada historicamente, em contextos socioculturais e econômicos que caracterizaram os modos de vida no Brasil e as transformações em suas formas de expressão, usos e apropriações pelo indivíduo e pela sociedade.

A escolha do ambiente sociocultural e a demarcação do perímetro do objeto de estudo, salvo as considerações previstas em relação aos aspectos europeus que nos influenciaram alguns estilos de vida, portanto, limitou-se à sociedade brasileira e às mudanças gerais que proporcionaram transformações radicais nos modos de vida, considerando os elementos típicos que caracterizaram a vida na colônia, durante o império e o primeiro surto de modernização no país e, por fim, da industrialização até os aspectos marcantes da vida urbana contemporânea.

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afastariam do objeto de estudo. Assim, desde o início da investigação bibliográfica, manter o foco na caminhada e observar o que em torno dela gravitava foi o que norteou o levantamento das fontes de informação.

Desvelar a história do Brasil em suas minúcias, portanto, não é pretensão desta pesquisa e, tampouco, nos consideramos apto a tal exercício. Entretanto, para situar historicamente a caminhada no que se revela nos contextos socioculturais do Brasil, recorremos a uma metodologia que pudesse assegurar uma noção geral da sociedade brasileira e suas transformações ao longo do tempo.

Nesta primeira parte, logo, o que fizemos foi trazer recortes do cotidiano, juntar fragmentos de acontecimentos recorrentes aos modos de vida que caracterizaram a existência do indivíduo e suas preferências e da sociedade e suas tendências durante as épocas históricas aqui consideradas. O que nos importa, nesse primeiro instante é mostrar os modos de vida e como a prática da caminhada neles se manifestava.

Após essa etapa inicial da investigação, traçado um percurso da prática da caminhada em solo brasileiro, partimos para a segunda parte do estudo, que se constitui, exatamente, em verificar quais as relações que podem ser admitidas para que esta prática possa ser considerada como elemento relevante para um estilo de vida ativo onde a tônica é a busca da qualidade de vida.

É nesta segunda parte da pesquisa, denominada como “Análise e Interpretação”, que saímos a campo ao encontro de caminhantes ou grupos de caminhantes que pudessem nos revelar tais relações da caminhada com o estilo de vida ativo, no caso deles existirem.

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autônoma de caráter ecológico que atua, basicamente, no eixo Niterói -- Rio de Janeiro/RJ, com intuito de promover a educação ambiental de modo crítico e potencializar o poder terapêutico proporcionado pelo contato com a Natureza. Os roteiros incluem matas, picos, praias, ilhas, manguezais e campos; Caminhada Mineira, ligada ao segmento de caminhadas ecológicas, cujo intuito é fazer destas uma atividade segura e de baixo custo. Busca interagir com moradores das localidades visitadas, utilizando-se dos serviços oferecidos (alimentação, hospedagem e guias) pelos povoados.

Além dos grupos de caminhantes, também encontramos diversos roteiros destinados aos mais diversos fins (religiosos, turísticos, ecológicos), cujos traçados foram determinados por valores históricos e / ou culturais e administrados por associações particulares (com ou sem fins lucrativos) ou agências governamentais, como: Caminho da Fé (SP), Caminho do Sol (SP), Caminho da Luz (MG), Caminho das Missões (RS), Passos de Anchieta (ES), Passos dos Jesuítas (SP), dentre outros.

Como eram muitas as opções dentre o que procurávamos, isto é, um grupo que fizesse da caminhada uma expressão do estilo de vida de seus adeptos, de livre participação, sem fins lucrativos, que percorresse estradas rurais, em contato com a Natureza e buscando valorizar aspectos históricos e culturais das localidades, decidimos pelo grupo de caminhantes que atende por “PEREGRINOSRP”, de Ribeirão Preto (SP).

Cabe ressaltar que não era o grupo de caminhantes, em si, o foco da investigação, porém, a caminhada e os indivíduos que dela participavam e que, pelo perfil do conjunto, pudessem tornar-se sujeitos da pesquisa. Portanto, as menções em relação ao grupo e a sua filosofia se resumem à sua caracterização e objetivos gerais como será exposto em momento oportuno.

A obtenção dos dados empíricos se fez por meio de questionário e / ou entrevista estruturada, após contato inicial com o representante do grupo e organizador dos eventos, ao qual nos atendeu prontamente e manifestou interesse favorável à pesquisa. Foram duas as participações de campo para observação e coleta de dados.

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da qualidade de vida, não em seu aspecto exclusivo relacionado à saúde fisiológica, porém, a partir de um conjunto de fatores capazes de agregar sentido e significado às experiências de vida (sociabilidade, contato com a natureza e outros modos de vida, aquisição de conhecimentos sobre história e cultura local, desprendimento do cotidiano, etc.).

Pelo que foi analisado das informações obtidas por meio dos sujeitos colaboradores, acreditamos que as interpretações relacionadas aos dados empíricos em conjunto com o suporte proporcionado pelo referencial teórico, tenham suprido a demanda para as nossas reflexões e, com isso, esperamos ter alcançado o objetivo ao qual a pesquisa se propôs a dar cabo.

Deste modo, a perspectiva ampliada, obtida a partir do estudo dos contextos históricos e culturais onde a caminhada se manifestava em suas múltiplas formas, funções, sentidos e significados, nos proporcionou a base conceitual das análises e interpretações subsequentes ao levantamento inicial onde, em conjunto com outros autores relevantes ao caso, buscamos evidenciar a caminhada como consequência de um estilo de vida a partir do princípio de que ela, para tanto, se apresente como parte de um conjunto de qualidades distintas que expresse as características do indivíduo ou de um grupo social.

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2. PANORAMA HISTÓRICO E CULTURAL

2.1 A caminhada, a história e a cultura

O estudo da prática da caminhada em uma perspectiva histórica e cultural evoca, primeiramente, o exercício da memória. Em suas trajetórias, desde os primórdios da existência humana, quando caminhar era um recurso corporal necessário à sobrevivência da espécie humana e passando por todos os seus modelos de apropriações até alcançar o formato contemporâneo de uma racionalização técnico-instrumental traduzido em atividade física, a caminhada revelou, por meio de seus mais distintos usos sociais e expressões culturais, o desenvolvimento histórico do próprio homem – enquanto indivíduo e ser social.

