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Capítulo 1 - A televisão no tempo presente

1.2 Além da tecnologia, linguagem

Até meados dos anos 1950, a televisão só operava ao vivo, exceto quando exibia produções em película, não pertencentes ao gênero televisual. Em seus primeiros anos, a TV brasileira foi ensaiando sua linguagem, influenciada pelos meios anteriores, sobretudo o teatro e o rádio, que operam no tempo presente e emprestaram-lhe profissionais e grande parte de seus programas. Como lembra Mota (2001), a TV se mirou nos exemplos que lhe pareciam próximos, já que, até então, inexistiam suportes de registro e armazenamento das imagens eletrônicas.

Os esforços dos primeiros profissionais era justamente domesticar o direto, controlar o acaso, o que “forçava os produtores a uma improvisação sempre oscilante entre a genialidade e o ridículo” (PRIOLLI, 1985:23). Após 1956, com a invenção do videoteipe, tornou-se possível a gravação de imagens e áudio em fita magnética. No Brasil, o recurso foi utilizado pela primeira vez em 1958, na TV Tupi de São Paulo. O videoteipe trouxe um maior controle, racionalização e um conseqüente aumento na qualidade das produções.

Entretanto, mesmo após a consolidação do videoteipe e sua utilização sistemática, a sintática das transmissões primitivas parece ter influenciado todo o modo posterior de se fazer TV.

A programação das emissoras de TV continuou a se articular como um “fluxo ininterrupto” e seus programas permaneceram sob a influência da organização formal das transmissões diretas. Seja em um programa em particular, seja no conjunto da programação, todo o esforço dos profissionais de TV é para construir um discurso que se mostre no presente (FECHINE, 2001:114).

Como observa Mota (2001), a vocação televisiva é acompanhar o desenrolar da vida, testemunhar. A possibilidade técnica do direto forneceu as bases para que a TV fosse se descobrindo e se constituindo enquanto um meio dotado de linguagem.

O talento da imagem eletrônica para produzir retratos instantâneos, associado à transmissão direta, resultava numa afinidade com o contemporâneo, com a atualidade. Se por um lado a televisão resistia ao passado, por outro ela se identificava e quase não se diferenciava do presente (MOTA, 2001:33).

Para que se perceba com mais clareza o direto enquanto um fenômeno de linguagem, identificou-se três características que o distinguem como tal: a simulação, ou a incorporação de elementos típicos do direto nas transmissões gravadas; o discurso

auto-referencial das emissoras de TV; e as marcas do direto, elementos indiciais recorrentes nas

transmissões diretas.

Mesmo em programas gravados, que constituem maioria na grade televisiva, observam-se procedimentos próprios do direto televisivo, portanto, num certo sentido, pode-se dizer que eles “forjam” ou simulam esse tipo de transmissão. Muitas produções pré-gravadas são produzidas e editadas em circunstâncias similares às dos programas ao vivo. “Pode-se, portanto, instaurar efeitos de ‘ao vivo’ tanto numa transmissão direta, quanto numa gravada” (FECHINE, 2001:114).

Machado (2001) lembra que o registro em fita magnética das produções gravadas guarda as marcas de incompletude e de intervenção do acaso, específicas dos programas realizados em circunstâncias “ao vivo”. O autor (1995, 2001), discutindo como as transmissões gravadas podem simular o tempo presente, estabelece duas categorias temporais para as diferentes formas de transmissão televisiva.

A primeira delas é o que ele define como tempo real: há uma coincidência entre o tempo vivido na tela e o tempo cronológico, sem, contudo, se tratar de uma transmissão direta. O filme Vôo United 93, do diretor Peter Greengrass, simula essa temporalidade, reconstituindo a ação dos terroristas dentro do boeing seqüestrado que caiu na Pensilvânia no dia 11 de setembro, em seu tempo cronológico. O tempo real não é, portanto, específico da televisão, mas utilizado também pelo cinema em produções como Festim diabólico

(1948), de Alfred Hitchcock ou Matar ou morrer (1952), de Fred Zinnemann, filmes que simulam o tempo vivido fora da tela, minuto a minuto. Evidentemente, são produções que apenas simulam a temporalidade do presente e tudo que é indesejável é apagado do produto final, restando apenas o que o diretor considerar essencial para a coerência narrativa da obra.

