• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 - O acontecimento catastrófico

2.3 A catástrofe na televisão

Afirmar que o 11 de setembro é um acontecimento mediático se tornou senso comum. O que, exatamente, caracteriza esse tipo de acontecimento e em quais aspectos ele se diferencia dos demais? Doane (1990) diz que o acontecimento mediático, ou media

event, existe quando o referente se torna indissociável do meio.

Daniel Dayan e Elihu Katz (1999) definem os acontecimentos mediáticos como os grandes eventos televisivos transmitidos ao vivo, que mobilizam uma atenção universal e simultânea, apesar de geralmente não serem organizados por quem os transmite, “mesmo se são concebidos tendo em vista a televisão” (DAYAN e KATZ, 1999:21).

Os autores os classificam em três categorias: os grandes acontecimentos noticiosos (guerras, assassinatos etc.); os dramas sociais, que mobilizam a atenção pública durante um longo período de tempo (os depoimentos na CPI do “mensalão”, por exemplo); e os rituais públicos, cerimônias que visam construir o consenso e a integração social, que podem durar horas ou dias e causam uma enorme comoção (os jogos olímpicos, o funeral do presidente Kennedy etc.).

Partindo da premissa de que a TV se constitui como fluxo, ou uma seqüência de estímulos “indiferenciados” pelo telespectador, noção proposta por Williams (1975), os autores dizem que os media events, ao contrário, têm potencial para mobilizar uma grande atenção e romper com o fluxo. São eventos por definição não-rotineiros, propondo que algo excepcional está acontecendo, e monopolistas, atraindo grande cobertura dos media, exceto de alguns veículos independentes, o que dá a exata dimensão e importância do evento. O media events são transmitidos ao vivo, portanto, o acaso está permanentemente rondando suas transmissões. “Em contraste com a variedade de gêneros que caracteriza a

rotina diária da televisão, os media events têm uma qualidade perturbadora. Eles têm o poder de interromper a vida social cancelando todos os outros programas” (DAYAN, s/ data). No 11 de setembro de 2001 o cotidiano da população norte-americana alterou completamente com os atentados, “quatro em cada dez pessoas não foram ao trabalho; nove em cada dez manifestaram preocupação com a possibilidade de novos ataques” (WAINBERG, 2005:67). Dayan e Katz lembram que os media events apresentam forte potencial para reconfigurar a realidade.

Os acontecimentos mediáticos de natureza transformadora também afetam o sentido do lugar de uma sociedade. Os membros da sociedade como que renascem para um mundo diferente. Claro que permanecem onde estavam, mas o mundo alterou-se à sua volta. Os acontecimentos mediáticos transformadores afetam a geografia simbólica (DAYAN e KATZ, 1999:160,161).

Portanto, o 11 de setembro possui vários elementos que permitem pensá-lo como

um media event (na categoria dos grandes acontecimentos noticiosos): interrompeu o fluxo

televisivo, monopolizou a atenção dos media, mobilizou uma atenção universal e simultânea, foi transmitido ao vivo e planejado visando à transmissão televisiva.

A noção de tragédia televisiva, proposta por Torres (2004), é também oportuna para que se entenda como a televisão se comporta na transmissão direta de determinados acontecimentos. Ao analisar diferentes transmissões televisivas ocidentais de eventos inesperados, considerados críticos ou catastróficos, o autor observou uma série de

semelhanças textuais, estruturais e de recepção, o que possibilitou que estabelecesse um gênero, ou o que ele define como tragédia televisiva:

O conjunto das transmissões pela televisão generalista de um evento de âmbito nacional ou internacional de carácter inesperado, altamente improvável, provocando ruptura na ordem social ou política, envolvendo a morte violenta de uma celebridade política, mediática ou de muitas pessoas desconhecidas em resultado de um atentado, ataque terrorista, acidente ou catástrofe natural, evento esse que origina e interage com uma transmissão televisiva jornalística em directo que interrompe o normal fluxo televisivo, gera uma importante atenção pública, prolonga-se por um período de vários dias e adquire características semelhantes à tragédia como texto e espectáculo (TORRES, 2006:23).

Trata-se de acontecimentos que abalam a sociedade e o conjunto de suas instituições e são apresentados pela televisão através de uma identificação imediata com as obras trágicas do teatro e da literatura.