Os sentidos atribuídos à caminhada ao longo de sua trajetória variaram conforme os aspectos econômicos e políticos, sociais e culturais dos contextos aos quais dela se fazia uso. Caminhar, portanto, é uma atividade humana que, no decorrer da existência e do tempo histórico da humanidade, sofreu mudanças significativas em suas formas de utilização a partir dos impactos gerados por modos de viver e dos estilos de vida que emergiram nas diversas sociedades, conforme as condições materiais se estabeleciam nas distintas formações históricas e culturais de cada época.

Ao evocarmos o exercício da memória para o estudo da caminhada, pretendemos resgatar algumas formas de pensamento e expressão urbanísticas de épocas passadas, isto é, de momentos onde formações econômico-culturais afloraram e despertaram modos de viver que foram se estabelecendo e se fundindo com suas dinâmicas, valores e costumes próprios das épocas consideradas (MOTA, 2003).

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No contexto histórico e cultural, a caminhada pode apresentar-se como atividade humana genérica ou como uma prática cultural, isto é, uma representação das maneiras pelas quais os diversos grupos que convivem na sociedade concorrem entre si pelo poder econômico e predomínio de suas concepções de mundo e seus valores.

Assim, conforme Chartier (1988) tais representações, que expressam o social e o cultural, ao tomarem forma concreta, dão sentido à vida cotidiana por meio das práticas delas decorrentes. Portanto, investigar, na dinâmica do cotidiano, uma dada organização social e as práticas culturais que a constituem, é um modo de pensar a realidade como produto e produtora de história e cultura por meio das particularidades que a constitui e nas relações que se estabelecem entre o seu passado e o presente.

No contexto de uma história cultural que se objetiva pelo

identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma

determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”.

Constituem-se, portanto, como objetos de investigação científica, as trajetórias, as práticas, as organizações sociais, os fatos, uma existência, grupos sociais específicos, etc., localizados no tempo e em suas relações entre passado e presente (CHARTIER, 1988, p.17).

A caminhada permite-se ser investigada como uma maneira do homem comunicar-se com o mundo, pois comunicar é produzir cultura. Caminhar, em tal perspectiva, representa o inquestionável veredito de que a vida cotidiana está imersa em um mundo de cultura, isto é, de elaborações humanas historicamente localizadas e com referência a dada sociedade e seus modos peculiares de vida. Ao caminhar, pois, cada indivíduo refaz e recria a caminhada, tornando tal prática um elemento da cultura e vetor de transformações sociais.

No contexto proposto, caminhar é construir um conhecimento compartilhado entre o indivíduo que caminha e o mundo vivido4, entendendo a caminhada como meio

4 Trata-se do mundo tal qual ele é dado a todos pela experiência imediata das sensações, do contato

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subjetivo de apropriar-se da própria existência. Ela consiste, assim, na maneira como o homem apropria-se do mundo, para transformar-se e transformá-lo, o que faz dela um recurso biopsicossocial que possibilita fazer do universo algo compreensível, atribuindo sentido à existência e concebendo valores à existência e ao mundo.

Considerando que inúmeras manifestações corporais humanas são geradas na dinâmica cultural e nas inter-relações sociais (DAÓLIO, 2004), porém, não tão somente, se faz necessário que a caminhada deva ser pensada não apenas pelo viés mecânico-fisiológico que caracteriza as investigações em Educação Física, contudo, pelos referenciais das ciências humanas e sociais. É nesta interface da Educação Física com as ciências humanas e sociais que haverá a possibilidade de ampliação do entendimento do que seja a caminhada, justamente como objeto de estudo pertinente à própria Educação Física.

Privilegiada em suas bases conceituais, a Educação Física apresenta-se, enquanto ciência e filosofia, apta à compreensão da totalidade de sentidos que constituem o homem como um ser integral, na abrangência de suas dimensões biológicas, psicológicas e sociais. Portanto, ela se encontra em uma posição favorável a investir contra as representações corporais que, pela mídia e indústria, nos atingem diariamente com uma avalanche de informações sobre uma variedade de eventos relacionados ao esporte, à estética e a saúde, determinando objetivamente, conforme interesses mercadológicos, os padrões globais de beleza e comportamento (MURAD, 2009).

A caminhada representa o movimento humano sobre a terra, por excelência. Caminhar, mais que uma prática corporal ou exercício físico, é uma atividade humana que remonta a uma ancestralidade primordial, onde os homens, em suas origens imemoriais, necessitavam empreender longas jornadas a pé em busca de melhores condições de vida (FOLEY, 2003). Desde os primórdios até os dias de hoje, ao emergir das necessidades humanas mais básicas – sobrevivência da espécie – a caminhada também é uma expressão da diversidade cultural que, conforme o contexto econômico-social se manifesta com variados sentidos e distintas significações.

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Este ‘homem que caminha’ expressa os mais diversos modos de vida e sentidos da existência, tanto pelas suas crenças, no sensível e inteligível ou no que há de político e humano em suas atitudes. As procissões religiosas, os séquitos fúnebres, as migrações e peregrinações, as passeatas, as marchas militares, dentre tantas outras formas de manifestação, são maneiras onde, pelo ato de caminhar, pode-se sentir a intensidade da presença do homem no mundo; são tipos de caminhar que exprimem historicidade e cultura e conferem forma à realidade social.

Investigar a prática da caminhada a partir do prevalecente entendimento a ela atribuído atualmente – uma atividade física – regressando até às suas formas anteriores de manifestação, é um maneira de estabelecer um transcurso histórico desta prática para compreendê-la em sua totalidade, isto é, ser capaz de enxergar na caminhada mais do que técnica, estética ou esforço físico, porém, um sujeito que caminha e o movimento humano como algo dotado não apenas de razão, mas, sobretudo, de sensibilidade.

Nas pesquisas onde a caminhada se faz objeto de estudo, considerando o âmbito investigativo da Educação Física, a tendência é tomá-la a partir de seu entendimento como atividade física, relacionando-a a saúde e, assim, à área profissional ao qual se insere a Educação Física, isto é, das Ciências da Saúde5, direcionando a sua prática aos benefícios fisiológicos, principalmente, e, por extensão, ao bem-estar psicossocial e, em consequência, como um aspecto da qualidade de vida, qual seja, a prática regular de atividades físicas (SOUSA et al, 2010).