A outra categoria proposta por Machado é o tempo presente, procedimento exclusivo do meio televisivo, onde se observa a coincidência entre o tempo da enunciação e o tempo vivido pelo espectador. Em função disso, os produtos televisivos são efêmeros,

não comportam a noção de obra como algo duradouro, “substituindo-a por uma entidade passante, o aqui-e-agora do faiscar eletrônico” (MACHADO, 2001:138). Nesse tipo de transmissão, é possível capturar momentos de verdade, de uma “intensidade inatingível”. Tudo permanece no produto, não há como apagar possíveis “erros”, desconexões ou qualquer fato inesperado que aconteça durante a transmissão.

O humorístico “Sai de baixo”, exibido pela rede Globo de televisão entre 1996 e 2002, é exemplo para que se perceba como a televisão pode simular e incorporar numa produção gravada as marcas do direto. Gravado em um grande teatro, os atores interagiam em vários momentos do show com a platéia, como se fosse um espetáculo teatral. Toda espécie de “erro”, como troca de palavras, esquecimento do texto, risadas incontidas dos atores, improvisação ou qualquer coisa não prevista, mas que pudesse corroborar para o humor, eram mantidos no programa. Ao final de cada episódio, exibia-se uma edição dos erros (não incorporados no texto) ao lado da ficha técnica, denunciando que se tratava de uma produção gravada.

Como pode, então, o telespectador reconhecer se está diante de uma transmissão direta ou não? Esse reconhecimento se dá através de determinadas convenções, fundadas em uma relação de crença, de que aquilo que está acontecendo naquele instante é, de fato, aquilo que ele está vendo em sua casa. A relação estabelecida entre as instâncias produtora e receptora é baseada em um contrato fiduciário, extrapolando os elementos internos dos programas. Fechine (2001) aponta as bases desse contrato: a vigilância recíproca da própria mídia que, em situação de competição acirrada, coíbe as tentativas de falseamento dos concorrentes e nas ocasiões de grandes eventos públicos previamente preparados, uma ampla rede de divulgação se forma em torno do mesmo, culminando num clima de expectativa compartilhado entre o público, fazendo com que o espectador tenha certeza do estatuto da transmissão. A autora diz, ainda, que a identificação do caráter das transmissões diretas está condicionada aos contratos comunicativos, ou estratégias de comunicabilidade, de forma que o próprio telespectador reconheça o estatuto da transmissão devido ao seu conhecimento do meio e do mundo, à sua “cultura” televisiva.

Ninguém que assista TV regularmente espera, ao contrário, que hoje um filme ou uma novela sejam exibidos numa transmissão direta [...] A própria televisão já associou, indissoluvelmente, certos hábitos produtivos e perceptivos a determinados tipos de programa (FECHINE, 2001:122).

Diante da constatação de que os programas gravados incorporam particularidades do direto, Jost (2006) diz, ao contrário, que as transmissões diretas não possuem elementos que as designem como tal, mas adverte que a principal forma de identificá-las é quando se assiste a uma mesma emissão em canais diferentes ou quando se sabe que a televisão transmite um evento que se desenrola em local distinto naquele mesmo momento, como um jogo de futebol. “O direto não é pois, index sui, signo dele próprio, ele não se designa como tal” (JOST, 2006:288).

Fechine (2001) estabelece três procedimentos discursivos, próprios das transmissões diretas, que instauram efeitos de “ao vivo” no restante da programação: a

continuidade temporal e a seqüencialidade da transmissão, o que corrobora para a

percepção de que a temporalidade da duração do evento é a mesma da transmissão; a

montagem feita no mesmo instante da gravação, sem a necessidade de edição posterior; e o

improviso inerente ao registro imediato do evento, incorporando erros e marcas produtivas.

A improvisação, a perda de foco e de quadro, as imperfeições, o tropeço do apresentador, uma pergunta sem resposta durante uma entrevista são alguns elementos da linguagem do direto que, não raramente, permanecem nas produções gravadas, o que pode ser avaliado como uma tentativa de lhes atribuir autenticidade, naturalismo.

Na tentativa de instaurar esse efeito de “ao vivo”, dá-se ênfase, enfim, a tudo que possa imprimir àquilo que é exibido a marca da atualidade, associada à construção de uma proximidade com os fatos, e a marca da autenticidade, associada à construção de uma certa aleatoriedade na transmissão (FECHINE, 2001:117).

