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Capítulo 2 - O acontecimento catastrófico

2.1 A ordem da informação na TV

Na noite de 30 de outubro de 1938, Orson Welles simulou pela rádio CBS uma invasão de marcianos à terra. A guerra dos mundos levou pânico a milhares de lares norte-americanos, sobretudo aos moradores das cidades próximas à Grover’s Mill, em Nova Jersey, onde a peça fora ambientada. Calcula-se que seis milhões de pessoas ouviram o programa e, destes, 1,2 milhões pensaram que a dramatização fosse verdadeira. Grande parte da audiência ligou o rádio com o programa em andamento, perdendo o início da transmissão, momento em que Welles anunciara o especial de halloween.

O medo paralisou três cidades. [...] Houve fuga em massa e reações desesperadas de moradores de Newark e Nova York (além de Nova Jersey), que sofreram a invasão virtual dos marcianos da história. Pessoas correram atordoadas pelas ruas, as linhas telefônicas ficaram congestionadas, a audiência aumentou (ORTRIWANO, 1999).

O estrago de Aguerra dos mundos foi momentâneo, durou cerca de uma hora. Ao final do programa, o alívio veio quando Orson Welles anunciou, mais uma vez, que se tratava de uma peça, literalmente, justificada pela véspera do dia das bruxas.

Se o programa de Welles fosse veiculado nos dias de hoje, provavelmente, surtiria pouco ou nenhum efeito. Com a diversidade e a penetração dos meios de comunicação na vida cotidiana, qualquer pessoa que ouvisse a transmissão pelo rádio, certamente buscaria um meio imagético para confirmar a improvável chegada dos marcianos e ver, com os

próprios olhos, o que era difícil de acreditar através do suporte sonoro apenas. Faltava-lhe a prova material, proporcionada pelas imagens em movimento.

O efeito devastador de A guerra dos mundos pode ser atribuído, sobretudo, à utilização magistral do discurso jornalístico como suporte para a farsa. Welles soube orquestrar todos os recursos que o jornalismo dispunha na época para a construção de seu relato: convocação de especialistas, testemunhas e fontes; entradas externas, via telefone, de repórteres situados no palco dos acontecimentos; possibilidade de interrupção do fluxo da programação radiofônica, o que já significava um índice de urgência; um tom de voz “adequado” ao fato; falhas nas ligações telefônicas e interrupções na própria transmissão; silêncios prolongados. Elementos que, ainda hoje, persistem e podem ser observados nas transmissões diretas de acontecimentos considerados catastróficos, como será exemplificado adiante.

Em 11 de setembro de 2001, inversamente, apesar de possuir a prova que as imagens televisivas proporcionam, sobretudo quando chanceladas pelo gênero jornalístico, as pessoas não acreditavam no que viam. A imagem parecia ser insuficiente para asseverar o acontecimento, mesmo estando presente em quase todas as emissoras de televisão, no rádio e na internet. As insólitas cenas dos atentados terroristas ao World Trade Center, veiculadas em tempo presente, assemelhavam-se mais a uma peça, semelhante à que Orson Welles pregara com êxito há setenta anos.

Ninguém poderia imaginar tal acontecimento. Nem os produtores do cinema hollywoodiano, tão acostumados à pirotecnia e aos efeitos especiais. Aliás, boa parte do que já foi exaustivamente dito ou escrito sobre os ataques, relaciona-os, justamente, a um filme de ficção, dos mais improváveis.

Não por acaso o comentário mais comum aos atentados se referia justamente às imagens, de Hollywood. “Parecia um filme”, dizia-se, como se a melhor maneira de apreender o caráter monstruoso da realidade passasse pela experiência que a ficção cinematográfica propiciou (SENRA, 2001:15).

Provavelmente, nenhum produtor toparia filmar um roteiro tão inverossímil. E ai reside a maestria dos atentados, perfeitos do ponto de vista de suas concepção e consecução. Os terroristas conseguiram inaugurar um signo, num mundo saturado de

cópias. Não se está, apesar destas afirmações, desconsiderando a face aniquiladora e monstruosa do evento, além de suas implicações.

A lógica do terrorismo é justamente o choque, uma violência aparentemente sem causa, condenável sob diversas perspectivas. Baudrillard (2003) observa que o terrorismo é uma atividade política que se recusa a ser representada politicamente, através dos partidos políticos, por exemplo, ao invés disso, apresenta-se através de choques violentos veiculados pelos media. Para o autor, os motivos freqüentemente atribuídos à ação terrorista – religião, martírio, vingança etc. – não correspondem ao seu real significado: a inconversibilidade da morte e a impossibilidade de lhe oferecer um valor de troca.