Como fenômeno sociocultural, contudo, a caminhada será observada por outras perspectivas. Entende-se, assim, a caminhada como um acontecimento histórico, ou seja, que por detrás da caminhada haverá sempre uma sociedade e sua cultura que dela se apropria peculiarmente; haverá sempre um material histórico ao qual será possível construir fatos históricos. Tais fatos históricos, articulados pelo pesquisador, resultarão em diferentes construções de uma dada realidade, na medida em que a eles se confere o formato de acontecimentos históricos (SCHAFF, 1991).

Com estas considerações iniciais, portanto, evidenciamos a nossa intenção em, ao pesquisar sobre caminhada, percebê-la como elemento cultural que emerge em contextos históricos e, cujas práticas ou atividades desenvolvidas pelos indivíduos,

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grupos sociais ou pela sociedade como um todo, associam-se à caminhada como representantes dos modos de organização social ou de estilos de vida.

2.2 A caminhada e seus usos culturais e sociais no Brasil

É na América colonizada que o europeu encontra circunstância favorável para exercer sua influência dominadora: ele vem disposto ao trabalho, não ao trabalho físico, mas como administrador, produtor e comerciante, enfim, como empresário de um negócio lucrativo, isto é, vem para explorar os recursos naturais em proveito das necessidades do mercado europeu.

Conforme nos explica Prado Jr (1961), se o europeu esteve submetido ao trabalho braçal em determinado momento da colonização, não foi para isso que aqui veio, e tal condição foi provisória, até a chegada definitiva dos escravos africanos no início do século XVII. É a partir disso é que “o colono europeu ficará então aí na única posição que competia: de dirigente e grande proprietário rural” (PRADO JR. 1961, p. 24). A despeito do autor citado, entretanto, fato é que, principalmente no século XIX, milhares de imigrantes europeus vieram para o Brasil não para dar ordens, porém, para executar trabalho assalariado, principalmente nas lavouras de café e no setor agrícola de um modo geral. Há de se considerar que alguns imigrantes tenham se sobressaído, trabalhando, e aqui tenham feito fortuna no comércio e / ou na indústria.

Anterior à chegada do negro para servir de mão-de-obra escrava, os nativos foram os primeiros a prestar serviços aos europeus. Nos relatos de Machado (2006) sobre os antigos inventários paulistanos compreendidos entre 1601 a 1675, como bens declarados constam termos como “peças de serviços, gente do Brasil, gente de obrigação, almas de administração” que, em tais documentos, se referem ao índio cativo. Foram os índios, portanto, os primeiros a prestar serviços obrigatórios ao colonizador.

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costume da época, para sustentar honradamente a família, bastava-lhe três escravos: um para a pesca, outro para a caça e o terceiro para o cultivo da roça. Declarados como propriedades particulares ante a hora da morte, em testamentos, eles eram deixados aos herdeiros e família juntamente com outros bens (MACHADO, 2006).

A mata a ser desbravada, o lugar a ser constituído e o território a ser conquistado eram as tarefas primeiras do colonizador que, já habituado à vida nas cidades, havia enfraquecido as capacidades dos sentidos de perceberem o mundo natural. Os índios, exímios caminhantes, pois este era o recurso preponderante que lhes permitia o deslocamento pela mata para a realização das tarefas de subsistência, com toda a “destreza com que sabiam conduzir-se os naturais da terra” nas sutilezas das trilhas selvagens, foi de fundamental importância para a conquista do sertão pelos bandeirantes (HOLANDA, 1994).

Disso podemos interpretar que a caminhada apenas poderia ser compreendida, no contexto colonial, como um elemento do cotidiano destinado ao trabalho, ao esforço físico e, portanto, àquele contingente de pessoas que deveriam executar funções relacionadas ao transporte de mercadorias e de pessoas, ao comércio ambulante nas precárias ruas das vilas e na marcha em direção ao interior do Brasil.

A caminhada, assim, estava integrada ao sentido dos modos de vida da colônia, ou seja, como instrumento de servidão e de exploração do homem pelo homem e, portanto, diferente de sua relação com a cultura indígena. Para os índios que aqui viviam, a caminhada era um fato comum a todos, o meio de locomoção e transporte natural, que não discriminava ninguém, pois todos, homens, mulheres, crianças, caciques, pajés ou guerreiros, dela se utilizavam para as tarefas banais do cotidiano – da caça ao transporte do alimento – até às mitológicas ou sagradas (migrações e celebrações).

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vindas do continente europeu e que desembarcavam na Vila de São Vicente (HOLANDA, 1994).

Se os tratados de Tordesilhas (1494) e de Madri (1750) delimitavam o contorno e o alcance territorial da colônia portuguesa, estes impunham aos colonizadores a obrigação de expandir o povoamento para além do litoral, seja para protegê-lo ou para explorá-lo. Tornou-se, assim, a distribuição populacional pelo território da colônia de maneira muito irregular, com povoados esparsos, isolados e de difícil comunicação.

Para Prado Jr (1961), esta necessidade de expansão rumo ao interior põe em marcha o bandeirismo (seja na ‘caça’ ao índio ou na busca de metais e pedras preciosas) e, anteriormente a este, as missões católicas da Companhia de Jesus, já estabelecidas na colônia desde a sua ocupação inicial, tendo em vista a catequização dos nativos.

Sobre os bandeirantes, há de considerá-los como os principais responsáveis pelo avanço em direção aos confins da terra descoberta. As Bandeiras e Entradas – nome designado a esta formação – eram constituídas por portugueses, índios, mestiços e escravos africanos, um contingente numeroso que partiam carregados de mantimentos para vários meses de jornada, abrindo caminhos pela mata em busca de riquezas minerais, principalmente, sem qualquer data e tampouco garantia de retorno.

Percorrendo a pé a mataria, guerreando contra tribos indígenas inimigas, aprisionando e dizimando índios, fundando vilas e encontrando ouro, os bandeirantes formavam uma comunidade onde pais, filhos, irmãos, tios, genros e sobrinhos foram estabelecendo, ao longo de seus trajetos, fracassos e sucesso, modos de vida peculiares de um povo dito paulista. Dizia-se, inclusive, dos paulistas, que a sua vocação era caminhar, tamanho o desejo ou necessidade de melhorar suas condições de vida, que os colocavam sempre em trânsito, a marchar.