A segunda característica proposta é o discurso auto-referencial das emissoras de TV, que constantemente invoca a possibilidade da transmissão direta em sua programação. A TV se apresenta ao público como um dispositivo de proximidade e da atualidade. Como lembra Martin-Barbero (2003), a TV simula o contato, mantendo a atenção e interpelando o telespectador, e se organiza como uma retórica do direto, pela sua capacidade de tornar

próximos lugares e acontecimentos distantes, através da imediatez da transmissão ao vivo – real ou simulada – familiarizando pessoas, lugares e eventos.

Fechine (2006) diz que a grande pretensão das transmissões diretas é injetar no discurso “uma duração extraída diretamente do mundo”, como se a TV recortasse uma temporalidade do real. O direto propicia uma experiência comum de ver televisão, um efeito de contato em que o eu e o outro compartilham um espaço comum na e pela duração.

[...] um espaço que não se constitui mais materialmente, um espaço simbólico, um espaço “vivido” tão somente através da transmissão. É nesse tempo e nesse “lugar”, criados por esse nosso próprio contato com a televisão, que se estabelece um tipo de encontro entre sujeitos (FECHINE, 2006:144).

Feuer (1983) lembra que o meta-discurso televisivo insiste que o que está sendo apresentado é direto, espontâneo, não-mediado, real. “Da simples oposição entre programas diretos e gravados, nós expandimos a questão para a equação entre o ‘ao vivo’ e ‘o real’. A televisão direta se apresenta como viva, real, diferente da programação gravada, que representa o passado, a morte(FEUER, 1983:14). 9

A autora observa que a possibilidade da transmissão ao vivo tornou-se um discurso generalizado do meio que, freqüentemente, apela para a riqueza conotativa do termo, contaminando a denotação técnica com sentidos de presença e de presente. Ela afirma que o “ao vivo” constitui a grande definição da TV e, nesse sentido, a ontologia aparece como ideologia, posicionado o telespectador num “imaginário de presença e imediaticidade”.

Entretanto, na opinião de Feuer, a televisão se constitui cada dia menos como um meio direto, de equivalência entre os tempos de produção, transmissão e recepção.

A televisão, verdadeiramente, quase nunca explora sua capacidade de transmissão instantânea e não mediada. Somente as conotações ideológicas da possibilidade do direto são exploradas para minimizar a contradição entre o fluxo e a fragmentação que se observa na prática televisiva cotidiana (FEUER, 1983:16).10

9

Tradução nossa. 10 Tradução nossa.

Com o replay instantâneo e as novas tecnologias de edição digital – desenvolvidas sobretudo para as transmissões diretas esportivas – o que era para ser ao vivo, é congelado, repetido, retransmitido durante a própria transmissão em câmera lenta. Portanto, as emissões propriamente diretas comportam o tempo passado, sobretudo através de imagens que não foram captadas no tempo presente da enunciação. Feuer (1983) diz que a noção de “ao vivo” refere-se muito mais a um “complexo e alterado esquema de tempo”, entrelaçando de forma indissociável imagens do passado e do presente, através de uma colagem de filme, vídeo e do “ao vivo” propriamente dito.

Jost (2006), seguindo essa mesma linha de pensamento, diz que a promessa do direto carrega consigo uma promessa ontológica de autenticidade e que o telespectador crê que o direto é a forma mais autêntica de restituição do real. Portanto, percebe-se a existência de um valor de verdade associado ao modo de transmissão direta televisiva, uma aproximação entre o direto e o real. A industria televisiva associa o conceito de “ao vivo” ao de real, almejando autenticidade a produtos que supostamente pareçam menos mediados ou manipulados.

Deborah Esch (1993) lembra que o direto constitui a base de todo um imaginário

televisivo, segundo ela por duas razões: a fantasia de que a imagem é direta, não produzida

por uma tecnologia de representação, não-mediada, e a fantasia concomitante de que a imagem é direta para mim, endereçada de forma a-problemática ao sujeito que compartilha o evento imagético.

A auto-referenciação fica explicitada, ainda, em slogans e nomes de programas,

que não raramente fazem referências ao estatuto do direto: Aqui Agora, Brasil Urgente, A

vida em tempo real, Em cima da hora, e assim por diante.