Estes acontecimentos do mundo real são caracterizados pela sociedade como trágicos e são apresentados pela televisão de acordo com estruturas e características que tornam as emissões sucedâneos vernáculos do gênero trágico, quer como texto quer como espectáculo. As emissões respeitam a acontecimentos mobilizadores intensos de toda a sociedade [...] (TORRES, 2004).

Torres, após observar uma série de transmissões televisivas (assassinato do presidente Kennedy, explosão da Challenger, terremoto de São Francisco em 1989, morte da princesa Diana, ataque da Al Qaeda em Madrid, 2004), elencou uma série de particularidades e semelhanças entre elas. Todas essas transmissões têm em comum, segundo o autor: a mobilização de audiências muito acima do padrão normal; um aumento considerável de transmissões diretas e constantes interrupções no fluxo televisivo; alusão a arquétipos, símbolos e mitos recorrentes no mundo trágico, possibilitando que a televisão tipifique os eventos a partir de outras referências, como as obras de ficção; o enfrentamento de problemas próximos aos dos autores da tragédia clássica, como a morte e o destino dos cadáveres, bem como sua eventual exibição; uma mudança do jornalismo televisivo, incluindo o discurso emocionado, típico da tragédia clássica; transformação dos intervenientes em personagens também típicos das tragédias, como os heróis individuais e coletivos, os familiares como porta-vozes das vítimas, as testemunhas que restituem os eventos, os culpados (reais ou imaginados), os dirigentes políticos e religiosos; entre outros aspectos.

As emissões de eventos trágicos recorrem aos arquétipos trágicos e à mesma paleta emocional mobilizada pela tragédia; remetem para inquietações individuais e colectivas semelhantes às da tragédia; e recorrem a estratégias discursivas, estruturais e espectaculares que conhecemos da tragédia. Em conseqüência, as tragédias televisivas permitem à sociedade aceitar o inaceitável e tornar o inverosímil verosímil, integrar na experiência social a ruptura de valores e de instituições, permitem ainda, pelo desfecho, a retoma do equilíbrio anterior ao evento (TORRES, 2004).

A noção de cobertura televisual da catástrofe, proposta por Mary Ann Doane (1990), amplia a compreensão de como a TV lida com os acontecimentos catastróficos. Partindo do pressuposto que o tempo é a principal referência da TV, sua base e princípio

estruturador, Doane diz que os eventos podem ser compreendidos a partir de sua referência temporal.

Se a fotografia é um meio do passado (that-has-been), continuamente “assombrada pela morte”, a TV é um meio do presente (this-is-going-on), fluxo ininterrupto que mantém uma relação íntima com a idéia de morte, não de uma morte no tempo passado, mas com a possibilidade explosiva e traumática da morte instantânea, o que constitui, segundo ela, seu discurso limite.

Toda a grade televisiva é articulada a partir de noções temporais. Para preencher o tempo, já que o fluxo é ininterrupto, a televisão assegura que alguma coisa aconteça, mesmo se “nada” estiver acontecendo. Segundo a autora, existe uma confusão comum em atribuir importância aos eventos que aparecem na televisão, quando o que ocorre é justamente o contrário, a TV precisa dos eventos para validar-se a si própria como meio.

Doane (1990) distingue três modos de apreensão dos acontecimentos, que representam a forma de organização do tempo televisivo – informação, crise e catástrofe – apesar de salientar que as noções na prática não são estanques, porque a própria TV tende a obscurecer suas diferenças, e uma linha tênue separa uma categoria da outra.

Os acontecimentos previsíveis, regulares, são definidos pela autora como

informação. Constituem maioria na televisão e servem para preencher o tempo, garantindo

que alguma coisa aconteça. Os telejornais, por exemplo, são fontes paradigmáticas de

informação, mantendo a continuidade do fluxo contínuo. “O conteúdo da informação está

sempre mudando, mas a informação, enquanto gênero, está sempre , uma presença firme e constante, mantendo o contato” (DOANE, 1990:223).20

Já o que a autora denomina de crise são aqueles acontecimentos que envolvem uma compressão do tempo, condensam a temporalidade, exigindo uma solução rápida, um agenciamento humano em um período limitado de tempo. Freqüentemente as crises são políticas e agenciadas por um ou mais sujeitos. Seqüestros, assassinatos, invasões são exemplos de crises observadas na televisão. O seqüestro do ônibus 174 no Rio de Janeiro

em junho de 2000, que fez vários passageiros de reféns e foi integralmente transmitido ao vivo pela emissora Globo News, pode ser considerado um evento dessa ordem.

