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Capítulo 3 - A cobertura televisual da catástrofe

3.4 Momento 3 - A domesticação da catástrofe

3.4.1 Vozes múltiplas e pouco esclarecimento

Para efeito de análise, o terceiro momento da cobertura do 11 de setembro começa com a entrada da jornalista Ana Paula Padrão, logo após o desmoronamento da Torre Norte, ocorrido às 11h28. A apresentadora inicia sua narração em off, suas primeiras palavras reiteram a improbabilidade do evento, seu caráter simbólico e a transmissão direta televisiva. “É absolutamente inacreditável ver o World Trade Center, um dos grandes cartões postais dos Estados Unidos, desaparecer diante dos nossos olhos (...) ao vivo pela

televisão”.

A necessidade imperativa de dar sentido, de domesticar o acontecimento, integrando-o aos esquemas correntes de percepção, forçou a televisão a convocar inúmeras vozes, o que se considerou uma característica peculiar dessa fase. A entrada da apresentadora já sinaliza a necessidade de multiplicar os participes da tessitura do relato para compor um texto polifônico. A intertextualidade foi, também, característica marcante da cobertura da rede Globo – aspecto certamente comum à grande maioria das emissoras espalhadas pelo mundo, que construíram seus textos imbricados a outros textos televisivos. Nessa fase, a TV opera diversos movimentos na tentativa de enquadrar o 11 de setembro, dando voz a diversos sujeitos falantes que ora restituem o acontecimento, ora projetam seus conseqüentes, ora se perdem em sua singularidade, reafirmando-a. Começa-se, inclusive, a cogitar a autoria dos atentados, inicialmente, a partir de informações contraditórias: “a Frente Democrática para a Libertação da Palestina desmentiu, agora há pouco, negou que seja responsável pelo atentado”; “a NBC (...) disse que um movimento chamado Frente Democrática pela Liberação da Palestina teria sido

responsável”. Frente às suposições colocadas, o líder palestino Yasser Arafat prontamente

Figura 71

Yasser Arafat, abatido pela imagem.

Ana Paula Padrão, ao anunciar que a milícia Talibãn daria uma entrevista coletiva naquela manhã, antecipou o possível envolvimento do terrorista Osama bin Laden. Traçando um quadro explicativo, ainda que breve, sobre a situação política do Afeganistão e do terrorismo no mundo, ela ultrapassou a esfera descritiva e apontou, ainda que provisoriamente, mais um dos elementos que compõe a notícia jornalística (quem), o que num certo sentido, justificava sua participação na transmissão: “(...) Pouco se sabe sobre o terrorista Osama bin Laden, mas por certo ele é saudita, ele vem de uma família com posses, ele tem dinheiro e tem condições de financiar o terrorismo no mundo. E é acusado de ter promovido vários atos terroristas nos últimos anos, como, por exemplo, a explosão

daquelas duas embaixadas americanas na África”. Em outro momento, a apresentadora

disse que os ataques foram anunciados, revelando o lado previsível do acontecimento: “há cerca de três semanas o terrorista Osama bin Laden, que se esconde em alguma parte do Afeganistão hoje, avisou, numa entrevista a um jornalista árabe, que desencadearia ataques, nas próximas horas, nos próximos dias, enfim, ataques sem precedentes aos Estados Unidos, numa ação de retaliação ao apoio americano às causas israelenses”.

Nessa terceira fase da cobertura a informação desloca-se do centro para a periferia do acontecimento, ultrapassando as fronteiras geográficas e sua duração. A estórias paralelas vão preenchendo o tempo estendido e indeterminado da transmissão, que prosseguia em compasso de espera por novos ataques. Como observam Dayan e Katz (1990), a televisão “ao vivo” opera de forma mais aditiva do que subtrativa, adicionando extensões ao acontecimento, ao invés de retirar-lhe partes.

Desta forma o acontecimento parte de um centro vivo, expandindo-se em todas as direções, num interminável processo de fragmentação e clonagem [...] Ainda que o acontecimento em si possa ser descrito como genuíno, estará sempre necessariamente enquadrado por um persistente pano de fundo de ‘pseudo-acontecimentos’ (DAYAN e KATZ, 1999:104).

A entrada do repórter Heraldo Pereira, falando direto do Palácio da Alvorada sobre o posicionamento do governo brasileiro frente aos ataques, marca definitivamente o deslocamento do centro para a periferia do acontecimento. Com isso, o que se configurava até aqui como catástrofe, passa a adquirir contornos da informação (DOANE, 1990), cuja regularidade e previsibilidade das notícias preenchem o tempo, garantindo que alguma coisa aconteça, mesmo se nada estiver acontecendo.

Figura 72

O acontecimento transborda seu espaço. Primeira entrada

do repórter Heraldo Pereira, de Brasília.