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Exagero ou não, talvez o bandeirismo tenha sido um dos primeiros movimentos democráticos em solo brasileiro, pois “aberto a todos, sem distinção de etnia, de profissão, de situação social”, foi promovendo “a mestiçagem, unindo a rusticidade do índio às habilidades do branco”, desenvolvendo em todos “o espírito de solidariedade e a disciplina” para sobreviver na natureza bela, porém, fatal, onde “semearam dezenas de cidades, indicaram rumos, mapearam o interior, revelaram o ouro e o diamante” (DONATO, 2005, p.159).

Assim, bandeirantes e jesuítas, com o precioso auxílio indígena, foram, como estes, exímios caminhantes, percorrendo, em suas empreitadas, a vastidão do território e descortinando-o ao olhar europeu, do litoral ao interior, seja para espalhar a fé católica e facilitar a conquista do nativo ou pela ambição do ouro e das pedras preciosas.

No Brasil, por pelo menos três séculos e meio, a caminhada foi isso: um elemento de relevância inigualável para o descobrimento de suas terras, o seu desenvolvimento econômico e formação cultural. Como substância básica do cotidiano, do mundo do trabalho, serviu também aos propósitos de uma tradição religiosa de caráter popular que via na caminhada a representação do ideal cristão e que aqui se consolidaria.

O que será apresentado nas páginas seguintes e que constituem parte da proposta desta investigação são aspectos do cotidiano brasileiro que abarcam um pouco da nossa história em relação aos costumes, hábitos e tradições de diversas épocas e onde a caminhada se faz preponderante às tarefas ou eventos relacionados.

2.2.1 Trilhas indígenas: primeiras caminhadas

Peabiru6. Este é o ponto de início que escolhemos para uma tentativa de traçar o percurso da prática da caminhada no Brasil. Peabiru é o primeiro caminho a pé trilhado pelos europeus quando estes desembarcaram no litoral paulista e subiram as encostas de Paranapiacaba rumo ao planalto onde hoje está situada a cidade de

6 Peabiru, Piabiru ou Piabiyu, significa “caminho” em guarani = pia, bia, pe ,bia; ybabia ou caminho que leva ao céu (ACQUAVIVA, 1980) ou “caminho para o Peru” (GALDINO, 2002), dentre outras

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São Paulo. Mais do que um topônimo brasileiro de origem tupi, Peabiru era um caminho primitivo aberto em remotas eras e que somente uma personagem da mitologia indígena era capaz de explicar:

Quem seria este Pay Sumé? Hans Staden, europeu que viveu em cativeiro junto a silvícolas brasileiros e que descreveu suas aventuras em obra pioneira sobre nossa terra, intitulada Viagem ao Brasil, refere-se a uma misteriosa personagem, de pele branca e que, segundo os nativos, teria ensinado a seus antepassados muitas coisas e realizados vários milagres. O índio brasileiro chamava este ser lendário de Sumé ou Zumé; o nativo paraguaio, Pay Zomé (ACQUAVIVA, 1980, p. 153).

No entendimento dos tupis-guaranis, teria sido o mítico e lendário Pay Sumé7 o responsável pela existência dessa extensa trilha de oito palmos de largura que se estendia mata adentro, formando um complexo sistema de comunicação que, partindo do litoral paulista, nas proximidades da então recém Vila de São de Vicente, rumava em inúmeras direções, alcançando o Paraguai e até o Peru, local onde viviam os Incas.

Vários eram os roteiros, inúmeras eram as ramificações e difícil era a missão de estabelecer o traçado inequívoco do Peabiru. Trilhado pelos indígenas, por portugueses e espanhóis, esse longo e misterioso caminho tornou-se a principal via de comunicação entre a América espanhola e o litoral paulista e também uma das primeiras rotas mercantis – com a descoberta de minas de prata em Assunção do Paraguai – o que fez de São Vicente um dos mais importantes portos da colônia ainda em meados do século XVI.

Peabiru foi o caminho que facilitou o intercâmbio cultural entre as tribos indígenas, o transporte – de mercadorias e pessoas – e a conquista do sertão paulista pelos bandeirantes. Suas rotas eram tantas e tantas eram as suas interligações, que os portugueses não se davam conta de sua real extensão e alcance, como pode ser visto nos relatos a seguir:

7 A partir do processo de catequização imposto aos indígenas pelos missionários jesuítas, o Peabiru

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Saindo de São Paulo, passando por Sorocaba, pela fazenda de Botucatu que foi dos padres da Companhia, dirigindo-se a São Miguel, junto ao Paranapanema, e costeando esse rio pela esquerda, tocando e Encarnación, Santo Xavier e Santo Inácio, onde em canoa descia o Paranapanema e subia o Ivinhema até quase as duas nascenças, aí seguia, por terra, pela Vacaria, até as cabeceiras do Aguaraí ou Correntes onde, tornando-se de novo fluvial, seguia por esse afluente até o Paraguai, pelo qual subia (...) (ACQUAVIVA, 1980, p.156)

Era São Vicente, Piratininga, São Paulo, Sorocaba, Botucatu, Tibagi, Ivaí, Piquerí, bifurcava-se o caminho, indo um ramal para o sul, até o Iguaçu, no ponto em que este rio, na sua margem esquerda, recebe o Santo Antônio. (...) Figurava como tronco desse primitivo sistema de viação geral uma grande estrada, pondo em ligação as tribos da nação guarani de bacia do Paraguai com a tribo dos Patos do litoral de Santa Catarina, com os carijós de Iguape e Cananéia e com as tribos de Piratininga e do litoral próximo (ACQUAVIVA, 1980, p. 157)

É certo que existia a trilha dos tupiniquins, assim como a dos Tupinambás e a dos Tamoios. E havia a trilha dos Guanás, a dos Carijós e, sobretudo, a dos Guaranis. Diante de tal panorama, composto por uma intrincada rede de trilhas, o Peabiru teria conquistado maior celebridade pelo fato de ligar o planalto de

Piratininga ao Guairá8 e a Assunção, escalas importantíssimas a

caminho do Peru (GALDINO, 2002)

Todo esse conjunto de trilhas indígenas, onde “bastava meia braça de largura destocada e roçada nos matos” (ALMEIDA, 2002, p. 51), ao qual constituía o Peabiru, foi responsável direto pelo desenvolvimento do Brasil, pois ao longo delas surgiram inúmeros povoados e vilas que, posteriormente, serviram de pouso aos tropeiros e seus muares que transportavam ouro, na época do Império, das Minas Gerais à Parati. E tudo isso feito a pé, caminhando pela mata, o que faz da caminhada um dos elementos fundamentais para a compreensão do processo de urbanização do Brasil, pois foi por meio dela que se desbravou e descortinou o território brasileiro aos colonizadores.