A catástrofe, por seu turno, é a mais crítica das crises, que condensa ainda mais o

tempo, tornando-o pontual, instantâneo. “Ela não tem duração estendida (exceto, talvez, sua cobertura televisiva), já que acontece tudo de uma só vez” (DOANE, 1990:223).21

Os momentos de catástrofe podem ser isolados do restante do fluxo, um impacto que rompe com a rotina ordinária televisiva.

Recorrendo aos sentidos etimológicos do termo, Doane observa que o sentido de descontinuidade inesperada e repentina em sistemas contínuos está presente em todas as teorias da catástrofe. A autora diz que a ênfase na mudança, no repentino, sugere, portanto, que a catástrofe seja de ordem temporal. Se as teorias da catástrofe a definem como uma descontinuidade inesperada em um sistema contínuo, a cobertura televisual da catástrofe

representa uma quebra ou um paradoxo na definição.

A TV é correntemente designada como um sistema de descontinuidades, um fluxo hiper-fragmentado composto por diferentes registros de imagens e sons. Na transmissão da catástrofe, ao contrário, ocorre a unidade com o tempo real, sem a habitual colagem de múltiplos fragmentos. A televisão é um sistema de descontinuidades, um fluxo fragmentado e heterogêneo, portanto, ela mesma pode ser entendida como pertencente ao modelo catastrófico. E ai reside outro paradoxo da catástrofe: ela é o descontínuo dentro de um sistema cuja continuidade é a descontinuidade.

A temporalidade da catástrofe é aquela do instante – ela é o momento, pontual, enquanto sua cobertura televisiva é caracterizada por uma duração estendida, que parece compensar o repentino, a natureza inesperada do evento (DOANE, 1990:232).22

A ênfase na ruptura e na descontinuidade, própria da televisão, sugere que ela própria é estruturada a partir de um modelo catastrófico. Não é por acaso que o aberrante e o anormal tenham lugar garantido nos noticiários do ocidente. Como observa Margaret Morse, citada por Doane (1990), as notícias no ocidente são quase sempre as “más notícias”.

21

Tradução nossa. 22 Tradução nossa.

Na cobertura da catástrofe o fluxo é interrompido por sua transmissão ao vivo não programada. Ela rompe com tudo o que fora programado, com a grade de programação. De fluxo fragmentado a TV passa a operar em um continuum, marcado inclusive pela ausência de intervalos comerciais. Quanto maior for a importância da catástrofe, mais tempo ela “rouba” da grade previamente planejada e da principal fonte de lucro da TV, os comerciais.

Se a programação televisiva ajuda a produzir o ritmo da vida cotidiana, a catástrofe é o que não pode estar contido dentro de uma temporalidade organizada, como a morte não está contida a priori no ritmo da vida diária.

A catástrofe muda completamente a posição do telespectador, convocando uma forma diferente de se relacionar com o meio. “São momentos em que a pessoa deixa de simplesmente ver televisão para ficar parada, fixada em frente à tela – momentos de catástrofe” (DOANE, 1990:228).23

Buscando entender porque certos acontecimentos são considerados, pelos próprios meios, catastróficos e outros não, Doane estabelece uma série de identificações e distinções entre eles. Ela diz que a catástrofe não está relacionada necessariamente ao número de mortes.

[...] eventos que são claramente apresentados como catastróficos – Chernobyl, a explosão da Challenger – não apresentam um grande número de mortos, enquanto os tempos de guerra (Vietnam, guerra Iran-Iraque) apresentam, freqüentemente, um número muito maior de mortes, mas não podem ser qualificados como catastróficos (sem dúvida porque a guerra torna a morte habitual, contínua) (DOANE, 1990:229).24

Por outro lado, ela observa que há uma relação direta entre catástrofe, o colapso da tecnologia e a fascinação pela morte.

A fragilidade do controle tecnológico sobre as forças que ele esforça-se em conter, está manifesta nos acidentes mais comuns, sendo o desastre aéreo seu exemplo proeminente. [...] Como os meios de transporte dependem de uma avançada e intricada tecnologia que já se tornou familiar, rotineira, o potencial catastrófico aumenta. A falência dessa tecnologia a desfamiliariza radicalmente (DOANE, 1990:229).25 23 Tradução nossa. 24 Tradução nossa. 25 Tradução nossa.