A terceira característica apresentada, as marcas do direto, como já se anunciou, são elementos típicos das transmissões diretas, que permitem identificá-las como prática significativa. Apesar de muitos programas gravados incorporarem ou simularem traços do direto, como já se disse, faz-se necessário identificar essas marcas enquanto elementos constituintes de uma linguagem do “ao vivo”. A utilização dessas marcas em programas gravados, ao contrário, só confirma a sua existência.

Algumas marcas não deixam dúvidas quanto ao caráter da transmissão, outras não são suficientes para que o telespectador as identifique. Em determinados momentos, elas são observadas no texto, em outros na imagem e, freqüentemente, em ambos. A inscrição do relógio, que dá a dimensão exata do tempo cronológico, e a utilização da inscrição “vivo” são marcas exclusivas do direto. Os imprevistos e os improvisos, ou todo tipo de solução realizada num produto em processo, são marcas não exclusivas.

A primeira e mais óbvia forma de identificação é a inscrição da palavra “vivo”, ou de termo equivalente, na tela televisiva. A maioria das transmissões diretas vale-se deste recurso para explicitar o seu caráter. A inscrição costuma vir junto à logomarca da emissora, que permanece no vídeo durante quase todo o fluxo de programação, exceto nos intervalos comerciais.

Além da inscrição no vídeo, a televisão utiliza também a palavra oral. É bastante comum que os profissionais de TV digam expressões como “estamos ao vivo”, “informações ao vivo de Brasília com o repórter”, “é quem nos fala ao vivo”, “vamos ao vivo, direto de Nova York”, denunciando o caráter direto da transmissão.

Interessante observar que os telejornais, por seu turno, geralmente só utilizam a inscrição da palavra “vivo” durante o link ou stand up.11 Apesar da apresentação do telejornal ser, quase sempre, em circunstância direta, o telejornal quase nunca insere a marca “vivo” quando os apresentadores estão em quadro. Talvez porque diferentes registros de tempo componham a totalidade dos produtos telejornalísticos.12

A televisão utiliza, ainda, o relógio para indicar que a temporalidade da produção coincide com a temporalidade vivida pelo telespectador. Muitas vezes o relógio aparece como imagem eletrônica em alguma parte do vídeo, mas pode, excepcionalmente, compor o cenário, como um adorno. Nos programas jornalísticos, o relógio costuma vir

11 A entrada de repórteres que falam direto do local dos acontecimentos, com o intuito de transmitir as últimas informações sobre eles.

12 Grosso modo e a título de exemplificação, pode-se dizer que eventos e narrativas de diferentes

temporalidades conformam os telejornais: reportagens gravadas (passado), link (presente), notas cobertas por imagens lidas pelo apresentador (passado), notas simples lidas pelo apresentador em quadro (presente), além de um sem número de informações que apontam para o futuro como projeções, previsões do tempo, anúncios de eventos que ainda irão acontecer, agenda cultural etc.

acompanhado de outros elementos textuais: informações do mercado financeiro, meteorologia, últimas notícias etc. 13

Informar as horas oralmente é prática corriqueira na televisão direta. Não só nos programas jornalísticos, mas em diversos gêneros como variedades, musicais, reality-

shows, programas de auditório, o anúncio é feito de tempos em tempos, lembrando aos

telespectadores que os momentos de enunciação e recepção são coincidentes.

Outro traço distintivo do direto é a interferência do acaso, daquilo que acontece sem a previsão e, portanto, pode fugir ao controle do enunciador. Eventos como a luz que queima e escurece o cenário, os torcedores de um time de futebol que agridem o repórter de televisão no momento de sua entrada em quadro, a mesa que cai no estúdio durante uma apresentação ou um carro desgovernado que entra no espaço da platéia em uma corrida são casualidades que qualquer transmissão direta está sujeita.

[...] quando não ocorre fato mais grave, como um acesso de tosse do apresentador ou um enquadramento inesperado que revela os bastidores, a girafa do microfone, a presença da câmera, ou qualquer coisa simplesmente inominável (MACHADO, 2001:131).