O Peabiru, essa rede de comunicação viária já estabelecida desde épocas imemoriais, portanto, possibilitou aos portugueses a intensificação das relações econômicas, sociais e culturais com os indígenas, pois uma elevada quantidade de mercadorias era transportada e inúmeras pessoas transitavam regularmente por essas trilhas, promovendo a futura existência social urbana que iria, aos poucos, se estabelecendo ao longo desses caminhos indígenas.

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Partindo do Peabiru, o europeu, pelo movimento denominado Entradas e Bandeiras, ganhou o sertão brasileiro, expandindo seus domínios sobre os territórios indígenas, sempre em busca de riqueza. Se antes falamos que a vocação do paulistano é ficar estanque atrás de um volante de automóvel, não era isso que caracterizava os seus primeiros habitantes. O trecho abaixo nos permite identificar traços da virtude do ‘homem paulista’, retratada a partir de Afonso Sardinha, filho de português e companheiro do padre jesuíta José de Anchieta:

(...) Sardinha, o moço, percorreu todo o sertão em busca, não só de índios para prear, como seu pai, mas, também, para pesquisar metais, ouro, prata ou ferro. É-nos hoje impossível imaginar ou compreender como naquela época totalmente destituída de recursos

e em regiões desconhecidas, andando a pé, “andando à paulista”,

como diziam os de fora, um atrás do outro em estreita picadas de mato, as pessoas poderiam localizar as jazidas que procuravam. Não falemos de ouro (...) mas de ferro, caríssimo metal no mundo bandeirante. Nem informações precisas havia disso, os índios vivendo dias da pedra polida, de nada sabiam. O fato é que o mameluco sem letras (...) chegou ao morro Araçoiaba, às margens do ribeirão Ipanema, em 1589 (...) e dedicou-se a fabricar ferro. Tirou ferro das rochas escuras. Deveria ser guindado a patrono da siderurgia nacional (LEMOS et al., 2008, p. 139)

Caminhar, ir adiante, a pé, sempre, em busca de conquistas – eis a vocação do paulista nos primórdios da colonização – muito diferente daquilo que ele se tornou posteriormente (o indivíduo afogado no trânsito da cidade) e do que hoje ele pretende ser (o sujeito que retoma a caminhada para ter qualidade de vida e ver-se livre do congestionamento urbano).

Foram as trilhas indígenas, portanto, os primeiros caminhos percorridos, a pé, pelos europeus e, nesse contato inevitável com o indígena, ele aprendeu, regredindo em seus hábitos e costumes civilizados, a sobreviver nessas terras, utilizando-se do recurso mais eficaz então, ancestral e comum a toda a humanidade: a caminhada.

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Fundado em 25 de janeiro de 1554, foi o povoado de São Paulo de Piratininga a única vila do interior do Brasil nos primeiros dois séculos de colonização. De escassos recursos e isolada, separava-se do litoral – o núcleo econômico e social de então – pela Serra de Paranapiacaba. O transporte de cargas e as viagens da Vila de São Vicente, no litoral, ao planalto de Piratininga eram realizados a pé. Os percursos, denominados de ‘caminhos do mar’, chegavam a 70 km de extensão e alguns trechos faziam parte da rota de Peabiru. Trilhas estreitas, íngremes, difíceis de transitar e que apenas os denominados silvícolas conheciam seus mistérios.

A Vila de Piratininga nasceu sob a égide da irregularidade, no sentido de que suas vias de comunicação foram abertas de acordo com ‘técnicas ancestrais’, ou seja, onde os pés ditavam o rumo a seguir conforme as exigências que o terreno apresentava. Caminhos se formavam sem qualquer propósito a não ser “de acordo apenas com o capricho dos moradores, que iam erguendo à vontade as suas habitações” (BRUNO, 1953, p. 150), o que se constituiu em uma característica peculiar não apenas da formação da futura cidade de São Paulo, porém, dos primeiros núcleos urbanos que foram edificados no Brasil pelos portugueses. Por várias caminhadas, emergiu, em meio à mata, a atual megalópole paulista.

Uma descrição da Vila de Piratininga encontra-se nos relatos do padre José de Anchieta9, ao falar do arraial dos sertanistas:

A quarta Vila da Capitania de São Vicente é Piratininga, que está a dez ou doze léguas pelo sertão e terra adentro. (...) É intitulada Vila de São Paulo, situada junto a um rio caudal, terá 120 fogos de portugueses; não tem cura nem a outros sacerdotes senão os nossos, nem os portugueses os querem aceitar. É terra de grandes campos, fertilíssima de muitos pastos e gados, de bois, porcos, cavalos etc., e abastada de muitos mantimentos. Nela se dão uvas e fazem vinho, marmelos em grande quantidade e se fazem muitas marmeladas, romãs, e outras árvores de fruto da terra de Portugal,

Se dão rosas, cravinas, lírios brancos. É terra muito saudável – onde

vivem os homens muito, máxime os velhos (TAUNAY, 2004, p. 181-182).

Para se chegar ao vilarejo, como já exposto, não era tarefa das menos árduas. Do litoral ao planalto, de São Vicente a São Paulo, seguiam-se por trilhas, sempre caminhando, pela serra íngreme, pelos ‘caminhos do mar’, conforme relatos:

9

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Vão lá por umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não se despenharem, por ser o caminho tão mau e ter tão ruim serventia padecem os moradores e o nosso grande trabalho (TAUNAY, 2004, p. 181).