A era pré-industrial não conhecia acidentes nesse sentido, o que ocorria era atribuído à coincidência ou à própria natureza (furacões, terremotos etc.). No século XX, ao contrário, observa-se que a maioria dos acidentes são “internos”, inerentes à tecnologia, e que devido a uma falha, o sistema “destrói a si mesmo”. Portanto, Doane diz que a catástrofe está associada à idéia de progresso, controle sobre a natureza e sua falência representa uma interrupção no avanço tecnológico, um retrocesso. Conseqüentemente, quanto mais “civilizada” e eficiente é a tecnologia, maior será o choque provocado pelo seu colapso.

A idéia de tecnologia e controle está ligada também à capacidade de prever determinados eventos. Quando não é possível antecipar certos fenômenos, como se observou na ocasião do furacão Katrina em 2005, que devastou a cidade de Nova Orleans, a responsabilidade é atribuída a uma falha de alguém ou de alguma instância.

O furacão Katrina, uma das piores tempestades que atingiram o sul dos Estados Unidos em 100 anos, revelou a ineficiência e a incompetência do sistema econômico do país, principalmente da administração Bush, de prevenir e enfrentar situações catastróficas criadas pela natureza. [...] A meteorologia alertou o país que uma catástrofe era iminente ao revelar que os ventos gerados pelo furacão passavam, então, de 200km/h. Enquanto isso, o presidente George W. Bush descansava em seu sítio em Crawford, no Texas (DIÁRIO VERMELHO, 2005).

A catástrofe, como observa a autora, unindo morte e falência tecnológica, coloca o telespectador num cenário de limites. O que estaria em jogo na catástrofe não é tanto a perda de significação, mas de referência. “A morte não é o ponto culminante de uma vida rica em continuidade e significado, mas é pura descontinuidade, ruptura – acaso ou acidente, o resultado de estar no lugar errado, na hora errada” (DOANE, 1990:233).26

Os acontecimentos catastróficos também têm em comum, segundo a autora, a multiplicação e a intensificação dos seus efeitos através dos meios de comunicação. Sobretudo a televisão faz com que a catástrofe seja uma experiência globalmente compartilhada, apesar de acontecer em um local determinado.

O assassinato do presidente John Kennedy em 1963 inaugura o que pode ser considerado como o paradigma da cobertura televisual da catástrofe (Mellencamp,1990; Torres, 2004), apesar de não se tratar de uma filmagem direta televisiva.

Trata-se de um registro, feito por Abraham Zapruder, em 22 de novembro de 1963, na cidade de Dallas. As imagens gravadas com uma câmera portátil de 8mm refletem o projeto dos realizadores da época de apresentar a realidade tal como é, com o mínimo de intervenção possível. O filme Zapruder incorpora uma das idéias mais caras do cinema direto, a de filmar a realidade com o mínimo de interferência.

Gravado em um único plano (plano-seqüência) o realizador pôde capturar inadvertidamente do local onde se encontrava, não só a chegada do presidente na cidade, mas o exato momento em que Kennedy fora assassinado. O filme registra, ainda que com a precariedade técnica típica dos filmes amadores, um dos momentos mais importantes da história dos Estados Unidos. Segundo Penafria (2003), a rudeza estética e o caráter de seqüência conferem autenticidade ao filme.

O filme Zapruder foi transmitido e re-transmitido incontáveis vezes pela televisão, como se aquele fragmento da realidade pudesse fornecer pistas sobre o assassino. No entanto, a única prova que o filme fornece é a de que, de fato, o assassinato aconteceu. Faltava-lhe, como observa Pasolini (PENAFRIA, 2003), a multiplicação dos diversos pontos de vista que completam a cena.

[...] não é pela “multiplicação de presentes” que se consegue compreender o que aconteceu, é necessário uma coordenação entre planos de modo a “tornar o presente passado” procedendo à selecção dos momentos significativos de cada hipotético plano-sequência (o de Kennedy, o do(s) atirador(es), etc.) e não apenas o de Zapruder [...] (PENAFRIA, 2003).

Segundo Pasolini, a filmagem direta típica da televisão, reproduz o presente, mas é insuficiente para compreendê-lo, já que a ação, apesar de ser mostrada repetidas vezes, é sempre incompleta: “a multiplicação de ‘presentes’ abole, na realidade, o presente, esvazia-o, postulando cada um dos presentes a relatividade do outro, o seu imprevisto, a sua imprecisão, a sua ambigüidade” (PASOLINI apud PENAFRIA, 2003). Seria, portanto,

necessário, para que se compreendesse a totalidade do acontecimento, o trabalho de montagem, a coordenação dos pontos de vista, típico do cinema.

