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Momento 1 - A configuração de um acidente

Capítulo 3 - A cobertura televisual da catástrofe

3.2 Momento 1 - A configuração de um acidente

Uma imagem chocante abre a transmissão direta dos atentados de 11 de setembro: uma cratera de fogo e fumaça em um dos cartões postais dos Estados Unidos, o World

Trade Center. De impromptum, a rede Globo interrompeu sua programação normal e

colocou a cena no ar.35 O Plantão da Globo inicia-se com sua vinheta padrão. A música dramática que a identifica, a mesma durante anos consecutivos, convoca a atenção do público, como um índice de urgência. O primeiro Plantão da Globo foi ao ar em 1982 e, de lá pra cá, o público já se habituou a interromper suas atividades diárias para prestar atenção na televisão, da mesma maneira que a TV interrompe sua programação normal para mostrar um acontecimento que precisa de divulgação imediata.

Figura 3 Figu ra 4

Vinheta do Plantão da Globo. Cena de abertura focalizando a cratera no edifício.

35 Na gravação obtida da cobertura, através da empresa Look Vídeo, situada em São Paulo, não constam os quatro minutos iniciais da transmissão, por isso a análise foi feita a partir da segunda entrada do Plantão até o seu encerramento, o que totalizou 4h10min de material gravado e analisado.

As primeiras palavras do apresentador destacam o caráter direto e imagético do evento: “Nós voltamos agora com imagens ao vivo”. Imediatamente a inscrição “vivo” foi inserida na tela, marca que não deixa dúvidas quanto à temporalidade da transmissão.

Nessa primeira fase, a voz dominante é a do apresentador, que narra o evento através do recurso da voz em off. A mediação é feita sem a sucessão dos diversos sujeitos falantes, típica dos telejornais (MACHADO, 2001). As fontes de informação, como testemunhas e vozes oficiais, que o jornalismo utiliza para validar suas narrativas, além de repórteres e correspondentes, são inexistentes. Sem poder delegar e amarrar as diversas vozes e enunciados que ajudam a construir a informação televisiva, como cotidianamente fazem os apresentadores de TV, Carlos Nascimento aparece nesta fase como uma entidade narradora central, exercendo mais a função de repórter do que a de âncora, tendo que, forçosamente, reportar o evento de improviso.

Logo nos primeiros momentos, Nascimento aparece brevemente no quadro, de certa forma invadindo, contaminando a tela com sua imagem. A câmera focalizou seu olhar lateral, revelando que ele também acompanhava a cobertura através de um monitor de televisão. Rapidamente, ele é retirado do quadro e permanece em off. Esses primeiros instantes dão o tom da primeira fase: o apresentador comparece como coadjuvante, a imagem do fato tem predominância.

Figura 5 Figura 6

Ao acompanhar as imagens também pela televisão e sem dispor de nenhuma informação acerca do ocorrido, a não ser o que a imagem já revelava, Carlos Nascimento posiciona-se no lugar do telespectador, mudando o estatuto do jornalista. Sem os elementos essenciais que constroem a informação jornalística, seu relato torna-se fundamentalmente descritivo, colado na imagem que revelava apenas o quê (um avião bateu no WTC), onde

(no WTC em Manhattam, Nova York) e quando (há instantes atrás). Redundante e tautológico, ele descreve o que estava visível e patente para quem acompanhava a cobertura: “São torres muito altas”; “Há um incêndio ali, como se pode ver”; “No alto da

torre você percebe que existe uma antena”; “Os primeiros helicópteros ali estão

sobrevoando a área, enquanto se aguarda outras informações”; “A torre é muito alta e

muito grande”; “Aqui vocês vêem exatamente é ... o local onde houve o choque, há um

buraco ali na parede”; “Como se vê, são duas torres, o acidente foi numa delas,

exatamente aquela que tem uma antena”. 36

Seu relato foi marcado pelo excesso de sentenças interrogativas, o que também indica a ausência de informações sobre o evento em curso, o que seria esperado pela posição que ocupa. O mediador, isolado, estabelecia diálogos com o telespectador, reforçando a função televisiva de manter o contato, através da utilização de pronomes como eu, você e nós.

Mesmo não dispondo de informações sobre aquele inusitado acidente aéreo, o jornalista não se permitia ao silêncio: “Sã...são as chamadas Torres Gêmeas. E nesse momento nós também estamos entrando em contato com os nossos repórteres em Nova York, para obter outras informações.”; “São poucos os detalhes conhecidos até este momento”; “Os próprios veículos de comunicação dos Estados Unidos, apanhados de surpresa agora cedo com essas imagens e ... ainda faltam detalhes importantes ... foi no World Trade Center, em Nova York, como eu disse, o prédio mais alto da Ilha de

Manhattam”. Como observa Coutinho,

36 Por não se considerar que os trechos transcritos são citações stricto sensu, e sim o próprio objeto analisado, optou-se por mantê-los no corpo do texto da dissertação, diferenciados através da fonte em itálico e das aspas. Portanto, todas os trechos extraídos da cobertura que compõe a análise a partir daqui, seguirão esse padrão, e não o padrão normativo da ABNT, que poderia prejudicar o estilo da escritura ou, até mesmo, confundir o leitor, já que a análise incorpora igualmente citações de outros autores.