Durante a entrada do repórter, a TV mostrou cenas editadas do presidente Fernando Henrique Cardoso vendo os atentados pela televisão: “O presidente acompanhou as repercussões deste episódios, desta série de atentados pela tevê. Durante esse

acompanhamento pela tevê, o presidente disse o seguinte: ‘Isto é uma guerra’. O

presidente se declara extremamente chocado com o que aconteceu nos Estados Unidos e

também preocupado”. A imagem mostrava um presidente sentado, sozinho, perplexo

diante da televisão. Suas palavras foram traduzidas pelo repórter, como se ele próprio não tivesse voz diante dos acontecimentos de 11 de setembro.

Figura 73 Fig ura 74

A rotina alterada. O presidente parado, na frente da televi são.

A correspondente Zileide Silva também viria a dividir a cobertura do evento direto de Nova York. Sua entrada, num primeiro momento em off, coincidiu com um dos replays

da cena do choque do segundo avião. O texto dela era absurdo diante daquilo que se via na tela: “É, exatamente, Nascimento, a Ana Paula disse agora há pouco que nós não temos a

imagem desse segundo avião que atingiu a segunda torre”.

Outra fonte oficial, o primeiro ministro britânico Tony Blair, deu seu depoimento, também repudiando os ataques e apoiando os Estados Unidos. Grande parte da sua fala fica sem a devida tradução no português e os caracteres inicialmente aparecem errados. Como observou Nascimento, “a Inglaterra, como era de se esperar, é o primeiro país a se manifestar, alinhando-se com os americanos nessa causa comum de combate ao terrorismo”.

Figura 75 Figura 76

Zileide Silva e Heloísa Vilela foram as primeiras correspondentes a dividir, em quadro, a mediação do evento, também direto do escritório de Nova York. Apesar da câmera constantemente derivar das jornalistas para a janela, focalizando a movimentação das pessoas em uma avenida de Nova York, a ênfase recai sobre o texto narrado que, de fato, acrescentava pouco, como se a multiplicação das vozes não conseguisse aumentar a compreensão do evento: “Nós continuamos aqui tentando novas informações também”; “E uma informação: nós temos uma equipe que já está na rua tentando conversar com as pessoas”; “Não, Nascimento, ninguém mais falou nada”; “São essas as imagens que nós temos aqui nas TVs americanas e realmente não temos novas informações sobre o que aconteceu”.

Figura 77 Figura 78

A imagem da Globo chega. Entrada da correspondente Os correspondentes ganham corpo. A figura Heloísa Villela, do escritório de Nova York. de Zileide Silva em foco.

Nesse terceiro momento da transmissão, os apresentadores ganham corpo. Suas figuras tornam-se freqüentes no quadro, fato não observado até então.

Figura 79

Os apresentadores no estúdio: o predomínio da informação

Quando os apresentadores aparecem no vídeo, Carlos Nascimento diz: “A partir desse momento você está acompanhando uma edição especial do Jornal Hoje. Nós estamos em contato com os nossos correspondentes em Nova York, falamos com eles ao vivo também por telefone, várias reportagens foram preparadas nessas últimas horas, que

nós vamos apresentar para vocês em seguida”. Entrevista em estúdio e em locação,

entradas coordenadas de repórteres, notas cobertas passam a compor a cobertura, aproximado-a definitivamente do estatuto da informação (DOANE, 1990). O inusitado anúncio do início do Jornal Hoje, dentro do que até aqui era o Plantão da Globo, corrobora com a idéia de que o caos impregnou aquele produto televisivo, relativizando até mesmo a tipicidade dos formatos jornalísticos da TV.

O correspondente Luis Fernando Silva Pinto também entra ao vivo, por telefone, de Washington com as informações sobre a situação no Pentágono. Em sua primeira fala observa-se um texto truncado: “Carlos, o o o provavelmente a primeira adição às figuras que a Ana Paula acabou de passar das mortes e dos feridos em Nova York, será a do Pentágono é é... o avião que se chocou com o Pentágono, ele destruiu um bom pedaço do

Pentágono.” A entrada de novas vozes na cena, em muitos momentos foi precedida da

incerteza da própria entrada: “será que conseguimos contato com ele, Nascimento?”; “Ednéi, está me ouvindo agora?”; “Nós estamos aguardando aí o contato”.

