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Capítulo 2 - O acontecimento catastrófico

2.2 Catástrofe, a desordem da informação

Se o 11 de setembro é, como afirma Jost (2006), um acontecimento com enorme potencial informativo, porque ele resistiu à apreensão? Para entender esse paradoxo, recorreu-se à noção de catástrofe, presente em diversas áreas do conhecimento ao longo da história, que ajuda a compreender o acontecimento, não apenas do ponto de vista mediático, mas sua face dura, devastadora.

Segundo Mellencamp (1999), as teorias da catástrofe são baseadas em modelos de tempo ou no medo da morte: há aquelas que englobam o paradoxo da contradição e da descontinuidade, outras tratam do apocalipse em evolução.

As teorias da catástrofe – matemática (René Thom), psicanálise (Sigmund Freud), sócio e geologia (jornal Disasters), materialismo histórico ou dialético (Benjamin), artes (Andy Warhol na pintura, Bruce Conner no cinema e escultura, Ant Farm no vídeo), bíblica (os ‘catastrofistas’ e os evangelistas da TV), estética (a “crítica nuclear” de Baudrillard e Derrida) e ‘literal’ (ações, testes e política nuclear dos Estados Unidos) – são baseadas em modelos de tempo e no medo da morte (funcionando como negação,

discordância e perda de poder e controle) (MELLENCAMP, 1990:244).18

A primeira formulação de uma “teoria da catástrofe” foi feita pelo matemático René Thom, publicada em 1972. Partindo de uma perspectiva qualitativa, ao invés da tradição quantitativa da matemática, e observando fenômenos cotidianos, Thom buscou entender as razões de mudanças bruscas, aparentemente imprevisíveis, em sistemas de aparência estável. Ele define a catástrofe como uma transição descontínua, um salto de um estado a outro, da ordem à desordem.

Para Thom, a catástrofe é um fenômeno que envolve a criação e a destruição de formas, a passagem de uma forma a outra, num processo de estabilidade e instabilidade. Os momentos de transição das formas são breves, o que ele define como jump behavior, como a passagem do estado líquido da água para o sólido ou gasoso, por exemplo. A erupção de um vulcão, a queda de uma folha da árvore, um conflito social ou político são alguns fenômenos catastróficos na concepção de Thom e podem se apresentar como rupturas radicais ou como processos silenciosos em andamento.

De acordo com Doane (1990), o objetivo de Thom era conceber uma linguagem formal que descrevesse as repentinas descontinuidades em um sistema. Em 1972, E.D. Zeeman criou um brinquedo educativo denominado “máquina de catástrofe” para facilitar o entendimento da teoria de René Thom. Seu funcionamento era justamente não funcionar, foi projetado para produzir irregularidades imprevisíveis. A teoria da catástrofe trata de singularidades, não reduzíveis a nenhum sistema pré-determinado.

A catástrofe não é, de longe, da ordem da explicação. A teoria da catástrofe confronta o indeterminável sem querer reduzi-lo a um conjunto de determinantes. [...] A teoria da catástrofe é um aspecto de um novo tipo de conhecimento científico que Lyotard definiu como “pós-moderno” – uma ciência que ‘concerne a si mesma com coisas indecifráveis, os limites do controle preciso, conflitos caracterizados por informações incompletas, fractais, catástrofes, e paradoxos pragmáticos – é teorizando sua própria evolução como descontinua, catastrófica, incorreta e paradoxical. É mudando o próprio significado da palavra conhecimento, que passa a expressar uma mudança que ocorreu (DOANE, 1990:234).19

18

Tradução nossa. 19 Tradução nossa.

Na modernidade o sentido do termo catástrofe mudou, como confirma a teoria de René Thom. Se até o século XIX, ela era entendida como um evento raro, uma ruptura no real, no século XX o real passou a ser definitivamente percebido como catastrófico. A experiência do homem moderno está repleta de choques, de embates cotidianos, de rupturas e interrupções, portanto, a catástrofe passou a ser pensada não apenas como um evento raro, limite, no sentido que estamos lhe atribuindo nesta pesquisa, mas como um fenômeno corriqueiro, impregnado no mundo. “Cada um de nós sobrevive como pode a uma dose diária de exposição traumática, na tela da televisão ou no sinal de trânsito” (NESTROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000:11).

O termo catástrofe vem do grego e significa reviravolta, “virada para baixo” (kata

+ strophé), desabamento, desastre. Um dos possíveis entendimentos apontados pelo

Aurélio (1986) é “acontecimento lastimoso ou funesto; grande desgraça”. Abbagnano (1970) diz que a expressão é usada por “toda teoria que procure explicar o desenvolvimento de uma realidade qualquer mediante reviravoltas radicais e totais que ocorreriam periodicamente”. (ABBAGNANO, 1970:114)

Do hebraico, o termo shoah, correntemente utilizado pelas teorias para designar as barbáries nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra, também significa catástrofe. O holocausto é o evento limite do século XX, que “desafia, para sempre, as formas de pensar, elaborar, representar” (NESTROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000:10), uma das concepções mais profundas de catástrofe e de falência do homem. A literatura sobre o tema, apesar de diversa e distante do objeto da pesquisa, aponta alguns caminhos para se pensar como o evento catastrófico reorganiza as tradicionais concepções de representação, que dividem de modo estanque sujeito e objeto, realidade e descrição.