No ato terrorista, o sistema é desafiado pelo simbolismo da morte, um antagonismo radical na globalização, uma força que não se reduz à ordem e que realiza a desconstrução violenta da hegemonia do sistema. “[...] o terrorismo, no fundo, não tem sentido e não se pode medi-lo pelas suas conseqüências ‘reais’, políticas e históricas. Paradoxalmente, por não ter sentido, é que provoca acontecimento num mundo cada vez mais saturado de sentido e eficácia” (BAUDRILLARD, 2003:30).

De acordo com o autor, os atentados provocaram um antagonismo radical, uma força irredutível dentro do sistema cuja potência é a realização da eficiência e da hegemonia. O ato é a desconstrução violenta dessa potência ou do significante que ele encarna.

As Torres, na concepção de Baudrillard (2203) eram a encarnação perfeita do sistema, o grafismo arquitetônico representando não um sistema de concorrência, mas de monopólio, razão pela qual foram escolhidas para iniciar a seqüência dos ataques do dia 11. Sua inauguração em 1973 mudou a arquitetura de Nova York. Até então, outros edifícios participavam da competição vertical da cidade. Após a construção do World

Trade Center, o obelisco e a pirâmide cederam lugar ao cartão perfurado e ao grafismo

estatístico, símbolos do digital, da informática, do financeiro e do contábil. A encarnação perfeita do monopólio está no fato de as Torres serem gêmeas, implicando na perda de referência do original, e por representarem um ponto final na verticalização da cidade. A violência do global passa pela arquitetura. A destruição dessa arquitetura é uma forma de contestar essa violência,

Ao atacá-las, os terroristas atingiram, portanto, o centro nevrálgico do sistema. [...] Como se a potência que dava sustentação às torres tivesse bruscamente perdido toda a capacidade de absorver impactos. Como se essa potência arrogante cedesse bruscamente sob o efeito de um esforço demasiado, o de querer ser o único modelo do mundo (BAUDRILLARD, 2003:14,15).

O cinema retratou o World Trade Center em incontáveis produções, um cartão-postal filmado e re-filmado sob diversos ângulos, uma imagem colada ao imaginário contemporâneo. O grande plano geral, situando o espectador geograficamente na narrativa, parecia sempre igual, variações sobre o mesmo tema. As Torres eram a representação perfeita do poder norte-americano, denotando sentidos de modernidade, sucesso, riqueza, progresso, eficiência etc.

Apesar de objeto concreto, o visado na destruição foi o objeto simbólico. O desaparecimento das torres, no entanto, seu fim no espaço material, de acordo com Baudrillard (2003), fez com que elas entrassem definitivamente no espaço imaginário, mudando a arquitetura real e simbólica do século que se iniciara.

Sua destruição deslocou seus significados, mudando o mapa simbólico que cada um carrega. O cartão-postal não remete mais apenas ao poder norte-americano, mas à sua destruição mesma, ao próprio ato terrorista. Parece ter cessado ali, desmoronado junto com as torres, a crença na regularidade e na previsibilidade dos acontecimentos. Fracassou o esforço, a obsessão ocidental de organizar, domar e adestrar o mundo. Como observa Ribeiro (2003), “o imprevisto põe em xeque nossa própria percepção de mundo, constituída ao longo dos tempos para esconjurar o caos e constituir-se como ordem” (RIBEIRO, 2003:21).

O discurso da informação na TV, território onde se situa a pesquisa, obedece às mesmas lógicas da racionalidade que sustentam o mundo moderno. O fazer jornalístico na TV parece estar regido por leis universais. Ao ligar a TV, o telespectador tem a incomoda sensação de dèja vu. Sobretudo o discurso jornalístico, e os telejornais em particular, valem-se de formatos consagrados, de estruturas e fórmulas repetidas que sofrem pequenas variações ao longo do tempo. As inovações, quando ocorrem, são sutis ou pontuais, raramente operam uma ruptura radical no modelo. Segundo Morin, citado por França (2006), só se pode pensar a inovação na TV a partir de um movimento dialético que mantém com as forças de padronização.