O acaso talvez seja o elemento mais interessante das transmissões direta, porque pode interferir, descontrolar, “desarrumar a casa” e os códigos televisivos. O site You Tube

é fonte inesgotável das mais variadas gafes que ocorrem em direto: da risada incontida da jornalista Lílian Wite Fibe14 ao anunciar que uma mulher de 81 anos, numa cadeira de rodas, foi presa por tráfico da drogas ao viajar com 10 mil tabletes de estase e que, seu namorado, de 56 anos, disse à polícia que pensou que os comprimidos fossem pílulas de

Viagra, à cena em que o apresentador Fernando Vanucci aparece visivelmente bêbado15

durante o programa Bola na Rede, da Rede TV, no dia em que a Itália venceu o Brasil no final da Copa de 2006.

13 Esta forma de inscrição teve seu início no Brasil por volta dos anos 1990, após a chegada da emissora a cabo Globo News, cuja principal referência é a rede norte-americana CNN. Atualmente, não só as emissoras de notícias 24 horas, as chamadas all news, mas também os canais abertos utilizam o padrão. A TV Globo Minas, por exemplo, em seus boletins diários de notícias no período da tarde, apresenta o relógio na tela junto a outros elementos textuais (temperatura, cotação do dólar, últimas notícias), além de a apresentadora anunciar as horas oralmente.

14 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=E7gcms1WID8. Na época, a jornalista apresentava o

Jornal da Lílian, transmitido ao vivo na Internet.

Machado (2001) lembra que o espectador já se acostumou a um tipo de transmissão em que controle e acaso convivem lado a lado e que as emissoras só transmitem diretamente eventos que ofereçam pouca margem para a improvisação, porque “os homens que constroem o relato da TV tentam domar de todas as formas essa vocação para o acaso” (MACHADO, 2001:136). Regina Mota (2001) observa que, desde o surgimento da TV, os esforços dos primeiros criadores era saber como domesticar, esconder o presente, controlar o acaso.

Outra marca não exclusiva do direto é o improviso, que segundo uma das definições do Aurélio (1986) é “um produto intelectual inspirado na própria ocasião e feito de repente, sem preparo”. Aqui, já se percebe a relação entre o direto (a ocasião) e sua marca indicial (produto intelectual feito sem preparo).

Necessariamente, os enunciadores de uma transmissão ao vivo criam o enunciado sem ter condições de apagar as vicissitudes do processo. Não há um recuo, um tempo de manipulação do material para filtrá-lo das “impurezas” desnecessárias ao sentido da obra, como ocorre nas produções cinematográficas, em que o tempo de manipulação do material é estendido e suas fases, bem delimitadas.

Todo o staff televisivo, do diretor de TV, ao cinegrafista, do operador de áudio ao apresentador, não tem condições de pré-visualizar o produto final, o que força a criação de soluções instantâneas. Como lembra Machado (2001), na TV ao vivo tentativa e resultado coincidem.

Em tempo presente, os realizadores devem dar consistência ao material no mesmo momento em que esse material ainda está sendo tomado e sem ter condições de pré-visualizar os resultados antes que o produto chegue ao receptor. Ora, tornar as mensagens “legíveis” ao espectador no mesmo momento em que elas ainda estão sendo enunciadas constitui fenômeno inédito na história do audiovisual, com conseqüências inumeráveis nos planos da criação e da recepção (MACHADO, 2001:130).

Os traços de desordem e de casualidade, presentes nas transmissões diretas, se relacionam, segundo Eco (1968), à noção de abertura, ideal comum a distintos terrenos da arte contemporânea, que comportam uma pluralidade de significados em um significante.

Uma obra aberta possibilita o deslocamento de perspectivas e de interpretações, uma vez que comporta a vida em sua multiplicidade, sem nexos determinados a priori.

Segundo o autor, é possível atribuir valores artístico e estético a determinadas transmissões diretas, que compartilham elementos do acaso, da desordem e da informalidade. Ele lembra que numa transmissão direta, o diretor de televisão vive uma experiência única, tendo que estabelecer uma ordem lógica a um evento que ainda se desenrola cronologicamente.

[...] o diretor de televisão vive, todavia, uma aventura formativa tão desconcertante que constitui um fenômeno artístico de extremo interesse, e a qualidade estética de seu produto, por grosseira e débil que seja, continua sendo capaz de abrir perspectivas estimulantes a uma fenomenologia da improvisação (ECO, 1968: 190,191).

No entanto, o autor salienta que grande parte das emissões diretas oferece pouca