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O fim da grade: o tempo embolado na televisão

Capítulo 3 - A cobertura televisual da catástrofe

3.4 Momento 3 - A domesticação da catástrofe

3.4.2 O fim da grade: o tempo embolado na televisão

Se a grade de programação de uma emissora é a marca de um meio baseado na coordenação de seu tempo com o ritmo da vida cotidiana (CASSETI e ODIN, 1990), o que se observou no 11 de setembro foi o espaço tomando lugar de primazia sobre o tempo, agora indeterminado e congelado no presente da tragédia. A vida cotidiana marca a referência temporal da grade. A rede Globo, por exemplo, emissora que mantém seus principais programas há décadas, elabora sua grade a partir das rotinas de seu público, oferecendo-lhes programas específicos para cada momento do dia: café da manhã (Bom

Dia Brasil), almoço (Jornal Hoje), jantar (Jornal Nacional), para as crianças que vão à

escola à tarde (TV Globinho), para os adolescentes que vão à escola pela manhã (Sessão da

(Mais Você) e assim por diante. Se a noção de grade já tinha se perdido desde o início da cobertura, o mesmo pode se pensar do ritmo normal da vida, agora completamente alterado pela catástrofe na televisão.

A temporalidade torna-se, nessa terceira fase, radicalmente complexa, marcada pelo excesso de repetições de cenas e informações, pelas filmagens gravadas e editadas, pela transmissão direta e pelo próprio tempo da espera, que remetia ao futuro incerto. A TV deixa de operar no tempo orgânico e passa ao tempo indeterminado, onde passado, presente e futuro parecem coexistir e dissolver todas referências cronológicas. A complexidade dos múltiplos tempos que compõem o direto televisivo fica, também, radicalmente evidenciada nesse terceiro momento. Na espera por novos eventos, a cobertura se estendia, quase que indefinidamente, rompendo toda a grade previamente estruturada. Nem a própria televisão sabia quando a cobertura iria terminar.

A grande incidência de replays do choque do avião, dos edifícios em chamas e da queda das duas torres continua constante: “Nós estamos aí vendo novamente as imagens das torres do World Trade Center no momento do desabamento de uma delas”; “Nós vamos agora rever, Ana Paula, com os telespectadores, o momento impressionante em que o avião choca-se com aquela parte de trás da torre”; “E nós vamos rever agora as

imagens talvez mais impressionantes do dia, no momento em que desabam as torres”. Não

raramente, o gerador de caracteres se perdia, obrigado a realizar malabarismos para inserir ou retirar a inscrição vivo, que insistia em aparecer em cenas passadas.

Figura 91

earlier

Figura 92

A TV perdida no complexo tempo da catástrofe e do direto.

Figura 93

A TV perdida no complexo tempo da catástrofe e do direto.

A cena da antena da Torre Norte sendo engolida pela fumaça foi reprisada vinte vezes, sempre acompanhada de um relato descritivo: “veja a imagem, veja a antena de rádio lá de cima desaparecendo na fumaça, no momento em que cai a segunda torre do

World Trade Center”; “esse é o momento do desabamento da segunda torre”; “você vê aí,

de novo, a imagem da segunda torre caindo”; “ali você está vendo novamente quando a

torre desaparece no meio da fumaça e da poeira”.

Figura 94

earlier

vivo

earlier

Cenas repetidas, constantemente apresentavam lado a lado a inscrição vivo e o

earlier. Era como se o tempo insistisse em não progredir.

Figura 95

O tempo insistia em não progredir, cenas passadas eram atribuídas como “ao vivo”.

Algumas seqüências, que já haviam sido mostradas em momentos anteriores, eram equivocadamente atribuídas pelo apresentador como “imagens ao vivo”: “Você está vendo aí imagens do socorro aos feridos, o que está acontecendo nesse momento, no centro de

Nova York”. O passado parecia não resistir ao tempo televisivo da catástrofe.

Figura 96

Cena de socorro reprisada, filmada em Washington.

Detalhes que revelavam o estatuto temporal da imagem passavam despercebidos pelos apresentadores: “Veja só a imagem, Nascimento, mais uma vez, da segunda torre

desabando, de um outro ângulo, de um ângulo... enfim, a imagem foi feita aqui do chão”.

A imagem contradiz o texto, mostrando a queda da primeira torre. Nesse momento a câmera desce, vai para o chão, analogamente à Torre. Era a televisão submetida às lógicas do atentado.