Parece que os jornalistas de televisão aprenderam a técnica a partir de uma única gramática, em que não há lugar para a experimentação de novas linguagens e formatos. Os manuais de redação (PATERNOSTRO,1987; MACIEL,1993; SQUIRRA,1989; YORKE,1990; BARBERO e LIMA,2003; BISTANE e BACELLAR,2005), verdadeiros receituários dessa gramática, fundamentam-se, sobretudo, na experiência profissional de seus autores, que ditam o que se deve e o que não se deve fazer, sem problematizar suas práticas.

A roupa, a voz, a postura dos profissionais, a construção do texto e sua relação com a imagem, tudo segue determinados preceitos que se multiplicam ao longo do tempo, quase que automaticamente. Seguindo as lógicas televisivas de “tendência à repetição, uso de clichês e fórmulas consagradas” (FRANÇA, 2006:35), os telejornais se constroem, ao longo dos anos, sem alterar radicalmente os formatos consagrados.

Uma série de estratégias narrativas universais, não exclusivas do telejornalismo, mas comuns ao discurso jornalístico como um todo – narração em terceira pessoa, postura distanciada de repórteres, utilização de um texto objetivo, depoimentos de fontes ou testemunhas dos eventos – são recorrentes na construção diária da notícia.

Os formatos tradicionais do jornalismo televisivo (notas, notas cobertas, entrevistas, reportagens etc.) valem-se de semelhantes códigos imagéticos, sonoros e verbais. Transformar um fato em notícia televisiva significa, quase sempre, gravar um texto em off, uma passagem (momento em que o repórter aparece no quadro), uma ou duas sonoras (trechos dos depoimentos das fontes), tudo precedido por uma cabeça (quando o apresentador, em primeiro plano, anuncia a notícia no estúdio).

O telejornal se constrói da mesma maneira, se endereça de forma semelhante ao telespectador, fala sempre no mesmo tom de voz e utiliza o mesmo repertório de imagens sob qualquer regime político, sob qualquer modelo de tutela institucional (privado ou público), sob qualquer patamar de progresso cultural ou econômico (MACHADO, 2001:104).

Na notícia televisiva, texto e imagem são cuidadosamente amarrados para minimizar as possibilidades que os sujeitos têm de negociar e modificar os sentidos pretendidos. As imagens aparecem coladas a um texto que direciona o processo de

significação – um texto simples, direto, objetivo, preciso e de fácil compreensão – para que uma audiência heterogênea compreenda instantaneamente o sentido.

As célebres perguntas do jornalismo (o quê, quem, como, quando, onde e porquê) representam o paradigma máximo dessa leitura rígida da realidade, ao postular que a notícia deve enquadrar no primeiro parágrafo do texto, o lead, o acontecimento a partir desse roteiro. Como se todos os acontecimentos factuais fossem a-problematicamente enquadráveis nessa fórmula, ou ela fosse a única, a melhor maneira de apreender a realidade.

O que torna um fenômeno digno de se tornar notícia, acontecimento pertinente do ponto de vista jornalístico? O acontecimento é conceituado por Rodrigues (1993) como algo que “irrompe na superfície lisa da história”, entre tantos outros fatos aleatórios. Quanto maior a imprevisibilidade de um fato, mais chances ele tem de se tornar um acontecimento pertinente do ponto de vista jornalístico. “O acontecimento jornalístico irrompe sem nexo aparente nem causa conhecida e é, por isso, notável, digno de ser registrado na memória” (RODRIGUES, 1993:28).

Portanto, o acontecimento representa uma ruptura na ordem aparente do mundo, mas nem todos os acontecimentos chegam a ser notícia. Além dos critérios próprios do fazer jornalístico e de suas rotinas de produção, das linhas editoriais dos veículos tomados em sua singularidade, dos desejos e vicissitudes dos sujeitos que selecionam as notícias, existem outros, considerados universais, para a ascensão do acontecimento ao estatuto de notícia, os critérios de noticiabilidade ou valores notícia.

Charaudeau (2006) diz que o acontecimento é selecionado em função do seu potencial de atualidade, socialidade e imprevisibilidade. A atualidade diz respeito ao tempo, à distância que separa os momentos de sua aparição e de sua configuração em notícia. A socialidade é o potencial que um acontecimento tem de representar a vida da comunidade, já que o cidadão não pode desconhecer o que o afeta no universo em que está implicado. E a imprevisibilidade relaciona-se à perturbação de uma ordem estabelecida, das expectativas do público, “o que levará a instância mediática a por em evidência o insólito ou o particularmente notável” (CHARAUDEAU, 2006:102).