A Globo ia trazendo mais e mais vozes para emoldurar o evento. Uma delas foi a professora da USP Maria Aparecida de Aquino, especialista em relações internacionais, que concedeu uma entrevista ao vivo no estúdio. Mais uma vez, a desordem da instância produtora fica evidenciada nas mudanças do cenário de fundo da entrevistada. Na sua primeira intervenção, o fundo era o grafismo padrão das entrevistas do jornal Hoje, a letra

H estilizada em três dimensões, uma imagem moderna, com cores vivas. Logo após, a Globo modifica o fundo e introduz uma imagem do dia, um escuro e sombrio plano geral de Nova York. Sem conseguir um fundo condizente com o acontecimento, a emissora retira todas imagens e, da sua terceira resposta em diante, mantém o fundo azul, próprio para a inserção de imagens através do recurso kromakey.

Figura 80

Fundo com a letra H estilizada do Jornal Hoje.

Figura 81

Fundo com imagem de Nova York daquele dia.

Figura 82

Fundo azul, a inviabilidade da imagem.

A fala da especialista difere-se radicalmente das demais. Ao retirar o evento do local onde ele havia sido predominantemente localizado até então, efeito sem causa, ela traça as possíveis motivações que o justificam, estabelecendo antecedentes, dando-lhe um quadro minimamente explicativo e apontado mais um elemento da notícia, o porquê: “eu entendo que o está acontecendo agora é uma coisa que vem sendo gestada ao longo do tempo”; “ele tem um fator gerador, ou vários fatores geradores, quer dizer, ele tem motivação. Mas no momento em que ele se executa, ele se executa às cegas”; “a

globalização é um fenômeno que quer comparar e jogar na mesma sacola desiguais e pode ser traduzida num empobrecimento cada vez maior dos mais pobres e num enriquecimento dos mais ricos. Então, se você adicionar este componente ao componente político, que nós acabamos de discutir, você tem um caldeirão que pode explicar um fenômeno como esse”.

A pesquisadora, ao contrário dos jornalistas, deixa de lado a comoção, o choque provocado pela tragédia, para fazer uma leitura diferenciada do 11 de setembro: “é um privilégio estarmos comentando, é um dia que não vai se esquecer”; “não há sistema de segurança infalível... é o país mais seguro do mundo que foi atacado, e de uma forma muito bem sucedida, do ponto de vista de quem dirigiu esses ataques”; “de certa forma, é como se todo o sonho o... o pesadelo norte-americano das últimas décadas viesse a se configurar com clareza”.

A correspondente Zileide Silva, além de suas entradas ao vivo direto do escritório, enviou uma matéria gravada nas ruas de Nova York, entrevistando norte-americanos, o que marcou a entrada de várias testemunhas do evento: “‘É horrível, eu não poderia imaginar que isso poderia acontecer, que somos tão vulneráveis nessa cidade’. Ele achou que estava tendo um sonho quando viu a segunda coisa caindo, e disse: ‘Parecia uma coisa de cinema’. Ela ainda chora quando lembra das imagens que viu, quando lembra das pessoas que morreram, do som de Nova York, a sirene dos carros de polícia, das ambulâncias”.

Figura 83

Testemunha estrangeira não-identificada em matéria gravada por Zileide Silva.

Uma única testemunha brasileira participou dessa fase da transmissão, fornecendo um depoimento, em quadro, ao repórter Edney Silvestre. O rosto da fonte em primeiro plano deixava ver a nuvem de fumaça sobre a cidade. Sua fala, gravada e editada, mostrava

o horror de quem estava próximo às Torres: “Eu comecei a também ficar muito nervoso, porque começou a vir muita fumaça e a gente não sabia se subia, se pegava o elevador, se

descia, e os bombeiros: ‘Calma, calma!’ Olha, foi terrível”.

Figura 84

Testemunha brasileira não-identificada em entrevista gravada concedida ao repórter Edney Silvestre.

A cobertura seguiu inserindo mais e mais vozes, na tentativa de ampliar a compreensão do acontecimento, seus possíveis desdobramentos e preencher sua duração estendida, a espera por novos ataques: o ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer foi entrevistado pela repórter Graziela Azevedo; Alan Severiano, leu uma nota na porta do Consulado dos Estados Unidos; a repórter Priscila Brandão acompanhou a movimentação e o cancelamento de vôos no aeroporto internacional; Marco Antônio Sabino trouxe informações sobre o fechamento do pregão na Bovespa.

Figura 85 Figura 86

Figura 87 Figura 88

As relações exteriores na voz do ministro. Alan Severiano repercute o acontecimento na embaixada norte-americana em São Paulo.

Figura 89 Figura 90

O repórter Marco Antônio Sabino e a Bovespa A repórter Priscila Brandão do aeroporto de Guarulhos, fechada, é o acontecimento interferindo na rotina. alterações também no ar.