O caminho entre São Paulo e São Vicente não era cômodo, mesmo aproveitados os trechos navegáveis do Cubatão e de um dos afluentes do Tietê. Fernão Cardim, que fez a viagem em 1585, nas melhores condições possíveis para a época, por acompanhar o padre Cristóvão de Gouvêa, visitador da Companhia de Jesus, já pujante e prestigiosa, graças a tantos serviços prestados, empregou

nela quatro dias e diz: “O caminho é tão íngreme que às vezes íamos pegando com as mãos”, antes de chegarem bem cansados ao cume da Paranapiacaba; e depois de passado: “Todo o caminho é cheio de

tijucos, o pior que nunca vi, e sempre íamos subindo e descendo

serras altíssimas e passando rios caudais de água frigidíssima”

(ABREU, 1960, p. 182)

Veículos por eles não transitavam, apenas cavaleiros e pedestres, gado e comboios humanos, índios carregados indo e vindo, de Santos ou para Santos (TAUNAY, 2004, p. 177).

O ‘caminho do mar’ original, aquele percorrido por Martim Afonso de Souza, em 1532, em sua visita à Vila, era a mais antiga trilha que ligava o litoral ao planalto – a única via de comunicação entre o vilarejo e o mundo civilizado. Esse caminho ancestral “de que se serviam os índios” foi, pelas dificuldades de travessia encontradas, substituído, em 1533, por uma nova trilha, aberta pelos nativos sob o comando de Anchieta. Entretanto, em 1560, devido aos constantes ataques dos tamoios, “inimigos cruéis dos Portuguêses”, por ordem de outro padre jesuíta, Manuel da Nóbrega, mais um caminho foi traçado pelas escarpas de Paranapiacaba “de que todos receberam grande segurança e proveito” (TAUNAY, 2004, p. 175).

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O transporte dos europeus aos ombros indígenas, que era comum a toda a América, conforme relatos de outros viajantes10, pode ser constatado em Jean de Léry (1534-1611), jesuíta que esteve no Brasil em meados do século XVI:

Não havendo cavalos nem asnos ou outros animais de carga nesse país, o transporte se faz em geral a pé e se o viajante se sente cansado basta acenar com uma faca para que os selvagens se ofereçam como carregadores. Quando eu viajava na América havia selvagens que chegavam a nos carregar aos ombros a cavalo e nos transportar assim mais de uma légua sem descanso. E se apiedados, os convidávamos para um repouso caçoavam de nós dizendo: -“Julgais então que somos mulheres ou tão covardes e fracos que não possamos aguentar o vosso peso?” Um deles que me trazia certa vez ao pescoço disse-me: “Eu vos carregaria um dia inteiro sem parar”. Por isso montando essas cavalgaduras de dois pés nós as estimulávamos diz dizendo: “Vamos, vamos”, e ríamos vendo -os fazer das tripas coração como diz o ditado. (LÉRY, 2007, p. 239)

Este costume – do europeu ser carregado pelos indígenas, ou melhor, de pessoas que se consideravam importantes serem transportadas por subalternos – parece remontar a antigas práticas e rituais de diferenciação socioeconômica, cujo intuito, era promover as devidas distinções entre indivíduos e classes sociais, como esclarecido por Veblen (1983), em sua teoria da classe ociosa.

Os nativos eram profundos conhecedores da mata e percebiam o ambiente natural como nenhum colonizador. Os índios “movendo-se pelos próprios pés, dispensavam conduções dispendiosas” (ABREU, 1960, p. 183), pois lhes era natural a locomoção a pé, vencendo longas distâncias, caminhando. Tal particularidade indígena, como já afirmado, devido aos arranjos culturais, também se tornou hábito dos paulistas que, inclusive, tinham o costume de imitar os índios no caminhar descalço (HOLANDA, 1994).

Além dos nativos da terra, também os escravos negros, quando aqui aportaram, foram requisitados para o transporte de pessoas e cargas. Como ainda não havia estradas, mas apenas trilhas na mata que, vez ou outra, recebiam alguma manutenção devido ao uso constante, estes caminhos tortuosos eram onde

10 Sobre o diário do capitão René Goulaine de Laudonnière. BASANIER, Martin

. L’Histoire notable

de la Floride. Paris: P.Jannet, Librarie, 1853. Disponível em:

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transitava o açúcar dos engenhos até os portos. Era comum ver ‘tropas de negros’ carregando à cabeça, os fardos de açúcar, seguindo por fila indiana até o litoral.

O percurso do litoral ao planalto somente recebe melhorias significativas a partir da administração de Bernardo José de Lorena (1788-1797), capitão-general da província que, em 1792, inaugurou a Calçada do Lorena, obra que permitiu a regularidade do fluxo de transporte durante todos os meses do ano. Este caminho apresentava algumas caraterísticas de estrutura que até aquele momento eram desconhecidas na província paulista: largura variando entre 3,20m a 4,20m ao longo do percurso e coberto por um revestimento de lajes de pedras que permitia o tráfego seguro tanto de pessoas como de animais (REIS FILHO, 1998).

2.2.3 Peregrinações e procissões

Caminhar talvez seja a vocação do cristão católico. Há de se considerar que o líder espiritual dessa tradição religiosa, Jesus Cristo, ‘caminhou quarenta dias pelo deserto’ como parte de sua provação pessoal, além de ‘caminhar sobre as águas’ para resgatar Pedro, um de seus seguidores, que soçobrava ante as furiosas ondas. Assim, culturalmente, para o cristão – o católico de tradição – caminhar é um gesto que prova a sua fé e atesta a sua devoção.

A caminhada, como um gesto de penitência ou devoção, deve-se ao ato da peregrinação. Peregrinar é uma prática tão antiga quanto à própria existência do ser humano e significa, etimologicamente, “andar pelos campos”, evocando a marcha, o caminho a seguir em busca de algo sagrado. É o entrelaçamento do esforço físico com a introspecção que proporcionam o alcance de uma nova compreensão de si e do mundo, um processo ritual que confere sentido a quem caminha (CARNEIRO; STEIL, 2008).

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comunicação com o sagrado, portador de significados e origem de significações. Mais que um caminho, entretanto, o trajeto do peregrino é uma rota, isto é, um traçado feito por alguém, dotado de sentido e seguido por outros (Rykwert, 1987 apud TIBERGHIEN, 2012).