Rodrigues (1993) aponta três critérios principais para a seleção dos fenômenos que chegam ao estatuto de notícia: o excesso, a falha e a inversão. O excesso tem a ver com o cúmulo, com as grandes proporções, com um “funcionamento anormal da norma”, individual ou coletiva. Ele pode ser celebrado (a quebra de um recorde numa competição esportiva) ou condenado (um massacre em um presídio). A falha diz respeito a um defeito, a uma deficiência imprevisível e temporária que pode culminar na morte.

Os acidentes pertencem habitualmente a este registro, os acidentes cósmicos, naturais, dos cataclismos, das inundações, dos terramotos, mas também os acidentes da circulação automóvel que param o fluxo normal do trânsito, os acidentes no funcionamento normal do organismo humana (sic), sobretudo se intervêm no corpo jovem e saudável, os acidentes das centrais nucleares com sistemas de segurança máxima considerados infalíveis, os acidentes espectaculares dos foguetões interplanetários (RODRIGUES, 1993:28).

A inversão relaciona-se à ironia do destino, é o inusitado que fratura a normalidade.

A expressão usual do jargão jornalístico “quando um cachorro morde um homem não é notícia, quando um homem morde um cachorro é notícia”, mostra como a inversão apresenta forte potencial para integrar o discurso do jornalismo.

Rodrigues afirma que “o discurso do acontecimento é uma anti-história, o relato das marcas de dissolução da identidade das coisas, dos corpos, do devir” (RODRIGUES, 1993:29). A morte e o nascimento seriam os pontos limites em relação a todas as outras ocorrências, por não terem uma explicação causal possível.

O acontecimento jornalístico distingue-se “do número indeterminado dos acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pelas leis das probabilidades, sendo inversamente proporcional à probabilidade de sua ocorrência”, portanto, é acontecimento passível de se tornar notícia os eventos imprevisíveis, que irrompem “acidentalmente a superfície epidérmica dos corpos como reflexo inesperado, como efeito sem causa, como puro atributo” (RODRIGUES, 1993:27,29). A notícia seria, na concepção do autor, o negativo da racionalidade, já que o racional é da ordem do previsível, regido pelas leis de causa e efeito.

Na antiguidade era função dos campos da premonição e da adivinhação exorcizar o caráter aleatório e demoníaco de certos acontecimentos, uma prevenção frente à irracionalidade. Atualmente, essa função é reservada ao jornalismo. “O discurso jornalístico inscreve-se inequivocadamente neste processo de enquadramento e regulação” (RODRIGUES, 1993:29). Silverstone, citado por Dutra (2006), diz que os indivíduos procuram informação para ordenar o cotidiano, evitar o pânico do não-controle. Todo o esforço do jornalismo é para se constituir como um discurso de ordem, categorizando e hierarquizando os fenômenos dispersos e desordenados do mundo.

No processo de ordenamento e construção do sentido, Charaudeau (2006) diz que o acontecimento é deslocado do mundo fenomenal para integrar o mundo significado. O autor utiliza as idéias de Morin (1972), para distinguir dois tipos de fenômenos:

autogerados e heterogerados.

Os fenômenos autogerados são aqueles previsíveis, que se enquadram na ordem cíclica das coisas. A estabilidade e a existência de uma lógica interna fazem com que certos fenômenos aconteçam periodicamente, como a mudança das estações, a aparição de um ciclone etc. Os fenômenos heterogerados são aqueles produzidos acidentalmente, da ordem do inesperado, da coincidência ou do acaso. Ocorrem devido ao encontro de elementos pertencentes a sistemas diferentes, pelo aparecimento de um elemento externo (de outro sistema) que perturbe o sistema em questão como, por exemplo, a destruição provocada pelo ciclone num vilarejo. Portanto, o acontecimento pertence ora à esfera da ordem (autogerados), ora à da desordem (heterogerados).

Segundo Charaudeau, o processo de percepção-captura-sistematização-estruturação depende do sujeito da linguagem que, ao falar, confere sentido aos fenômenos. Esse sujeito é sempre duplo, se desdobra num eu e num tu na relação intersubjetiva da construção de significado, num processo que depende do olhar de quem apreende o acontecimento bruto e o torna significante e do olhar do sujeito interpretante, que apreende o acontecimento significado.

O discurso da informação, terreno onde se situa nossa problemática, não é transparente ao mundo. A linguagem, mesmo a linguagem da imagem, que pode parecer mais apta a refletir o mundo analogicamente, é necessariamente opaca, constrói uma visão,

um sentido de mundo. O acontecimento nunca chega ao receptor em seu estado bruto, é sempre resultado da percepção e da interpretação das instâncias mediáticas, dependendo “do olhar que se estende sobre ele, olhar de um sujeito que o integra em um sistema de pensamento e, assim fazendo, o torna inteligível” (CHARAUDEAU, 2006:95).