Figura 97

A torre desaba, mais uma vez.

Figura 98

A câmera desce, vai para o chão.

Figura 99

E completa o sentido da queda da imagem.

No compasso da espera por novos eventos e tentando ordenar o acontecimento, a TV recapitulava periodicamente toda a seqüência dos acontecimentos daquela manhã, preenchendo o tempo com conteúdos típicos da informação. Naquela altura, a TV já possuía recuo necessário à elaboração de notas cobertas, textos em off acrescidos de imagens previamente editadas. O formato, típico dos telejornais, passou a ser observado em diversos momentos: “vamos passar aqui aos nossos telespectadores um pequeno

resumo do que aconteceu na manhã de hoje”; “o que você vai ver agora é um compacto, um replay do que nós já mostramos”; “Nós vamos agora reapresentar a vocês um resumo dessa manhã, dos principais acontecimentos nos Estados Unidos, pela ordem em que os fatos aconteceram”; “a gente vai agora resumir os acontecimentos e mostrar as providências que estão sendo tomadas”; “você vai ver agora (...) um resumo dos fatos

desta manhã nos Estados Unidos”.

Em uma dessas notas, as imagens mostravam cenas do atentado ao World Trade

Center, em 1993. Imagens de arquivo e relato relembravam a explosão de um carro bomba

em um dos andares da garagem do edifício, forçando a coexistência do passado remoto e da transmissão direta. A nota continha dados absolutamente triviais, típicos da informação:

“Às duas e quinze da tarde, horário local, o terror”; “três andares foram danificados”; “413 metros de altura”; “passaram pelo conjunto 30 milhões de visitantes”; “tinham 43.600 janelas”; “um dos prédios sediava 600 escritórios de firmas internacionais”; “dois elevadores expressos subiam ou desciam 7 andares em menos de um minuto”.

Figura 100 Figura 101

Imagem de arquivo do atentado de 1993. Imagem de arquivo do atentado de 1993. A tragédia anunciada.

Figura 102 Figura 103

Imagens de arquivo do atentado de 1993. O cartão-postal fica na memória.

Imagem de arquivo, sem identificação temporal.

Figura 104 Figura 105

Imagem de arquivo, sem identificação temporal. Imagem de arquivo, sem identificação temporal.

Nessa terceira fase, os repórteres que até então entravam somente ao vivo, passaram a enviar material gravado, como a participação do repórter Edney Silvestre, que relata o evento de uma avenida de Nova York, uma entrevista que ele fez com uma testemunha brasileira, citada anteriormente e uma matéria da repórter Zileide Silva, entrevistando testemunhas estrangeiras, também já citada.

Figura 106

Entrada gravada do repórter Edney Silvestre, o cenário

Quando narravam de improviso, sem o recuo muitas vezes necessário para elaborar um discurso lógico, os apresentadores se perdiam: “Primeiro porque quando essa fumaça baixar ali não estarão mais as Torres Gêmeas do World Trade Center, de 110 andares, construídas em 1970. Segundo, porque a... o coração de Manhattam olha, este é um cartão postal que você já viu no cinema inúmeras vezes, não é”; “embora os atentados tenham se dado de uma maneira absolutamente prosaica, se você considerar é é... (silêncio

prolongado) pois é, o pentágono”. Outrora elaboravam argumentos aparentemente lógicos,

mas longe do que pode ser considerado razoável: “agora, se o Pentágono foi atingido como foi, e se houve um desabamento lá dentro, sendo o Centro de Defesa americano, e não estando muito distante da Casa Branca, é de se supor que seria perfeitamente possível um atentado ao presidente americano quando estivesse lá dentro, não é? Porque quem chega ao Pentágono, provavelmente chegaria à Casa Branca”.

Apesar de já possuir o recuo de tempo necessário à elaboração de um texto coerente, a TV continuava a transmitir informações precipitadas e incorretas, mesmo em notas cobertas, cujo texto é redigido e lido, portanto, menos sujeito às vicissitudes do relato improvisado em direto, predominante nos dois primeiros momentos: “Cerca de 50 mil pessoas estavam nos dois prédios”; “uma das torres desabou, depois de uma forte explosão”; “pessoas se jogavam pelas janelas do edifício enquanto ele desabava”; “A Rede de TV Americana ABC disse que um carro-bomba explodiu contra o prédio do

Departamento de Estado, em Washington”; “todos os vôos para os Estados Unidos,

procedentes de todas as partes do mundo, foram desviados para o Canadá”.