Se por um lado a TV convocou diversas vozes para enquadrar o acontecimento, uma forma aparente de reduzir sua indeterminação, por outro continuou a ampliar o clima de insegurança e o medo de novos ataques. Na entrevista com o ministro Celso Lafer, a repórter Prisicila Brandão antecipa a possibilidade de guerra: “Vários jornalistas aqui

perguntaram da possibilidade de uma guerra. O senhor acredita nisso?”. A resposta,

comedida, localizava o 11 de setembro como um episódio decisivo, que causaria mudanças no contexto das relações internacionais, mas não pressupunha os desdobramentos que poderiam vir a ocorrer: “ela gera riscos, riscos imprevisíveis. Seria precipitado da minha parte fazer uma avaliação sobre o que vai acontecer, mas eu não quero subestimar a gravidade da situação”; “Este evento é mais sério do que qualquer outro nos últimos tempos e ele tem um alcance maior do que foi o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim”.

O clima de medo e de insegurança começa a perpassar o relato de forma significativa, muitas vezes através de elementos textuais que subentendiam a retaliação dos Estados Unidos sob a forma da guerra: “qual será a orientação transmitida aos soldados americanos”; “Bush, ao contrário, defende o Projeto de Defesa Anti-mísseis”; “convencer o Congresso a autorizá-lo a gastar os bilhões de dólares que ele quer gastar com esse Projeto de Defesa Anti-mísseis”; “haverá revide, haverá retaliação por parte das Forças Armadas americanas”; “preocupação diante do rumo que esses acontecimentos podem tomar daqui para frente, uma vez que o estrago foi grande”; “é do

feitio americano, por tudo o que se viu até hoje, não deixar nada sem resposta”. Mais uma

vez, a professora Maria Aparecida de Aquino aparecia como uma voz dissonante. Ao afirmar a imprevisibilidade do evento, ela re-afirmou a imprevisibilidade de suas conseqüências – “o mais terrível dela é que como ela foi imprevisível na sua chegada, ela

é imprevisível, hoje, aonde ela vai nos levar” – sem apontar para uma retaliação inevitável,

como fizeram os jornalistas: “quer dizer, ela pode nos levar à explosão de uma guerra, ela pode levar a um acirramentos das relações internacionais, ela pode levar até a um

entendimento das nações”.

A cobertura seguia em compasso de espera pela catástrofe, evidenciada não só no texto verbal, mas através do tom de voz grave, pausado, quase fúnebre: “Nascimento, eu temo pelo que possa acontecer no mundo nas próximas horas. Essa é uma tragédia de proporções que ainda não se pode mensurar é... e a reação americana, que certamente virá, pode provocar outras reações mundiais. Eu temo pela tragédia que possa acontecer no mundo nas próximas horas”; “vamos torcer para que seja isso que aconteça e que esse movimento não se alastre pelo mundo e a gente não tenha uma série de tragédias

acontecendo nas próximas horas”. Carlos Nascimento extrapolava em suas considerações,

imprimindo uma dimensão ainda maior para a série de ataques da manhã do dia 11:

“Lembrando que todos os países que detém algum poder de liderança no planeta deverão, a partir de agora, fazer alguma coisa, para que se restabeleçam as condições normais de

segurança e de habitabilidade nos países”.

Afirmando e re-afirmando que o acontecimento ainda estava em processo, e divulgando informações precipitadas e incorretas, era imperativo continuar a ver televisão:

acabou, essa história ainda não acabou, ainda há informações de aviões seqüestrados”; “a onda de atentados terroristas não teria terminado”; “um outro avião seqüestrado estaria nesse momento voando em direção à Nova York, ou algum outro destino,

pressupondo que haveria ainda um outro atentado terrorista”. Como observa Gouveia

(2003), o gesto máximo de heroísmo naquela manhã era conseguir desligar a televisão. Nas tensões que o fato provocou, trazendo à superfície um mundo de sentido e um mundo aparentemente fora de sentido, Carlos Nascimento seguia circular, convocando os fatos históricos e a ficção cinematográfica, uma forma possível para subsumir o 11 de setembro: “Jamais alguém poderia... por mais exagerado que fosse um autor de obras de

ficção”; “nem em todos os filmes que foram feitos até agora explorando as possibilidades

de um ataque ao coração do poder americano, nenhum desses filmes chegou a retratar um

estrago de tamanha grandeza”; “isso se compra, seguramente, para os americanos, em

termos de comoção nacional, de estupefação coletiva, ao desembargue, ao ataque aéreo japonês em Pearl Harbor, em 1941 (...) Ou a morte, o assassinado do presidente John Kennedy, em 1963. (...) nem durante a Segunda Guerra os americanos imaginavam que o inimigo pudesse chegar tão perto. Nem quando se faziam as negociações para o desarmamento internacional, com a redução de mísseis intercontinentais, na época da União Soviética, na crise da Baía dos Porcos, em Cuba, em 1960”; “depois da Guerra Fria nós não imaginávamos que coisas desse tipo pudessem vir a acontecer de novo”.