O historiador da Shoah fica preso a esse duplo mandamento contraditório: por um lado, a necessidade de escrever sobre esse evento, e, por outro, a consciência da impossibilidade de cumprir essa tarefa por falta de um aparato intelectual “à altura” do evento, ou seja, sob o qual ele poderia ser subsumido. A tentativa de Friedlander de delinear um limite para a representação do Holocausto deságua na afirmação da ausência de limites do seu objeto: como representar algo que vai além da nossa capacidade de representar e imaginar? (NESTROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000:79).

É na tensão entre a necessidade de narrar a experiência vivida e a subseqüente insuficiência da linguagem para narrar fatos inenarráveis que se articula o campo da

literatura do testemunho. Como observa Seligmann-Silva, o testemunho catastrófico

articula-se sob um signo duplo, da necessidade e da impossibilidade.

Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o “real”) com o verbal. O dado inimaginável da experiência concentracionária desconstrói o imaginário da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real” equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida (SELIGMANN-SILVA, 2003:46,47).

A testemunha de um evento-limite encontra-se presa no paradoxo de ter que narrar a experiência vivida e, ao mesmo tempo, percebe a insuficiência da linguagem diante de fatos inenarráveis, inverossímeis. Jean-Louis Comolli (2006) discute as tensões vividas por quem filmou e viu o horror dos campos de concentração nazista, tendo como referência o filme Memory of the Camps, documentário realizado a partir das cenas de libertação do campo Bergen-Belsen, no final da Segunda Guerra. O filme mostra imagens das atrocidades nazistas, até então inéditas na história do cinema: corpos esqueléticos, doenças, degradação, cadáveres empilhados, vivos e mortos dividindo um espaço comum. Memory

of the Camps, segundo o autor, impõe o pensamento a pensar o impensável. Convoca o

espectador a compartilhar um momento de desequilíbrio, entre um mundo de sentido e um mundo fora do sentido.

Filmar aquilo que jamais havia sido filmado, jamais havia sido imaginado, aquilo de que precisamente faltava à imagem. Ao mesmo tempo, o cinema evidencia esse desafio, a única coisa que pode fazer é evidenciá-lo. [...] os responsáveis tinham plena consciência do seu absoluto ineditismo: imagens jamais vistas e que, ao mesmo tempo, talvez por causa disso, por causa daquela potência de ruptura do ainda-não-visto, eram difíceis de aceitar, difíceis de acreditar (COMOLLI, 2006:23).

Aristóteles (SELIGMANN-SILVA, 2003) diz na poética que “deve-se preferir o que é impossível, mas verossímil, ao que é possível, mas não persuasivo”. A inverossimilhança da Shoah levou os documentaristas do imediato pós-guerra ao impasse de

filmar sem saber, filmar sem compreender. Filmar para ver, mas somente depois, num outro momento da história. Há uma urgência em se filmar mesmo que não se saiba o sentido que aquilo possa ter. Filmar para trazer um sentido ainda não dado, ainda não possível, mas já inscrito naquilo que filma sem que se saiba. [...] A perturbação percebida e declarada pelos realizadores do filme testemunha também aquela opacidade ainda não esclarecida, e contudo filmada, como se houvesse a promessa de um sentido, de uma significação ao menos [...] (COMOLLI, 2006:31).

Acontecimentos catastróficos não são, portanto, simples de representar, são eventos que apontam para uma dissolução do sentido, uma interrupção. Eventos que, como diz Carvalho (2000), costumam trazer em si um problema de representação.

Quanto mais ostensiva e direta tenta ser esta última, menos parece dar e render conta do horror que pretende representar. É como se a representação do horror o anulasse ao insistir na tentativa inútil de reproduzi-lo (CARVALHO, 2000:237).

A catástrofe é um evento que provoca um trauma, palavra de origem grega que significa ferimento. Como observam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000),

“Trauma” deriva de uma raiz indo-européia com dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”; mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta contradição – uma coisa que tritura, perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, já revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por formas simples de narrativas (NESTROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000:8).

Segundo Freud, citado pelos autores, a experiência catastrófica “traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser absorvido” (NESTROVSKI e SELIGMANN-SILVA, 2000:8). A característica essencial do trauma é o adiamento, a não assimilação do evento no momento de sua ocorrência. Só tardiamente, após a repetição do evento, ele pode ser assimilado. A temporalidade do evento traumático, portanto, é complexa e envolve construções recíprocas do passado e do presente.

A linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção. Daí Freud destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do “traumatizado” da cena violenta: a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real [...] A incapacidade de simbolizar o choque – o acaso que surge com a face da morte e do inimaginável – determina a repetição e a constante “posterioridade”, ou seja, a volta après-coup da cena (SELIGMANN-SILVA, 2003:48,49).

Talvez por isso, a cobertura do dia 11 seja marcada pelo excesso de repetições, uma forma possível de suplantar o trauma provocado pelo choque, conforme será demonstrado no capítulo três. Os jornalistas permaneceram encurralados na contradição de ter que dar um sentido ainda não dado, não imaginável, mas já inscrito no acontecimento, revelando a impossibilidade de submetê-lo à linguagem.