Carregado de valor simbólico, o caminho é capaz de assegurar e conservar o sentimento de comunhão e unidade, o transcurso onde as relações do visível com o invisível e do passado com o futuro são celebradas em uma percepção da existência comum a todo ser humano. Ele é a promessa da libertação das angústias da existência.

Na Idade Média, o peregrino era uma figura oficial, concreta, jurídica. Ele era um personagem público, com seu bordão, seu alforje, sua túnica e chapéu de abas largas. Carregava um salvo-conduto, entregue por um bispo ou pároco após a cerimônia de consagração, que lhe supunha a proteção durante a longa jornada. O cerimonial de consagração e despedida representava uma espécie de morte do indivíduo, pois após a partida, não havia qualquer garantia de retorno para casa, dada a longa jornada e os riscos a enfrentar. Devoção, fidelidade e expiação dos pecados eram os motivos que empurravam o peregrino para a estrada (GROS, 2010).

O peregrino que emerge no mundo medieval é aquele que Santo Agostinho definiu como o ‘caminhante através dos tempos’, pois a verdadeira pátria do cristão é o ‘Reino de Deus’, é a eternidade. Esse peregrino não tem lugar no mundo em que habitamos, pois estar em um lugar significava “no moverse, hacer lo que el lugar requería que se hiciese” (BAUMAN, 2003, p. 44). Todos os cristãos, na concepção agostiniana, eram peregrinos, pois caminhavam sempre em busca de um lugar para além do conhecido, além do terreno.

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A peregrinação, institucionalizada pela Igreja, consistia na reparação daqueles que, banidos do seu meio por terem cometido alguma transgressão, deviam viajar a pé por longos caminhos a lugares distantes reconhecidos pela Igreja como sagrados e como forma de penitência. Tanto poderia partir de uma intenção do sujeito, quanto de uma imposição institucional, principalmente, pois era a Igreja o poder supremo de então, quem ditava as regras ao peregrino e indicava-lhe para quais lugares ele deveria seguir. Poucos se aventuravam para além dos limites do mundo já conhecido e a jornada nunca se dirigia para pontos de origem distantes das antigas civilizações (como o Oriente Médio); caminhava-se rumo aos antigos lugares (Jerusalém, Roma e seus ícones), em busca de antigas certezas (revelações celestes e salvações espirituais).

Assim, nos séculos III e IV da Era Cristã, tornou-se comum o hábito das visitações a eremitérios, mosteiros, conventos, igrejas e santuários para obter benção, conselho ou milagre dos ‘servos de Deus’ ou pelas relíquias dos santos católicos. Essas longas jornadas a pé, contudo, com o passar do tempo, foram atraindo os olhares de comerciantes e aventureiros que, seja por motivos religiosos ou não, passaram a aglomerar-se em torno desses lugares sacralizados, promovendo uma ampliação do alcance do fenômeno capaz de englobar devoção, cultura e prazer. Talvez isso tenha sido em decorrência de uma ideia composta por idealismo religioso (a salvação da Terra Santa), o desejo de aventura (uma busca por melhores condições de existência em um lugar distante) e ambição desmedida (as Cruzadas e o resgate do Santo Sepulcro das mãos dos muçulmanos) (URRY, 1999).

Santiago de Compostela foi um desses lugares de visitação. Conta-se que, ali, estariam depositados os restos mortais do apóstolo Tiago. As peregrinações a Compostela remetem ao século XI (1078), sendo que o caminho, composto por diversas rotas, foi considerado, em 1985, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, como Patrimônio Cultural da Humanidade. Para lá, anualmente, seguem milhares de fiéis, percorrendo centenas ou milhares de quilômetros, seja por questões de fé ou turismo11.

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O Brasil também dispõe de inúmeras rotas de peregrinações, para atender aos adeptos das longas jornadas a pé, dentre eles, o Caminho da Fé, Passos de Anchieta, Caminho do Sol, Caminho da Luz, das Missões, para citar apenas alguns.

O Caminho da Fé proporciona a visitação ao Santuário Nacional de Aparecida, localizado no município de Aparecida (SP). O percurso corta fazendas, sítios e municípios espalhados pela Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas Gerais. A distância de origem é de 310 km, todo sinalizado com setas amarelas, e foi inaugurado em 11/02/2003, partindo de Águas da Prata/SP. Entretanto, os peregrinos mais fervorosos e dispostos a caminhar, iniciam a jornada em Tambaú/SP12. O traçado do percurso, contudo, encontra-se em aberto, possibilitando que demais municípios interessados, façam parte do projeto (CAMINHO DA FÉ).

Provocar a reflexão e interiorização, esta é a proposta das rotas de peregrinação, como o Caminho da Fé. Assim, seguindo as setas amarelas, o peregrino vai reforçando sua fé, contemplando a Natureza e superando as dificuldades do Caminho, que se faz síntese da própria vida. O peregrino é orientado a levar consigo uma mochila com o mínimo de pertences que lhe sejam necessários para a travessia. Esta pode ser realizada de modo contínuo (observando-se as paradas nas pousadas credenciadas para descanso e carimbo do passaporte, que é o seu certificado de conclusão do trajeto) ou em etapas alternadas, a critério de cada caminhante.

O cajado é o objeto de maior valor para o caminhante da fé. Feito de vara de bambu especialmente cortada para o uso proposto, ele representa apoio contra o cansaço, proteção contra possíveis ataques de animais e, em poucos dias, torna-se uma extensão do próprio corpo do viajante. Trata-se de um objeto que acompanha o sacrifício do peregrino desde o começo de sua longa jornada até ao final, onde será depositado, como uma oferenda, em uma sala específica da Basílica de Aparecida. Ele é o companheiro inseparável do caminhante, o símbolo do triunfo da fé sobre as

12 Possibilitando a ligação entre dois santuários religiosos paulistas, o roteiro considerado completo

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limitações físicas e emocionais com as quais o peregrino se deparou ao longo trajeto.

A obra “Andança”, que trata sobre a trajetória de um peregrino no Caminho da Fé, explicita um pouco dessa realidade. O enredo é o relato da aventura de um funcionário público, habitante de uma grande capital brasileira, que parte, solitário, nesta travessia: as surpresas diante de variados acontecimentos, o encontro com pessoas típicas dos lugares visitados, a descoberta de coisas simples que o fazem pensar sobre a sua vida. O motivo que conduziu esse peregrino não é a fé religiosa: ele pretende fazer dessa caminhada uma fuga ao estressante convívio familiar e urbano. No trajeto, o peregrino faz uma retrospectiva da sua existência, relembrando a sua infância modesta no interior de Minas Gerais e, principalmente, busca soluções para o conflito entre gerações, isto é, entre ele e sua filha adolescente. Sua caminhada é um ritual de purificação interior (CASTRO, 2005).