A notícia não emerge dos acontecimentos do mundo, mas existe necessariamente na conjunção de acontecimento e texto, “enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento” (TRAQUINA, 1993:168). Ou como apontam Dayan e Katz, “os jornalistas não estão simplesmente a transmitir um acontecimento ou a comentá-lo: estão a dar-lhe existência” (DAYAN e KATZ, 1999:94).

Na construção do sentido, Charaudeau (2006) diz que o sujeito da linguagem se encontra num duplo processo: através da experiência direta (não conceitualizada) percebe o que os fenômenos têm de estruturável e, a partir daí, estrutura o mundo, comentando-o através da linguagem.

Mas num e noutro caso, o trabalho depende da capacidade de o sujeito em integrar suas percepções num sistema de experiência ou de pensamento que preexistem ao surgimento do fenômeno, o que exige três tipos de aptidão: de reconhecimento do sistema de pensamento e das referências organizacionais que devem permitir perceber e interpretar os acontecimentos internos ao sistema; de

percepção de um elemento novo, perturbador, o qual surge fora do sistema (o inesperado, o aleatório) que deve permitir depreender os acontecimentos externos, acidentais; de reintegração do acontecimento acidental a um dos sistemas de pensamento preexistentes que deve permitir modificar tais sistemas e assegurar, assim, sua evolução (CHARAUDEAU, 2006:99).

Queré (1995), citado por Marques e Reis (2007), diz que o percurso interpretativo do acontecimento possui três momentos distintos e interligados: a descrição para o acontecimento (um enunciado ou nome); a construção de um enredo ou narrativa que dê conta de ordenar os atos do acontecimento; e a normalização, a redução da indeterminação do acontecimento, “tornando manifesto seu caráter típico, possibilitando comparações com outros acontecimentos da mesma ordem, dotando-lhe de um passado e um futuro, associando-o a uma ordenação causal” (MARQUES e REIS, 2007).

Portanto, no processo de apreensão do acontecimento é preciso que ele se torne inteligível, nomeado, situado em determinado tempo e espaço, através de uma estrutura narrativa. Marques e Reis (2007) dizem que tal processo se dá a partir dos esquemas

correntes de percepção, esquematização e conceitualização, que possibilitam à instância mediática, enquadrá-lo.

A noção de enquadramento ajuda a compreender as tensões que marcaram o processo de construção de sentido na cobertura televisiva do 11 de setembro. Um dos possíveis entendimentos de enquadramento diz respeito ao olhar cinematográfico, em que o realizador focaliza determinada cena, recortando um quadro da realidade. Mouillaud (2002), tomando emprestada a noção do cinema, propõe que a notícia é construída a partir de movimento semelhante. Trata-se de dar sentido ao evento, impor-lhe uma ordem. Os acontecimentos quando ganham uma forma, um quadro ou frame, tornam-se reconhecíveis. O enquadramento envolve determinados padrões, portanto, não é livre, depende das experiências e percepções utilizadas pelos jornalistas na construção de seus relatos.

A dificuldade de dar sentido ao 11 de setembro, de enquadrar o acontecimento inédito no tempo presente, nomeando-o, descrevendo-o, ordenando-o e normalizando-o foi observada durante toda a transmissão direta dos atentados, conforme será demonstrado no capítulo seguinte. As tensões que marcaram o processo de construção de sentido ficam visíveis na apreensão do fenômeno, como um atrito que aumenta a resistência no fechamento do círculo semiótico.

Um dos onze curtas que compõem o filme 11'09''0117, produzido pelo francês Alain Brigand, mostra como o evento parece escapar do processo de construção de sentido. O curta assinado pelo diretor mexicano Alejandro Gonzáles Iñarritu deixa a platéia no escuro. Ouve-se, em alguns momentos, apenas o áudio das notícias e trechos dos telefonemas das vítimas aos seus parentes. A maior parte do tempo a tela não tem imagens, exceto quando rapidamente mostra cenas de corpos caindo do edifício, como uma faísca. A ausência de imagens denota a inviabilidade de representar aquele momento. O filme talvez lembre os movimentos feitos durante um sonho ruim, o olho pisca, o corpo mexe, o incomodo se instala. É como se o cineasta tivesse que filmar, registrar na película, algo que resistiu à