[...] nenhuma imagem no telejornalismo pode entrar pura, sem o comentário que a explique, sem a música que lhe dê sentido. Uma imagem muda é perigosa, porque a busca de seu sentido fica livre, o mundo pleno de significado oscila em sua base (COUTINHO, 1991:281,2 apud REZENDE:2000, 48).

A construção verbal indicava um texto feito de improviso, mais próximo da linguagem oral, com seus lapsos e incoerências, do que do padrão jornalístico, que como observa Paternostro (1987) situa-se num território de fronteira, entre a coloquialidade e a correção gramatical: “Não há ainda detalhes da estratégia a ser enfrentada para se

superar essa situação no World Trade Center”; “Portanto, por maior que seja o avião é

perfeitamente possível que tenha acontecido um choque com um 737”.

Nessa primeira fase da cobertura, a temporalidade é o presente. O acontecimento é apreendido em seu desenrolar, acompanhado minuto a minuto, cronologicamente. A transmissão é integralmente direta, assemelhando-se às filmagens da TV primitiva, que não dispunham das tecnologias de gravação. O real, nesta fase da cobertura, foi captado em sua duração, colado quase que indissociavelmente da transmissão televisiva.

O estatuto direto da transmissão foi evidenciado não só através da inscrição vivo, que permaneceu no vídeo durante toda essa primeira fase, mas também no relato: “Eu volto a dizer que essas imagens que nós estamos recebendo são imagens ao vivo, feitas ali de helicóptero”; “Você está vendo, portanto, aí, ao vivo, as imagens é... do choque que aconteceu”; “Você está acompanhando aí, ao vivo, imagens de Nova York”.

A imagem produzida fugia das convenções estabelecidas pelo jornalismo diário. O acontecimento se impunha sobre a objetiva e sobre o olhar de quem filma. Desde os primeiros instantes, as cenas apresentam a marca do descontrole da instância de produção: a câmera treme, o prédio entra e sai do quadro, o zoom abre e fecha, às vezes freneticamente.

Figura7 Figura 8

O prédio insiste em sair do quadro. O prédio insiste em sair do quadro.

Nas primeiras cenas, observou-se sucessivos movimentos óticos de zoom in e out, que ora aproximavam o acontecimento, como se a objetiva transportasse o telespectador para dentro da cratera de fogo no edifício, ora se afastavam, situando a audiência na paisagem do verão nova-iorquino. Como observa Doane (1990), o esforço televisivo é para tornar visível o invisível, trazer para a superfície o que não está disponível ao olhar. Nesta fase, percebeu-se pouca variação da matéria filmada, o foco e a atenção concentravam-se no edifício.

No switcher o diretor de TV selecionava as cenas ao acaso, buscando focalizar o

acontecimento e impor ritmo à narração, obedecendo às lógicas dos telejornais do plano curto, de três ou quatro segundos. Apesar dos primeiros momentos da transmissão serem integralmente diretos, a Globo ia variando a fonte da imagem, sem permitir que se acompanhasse em tempo real a duração das cenas.

Figura 9 Figura 10

Variações de uma mesma imagem. Variações de uma mesma imagem.

O apresentador, referenciado apenas no que a imagem revelava, tornou-se seu cúmplice, e qualquer descontrole da instância de produção imagética interferia no andamento, na cadência narrativa: “e... nós estamos é.... parece que houve ali uma ligei ... eu não sei se é uma inclinação da imagem? É da imagem, né? É... é ... por um momento ali achamos até que a torre estava se inclinando. Mas é, na verdade, uma inclinação do

ângulo da imagem que está sendo feita, uma imagem provavelmente de helicóptero.”

Figura 11

Ângulo excêntrico, ao jornalismo.

O evento nesta fase pode ser entendido como uma crise (DOANE, 1990), exigindo um agenciamento rápido para sua resolução. Assim, naqueles momentos iniciais da cobertura o tempo parecia estar comprimido, a urgência se impunha, era premente o socorro às vítimas, o controle do incêndio e a retirada das pessoas que ainda estavam na Torre.

A casualidade do evento forçava a TV a improvisar, a lidar com o não-programado, quebrando os rituais de produção do dia-a-dia. Jost (2006) lembra que nos últimos vinte anos pode-se contar nos dedos os acontecimentos que surgiram inesperadamente em direto.

Na maior parte do tempo, a emissão em direto é muito preparada, quer ela seja repetida, como os dramas dos anos 50-60; quer ela seja programada como as grandes cerimônias, quer ela seja reiterada cotidianamente, como no telejornal. (JOST, 2006:288)