As informações desencontradas construíam um relato singular, que revelava o descontrole da instância enunciadora ao ficar de frente com o tempo presente: “agora há pouco houve uma pequena explosão, um acidente com um avião ( ... ), e a gente não sabe ainda se este acidente está relacionado com outros atentados”; “O Departamento de

Estado, ainda não foi confirmado se houve um ataque ao Departamento de Estado”; “A

segunda informação é de que outro avião, o FBI está investigando a possibilidade de seqüestro de um segundo avião”.

Na tentativa de fazer um processamento em tempo real, algumas informações eram questionadas pelos apresentadores, como os primeiros números oficiais fornecidos pelo

Departamento de Estado Americano – mil feridos e seis mortos – dado que parecia ridículo frente ao acontecimento. Se por um lado a TV questionava o dado oficial, por outro projetava um número de vítimas muito maior do que de fato houve: “todos os dias pelo menos 150 mil pessoas visitam as torres do World Trade Center. No momento da tragédia, hoje de manhã, poderia haver pelo menos 40 mil pessoas no prédio. Portando, a gente ainda não tem a noção exata da proporção dessa tragédia, mas ela deve ser muito maior

do que os números oficiais nos dão conta até o momento”.

O caos instalado na cidade de Nova York foi noticiado inúmeras vezes durante esse terceiro momento da cobertura, em mais um movimento que parecia eternizar o presente:

“as comunicações em Nova York estão dificílimas nesse momento (...) A cidade de Nova York deve estar vivendo um momento de pânico absoluto nesse momento”; “todos os vôos internacionais, dentro dos Estados Unidos, estão cancelados, todos os aeroportos estão

fechados e todos os prédios públicos importantes também estão sendo evacuados”.

A sensação de isolamento e pânico é amplificada também pela ausência das autoridades norte-americanas, principais fontes de informação naquele contexto: “as autoridades americanas realmente desapareceram nessa altura, né? O presidente Bush fez

aquela rápida aparição na televisão e depois dele ninguém mais falou nada”. Na ausência

de fontes legitimadas, a TV recorre novamente à repetição: “eu gostaria aqui agora de rever com vocês a imagem, a única imagem disponível até agora do presidente americano George W. Bush, quando esta manhã, atônito, veio diante das câmeras de televisão para

tentar explicar ao povo americano o que estava acontecendo”. O pronunciamento do

presidente Bush, ainda que em parte, seria repetido oito vezes, porém acrescido de legenda no idioma português. Em uma dessas reprises, Nascimento, mais uma vez, extrapolaria em suas observações: “você reviu, portando, as declarações do presidente George W. Bush, atônito, perplexo, eu diria que assim quase à beira de uma crise de choro ali naquele

Figura 107

Repetição do pronunciamento do presidente Bush.

Figura 108

A legenda já aparece no quadro.

Figura 109

A expressão não apresenta grandes alterações.

Na falta de dados reais, Carlos Nascimento continuava a sustentar a hipótese de implosão, insistindo na afirmação até o final da cobertura: “a queda das torres pressupõe que houvesse explosivos ali na base, né, para conseguir derrubar aquelas torres”; “quem já viu imagens, aqui mesmo no Brasil, de prédios sendo implodidos, vê que eles caem exatamente dessa maneira, o que nos leva a imaginar se não haveria explosivos colocados

na parte de baixo do edifício”; “o que houve a seguir? quais foram as outras ações

terroristas, a instalação de explosivos na base das torres ou alguma coisa assim”.

Notou-se que em determinados momentos, a precipitada hipóteNotou-se causava constrangimento entre a dupla: “Num primeiro momento eu achei até que fosse o próprio incêndio que estivesse aumentando, enfim. Logo depois percebemos que, na verdade, o prédio havia ruído,

precedido por uma explosão. O que faz”. Prontamente, Ana Paula Padrão interrompe a fala

do âncora: “O que a gente não sabe dizer, até agora, é se essa explosão é uma conseqüência da batida do avião no prédio ou se já haviam explosivos colocados em locais estratégicos do prédio, para que ele desmoronasse em seguida. O que se sabe com

certeza, Nascimento, é que foi uma ação orquestrada”. Ele responde, insistente: “O que

vocês vêem aí, pra quem está acostumado a ver implosões, é muito parecido, né? Você vê

que ela caiu em pé, não é verdade?”.