A repetição é justamente um dos principais traços da cobertura da catástrofe na televisão. De acordo com Mellencamp (1992), a TV administra e amortece o choque, “envelopando-o”, fornecendo ao público estímulos em níveis aceitáveis. A repetição dos eventos é feita, segundo a autora, através de um processo que ela define como “alteração repetitiva”. As incontáveis narrações do evento traumático é a forma que a TV encontra para atribuir-lhe novos significados e amortecer seu excesso. Por outro lado, ao repetir o evento catastrófico, a TV assegura que alguma esteja acontecendo e, veiculando o pânico, ela própria cria a “necessidade de televisão”.

O filme Zapruder marca, ainda, segundo Mellencamp, a mudança cultural da recepção pública para a privada, do cinema para a televisão. Na cobertura do evento catastrófico os telespectadores conseguem se lembrar exatamente do lugar aonde estavam no momento do fato, como se a TV e a vida diária permanecem separadas, mas intrinsecamente coladas, trazendo segurança emocional ao telespectador, “eu não estava lá”.

Em 28 de janeiro de 1986 a nave espacial Challenger explodiu 72 segundos após seu lançamento e, com ela, um dos mitos modernos da tecnologia, a conquista do espaço. A televisão apareceu como testemunha da cena, acompanhando o ritual ufanista preparado pela NASA e o exato momento da explosão, transmitida ao vivo para milhões de telespectadores, situados em diversas partes do mundo.

Diferentemente do assassinato do presidente Kennedy, que fora visível ao olhar, Mellencamp (1992) observa que o horror do evento está naquilo que não se pôde ver, seu caráter invisível. Viu-se apenas o “aftereffect”, uma imensa nuvem de fumaça branca, contrastando com o céu azul da Flórida. O que aconteceu no interior da nave, o pesadelo daquele momento vivido pelos astronautas, ficou reservado à imaginação do telespectador, posicionado no lugar do voyeur.

Ao observar a longa duração do evento, na sua transmissão pela rede norte-americana NBC, Doane (1990) elencou uma série de elementos utilizados pela TV para sustentar o tempo dilatado da cobertura: constantes replays da cena da explosão; pronunciamento ao vivo do presidente Ronald Reagan; referência a uma antiga entrevista feita, pelo próprio âncora, com um psiquiatra sobre os possíveis traumas em crianças que presenciam determinados eventos; entradas ao vivo de repórteres falando sobre a reação das autoridades e de jornalistas que presenciaram o evento; nota relatando a reação da primeira dama dos Estados Unidos, enquanto ela assistia a transmissão pela TV; especulações sobre potenciais ataques devido ao apoio do presidente Ronald Reagan ao projeto Guerra nas Estrelas; referência a uma antiga entrevista feita com um dos astronautas que estavam na nave; entre outros.

Na cobertura da catástrofe a colagem desses elementos é feita pelo âncora, que funciona como um pivô, mediando a relação do público com a tragédia. É função dele torná-la aceitável, cuja performance é medida, de acordo com Mellencamp (1992), através da dosagem certa das palavras e informações e da postura calma, frente à situação traumática que se desenrola.

A cobertura de catástrofes é o último teste para os âncoras-top [...] o locutor do Los Angeles News que entrou em pânico durante o terremoto de 1987 e escondeu-se debaixo da bancada rompeu com os protocolos do âncora, tornando-se piada dos programas do final de noite (MELENCAMP, 1992:99).27

A cena da explosão da Challenger foi repetida incontáveis vezes pela televisão, durante e depois da transmissão direta do evento,

[...] uma evidencia da compulsão televisiva de repetir [...] advertindo-nos não somente sobre a natureza catastrófica do evento, mas também sobre a capacidade da TV de gravar instantaneamente, uma lembrança do fato de que a TV estava lá

(DOANE, 1990:231,232). 28

Doane (1990) diz que o âncora da NBC justificou as inúmeras repetições da cena da explosão dizendo que “nós pensamos que é importante que todos os membros da

27

Tradução nossa. 28 Tradução nossa.

audiência, que estão ligando a TV em diferentes momentos do dia, tenham a oportunidade de ver a cena” (DOANE, 1990:232).29 A rotatividade da audiência, o fato de cada um ligar a TV com o fluxo em andamento, é a forma que a TV encontra para justificar a repetição do evento catastrófico. Apesar do acontecimento ser pontual, sua cobertura televisiva é sempre estendida, uma forma de compensar o caráter repentino e inesperado da catástrofe.