Para demonstrar fé ou religiosidade, no entanto, não se precisa caminhar tanto, ir tão longe, peregrinar por plagas distantes. Embora diferente em seus propósitos, as procissões religiosas cumprem com funções rituais bem marcadas. Originadas talvez no antigo Egito, nas celebrações à deusa Isis, as procissões foram apropriadas pela Igreja Católica que fizeram delas muito mais que instrumento religioso, mas uma forma de exercer coerção social (CORREA, 2010).

Em muitas cidades brasileiras, ainda podemos observar a tradição de se realizar, em datas específicas do calendário religioso, eventos comemorativos que simbolizam a fé e os dogmas católicos. O Domingo de Ramos, a procissão do Senhor Morto e o Corpus Christi são exemplos dessa tradição onde a caminhada é o elemento fundamental para a sua realização.

A procissão religiosa é um tipo de evento social onde pessoas se reúnem para caminhar de um modo formal e ritual. É um caminhar solene pelas ruas com o intuito de espalhar as bênçãos que a fé cristã propicia, acompanhado com o entoar de cânticos, orações e a imagem de um santo de devoção. Reza a crença que o local por onde passa o cortejo religioso se torna abençoado, assim como aqueles que dele tomam parte (VILHENA, 2005).

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símbolos característicos – para recebê-las na expressão de sua fé. Elas também representam uma ocasião de encontro entre as pessoas dos mais variados níveis sociais, mas que, todavia, partilham dos mesmos costumes, tradições e crenças religiosas. A procissão, portanto, é um evento social agregador onde qualquer pessoa, disposta a caminhar, poderá participar.

Alguns desses eventos tornaram-se atrações turísticas, tanto devido ao investimento financeiro, quanto ao apelo à tradição religiosa, talvez os requisitos mais relevantes que os colocam como um grande negócio. Como exemplo disso, temos a procissão de Corpus Christi realizada na cidade de Matão/SP, onde a tradição de enfeitar as ruas é de tamanha expressão e beleza que grande público comparece anualmente ao evento.

A procissão religiosa é uma prática tradicional em nosso país. Os relatos sobre os modos de vida dos primeiros habitantes do povoado indicam que seus principais moradores viviam nas roças das imediações do vilarejo e voltavam à Vila apenas em algumas ocasiões, como para frequentarem as missas aos domingos ou em dias de comemorações religiosas.

Apesar dos inúmeros becos sem-saídas e caminhos tortuosos que passavam pelos fundos de quintais, das condições físicas precárias das vias públicas e o perigo que representavam aos pedestres mais incautos, a procissão era um elemento fundamental da vida social, considerada como “o que dava brilho ou ruído de festas às ruas das antigas cidades do Brasil: a religião. A religião dos pretos com suas danças, e dos brancos com suas procissões, suas Semanas Santas” (FREYRE, p. 43, 1968).

Para os primeiros habitantes do povoado paulistano, participar das procissões agendadas13 era algo obrigatório a todos os moradores. No tempo da colônia, a Companhia de Jesus e a presença de outras associações religiosas com suas cerimônias características e símbolos da tradição católica, dominavam o cenário

13 As principais procissões setecentistas, ordenadas pelo poder clerical e confirmada pela Câmara

Municipal, eram: Corpus Christi, a visitação de Nossa Senhora, a do Anjo Custódio e a de São

Sebastião, que se constituíam no momento supremo das atividades religiosas do núcleo urbano e que para ele atraíam, em suas ruas e pátios, um grande número de fazendeiros, sitiantes, roceiros e todas as autoridades seculares e clericais, além da população geral do povoado. Além desses, outros cortejos eram celebrados com muita pompa, como a procissão do Senhor dos Passos (escalas em

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cultural do povoado. Os mosteiros de São Bento, do Carmo e de São Francisco e as inúmeras ordens religiosas14 existentes encarnavam a influência predominante da religiosidade cristã no cotidiano dos moradores. E era por meio das procissões que a preponderância religiosa fazia sentir sua presença marcante na vida social e cultural da Vila de Piratininga.

As procissões nos anos de 1500 a 1700 eram abertas a participação de todos, desde os colonos portugueses aos índios, mamelucos e escravos negros. A sua obrigatoriedade talvez resida no fato de que era o único meio possível, naquele momento histórico, de agregar os indivíduos para a realização de uma atividade coletiva, dado que, naquela época, os paulistas tinham a característica de viver isolados e não muito afeitos às interações sociais.

Assim, as procissões e festejos religiosos eram o “que faziam com que os moradores mais importantes de São Paulo – em sua maioria residentes nas suas fazendas e nos seus sítios, às vezes a muitas léguas de distância do núcleo urbano – se reunissem aos demais, na vila” (BRUNO, p.367, 1953). De certa forma era um artifício para manter a coesão de hábitos e costumes àquela coletividade, servindo este simbolismo religioso como elemento de socialização.

Além de ocasião para expressar o sentimento religioso e agregar, as procissões também eram a oportunidade de demonstração da magnificência da pompa cerimonial católica que “com seu ruído, suas cores, seu aparato – (...) exprimiram de modo mais vivo a religiosidade de que estava impregnada a existência dos moradores da vila” (BRUNO, p. 366, 1953).

Juntamente ao périplo cristão, aconteciam as mascaradas, onde participavam índios e mamelucos com suas festas particulares, ainda que, combatidas pelas autoridades municipais que receavam por insurreições, não as proibiam completamente. No mais, “as festas de pátio de igreja e as procissões de rua, toraram-se também ocasião de namôro” (FREYRE, p.44, 1968), dentre outras possibilidades. Assim, as procissões e seus festejos comemorativos, proporcionavam, por meio da caminhada, um momento quase único de diversão aos moradores de São Paulo.

14 As Ordens Religiosas, que gozavam de enorme prestígio popular, eram as dos jesuítas, dos

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