• Nenhum resultado encontrado

6.1 O entre guerras: catástrofe, revolução e crise

6.1.1 A catástrofe

O início do século XX tem como grande marco a Primeira Guerra Mundial. Diferente de qualquer outro momento da história da humanidade, inaugura-se um período de guerras mundiais, guerras totais, envolvendo todas as grandes potências do mundo. Sua escala de massacre e destruição foi numa dimensão nunca antes pensada, constituindo-se como uma guerra de massas (HOBSBAWM, 2004, p.51).

Em números, a primeira ofensiva alemã sobre Verdun em 1916 custou a vida de 1 milhão de homens. A Grã-Bretanha, em sua contra-ofensiva, perdeu no primeiro dia de batalha 60 mil homens, totalizando no final 420 mil baixas. Já a França, ao lado dos ingleses na Frente Ocidental22, perdeu mais de 20% dos homens em idade militar, excetuando aqueles

que ficaram paraplégicos e deformados após as batalhas, os chamados “gueules cassés” (HOBSBAWM, 2004, p.33). Por sua magnitude, não há como tal massacre não ter se tornado um trauma na memória destes povos.

Entretanto, Hobsbawm (2004) questiona precisamente o porquê de tamanha brutalidade desta guerra; quais os motivos de ter se tornado uma guerra total, de extinção

22 Não cabe a este estudo a descrição dos fatos históricos que constituíram o período em questão, senão pelos

total, uma luta de morte? A resposta estaria na principal característica da fusão entre política e economia desde o século XIX: não ter limites. O expansionismo impulsionado pelo crescimento e competição econômica entre as grandes potências levou a uma intensa rivalidade política que ia para além das fronteiras nacionais. Imperialismo, expansionismo e nacionalismo tornaram-se frentes de embate político que contagiaram até a opinião pública23

da época:

Em 1914, certamente não era a ideologia que dividia os beligerantes, exceto no fato de que nos dois a guerra tinha de ser travada mediante a mobilização da opinião pública, isto é, alegando algum profundo desafio a valores nacionais aceitos, como o barbarismo russo contra a cultura alemã; a democracia francesa e britânica contra o absolutismo alemão, ou coisas assim (HOBSBAWM, 2004, p.37).

Esta mobilização da opinião pública encontrava-se fortemente vinculada ao movimento imperialista já desde o início do século, tendo como exemplo o lema alemão datado de 1900 que dizia: “O espírito alemão regenerará o mundo” (HOBSBAWM, 2004, p.38).

A seqüela desta luta de morte entre potências expansionistas, que não visavam qualquer acordo de paz até a devastação total do inimigo, ou até a chamada “vitória total”, foi a ruína de ambos os lados: vitoriosos e vencidos. Tal condição, “empurrou os derrotados para a revolução e os vencedores para a bancarrota e a exaustão física” (HOBSBAWM, 2004). A Europa tal como era antes de 1914 – liberal, burguesa e estável – não tinha qualquer condição de retorno.

Com o fim da guerra, era consenso entre as potências vitoriosas a necessidade de se estabelecer acordos de paz, para que o trauma de uma nova grande guerra não se repetisse. O chamado Tratado de Versalhes – que fazia parte de um conjunto de outros tratados – foi elaborado nesse sentido, estipulando medidas políticas que, resumidamente, contivessem o avanço revolucionário bolchevista pelos países do Leste Europeu, controlassem a Alemanha e seu poder bélico, econômico e expansionista, além da reordenação do mapa dos países colapsados, tanto no sentido de conter a influência alemã, quanto para estimular movimentos nacionalistas não-bolchevistas.

Quanto a esta última medida, a reordenação dos países sob a ideologia da autodeterminação em “Estados-nação étnico-linguísticos” foi um completo desastre,

23 O tema da opinião pública, sobretudo por sua vinculação ao tema das massas, foi objeto de estudo tanto da

Sociologia quanto da Psicologia Social do início do século, encontrando-se um capítulo sobre este tema no manual de Raul Briquet.

sobretudo por ter sido realizada por países distantes das realidades étnicas e lingüísticas24

daqueles povos, o que resulta em conseqüências até a atualidade:

Os conflitos nacionais que despedaçam o continente na década de 1990 são as galinhas velhas do Tratado de Versalhes voltando mais uma vez para o choco. O remapeamento do Oriente Médio se deu ao longo de linhas imperialistas – divisão entre Grã-Bretanha e França – com exceção da Palestina, onde o governo britânico, ansioso por apoio internacional judeu durante a guerra, tinha, de maneira incauta e ambígua, prometido estabelecer “um lar nacional” para os judeus. Essa seria outra relíquia problemática e não esquecida da Primeira Guerra Mundial (HOBSBAWM, 2004, p. 39).

Já em relação às sanções à Alemanha, a chamada “paz punitiva” imposta ao país derrotado se deu, principalmente, no âmbito militar e político, mantendo-o enfraquecido e isolado. A justificativa deste acordo foi a culpabilização daquele país como o principal responsável pela guerra. Do lado dos vencedores, a criação da Liga das Nações foi mais uma alternativa na busca de se impedir outra guerra, partindo da premissa que negociações públicas seriam soluções democráticas para se evitar a perda de controle dos embates entre nações. Entretanto, a recusa dos Estados Unidos – grande potência econômica da época – a aderir à Liga das Nações logo tirou a credibilidade desta, assim como o do Tratado de Versalhes que, na década de 30, já não tinha efeito algum sobre a Alemanha. Isto revelava que a política mundial eurocentrada e eurodeterminada, baseada em acordos encabeçados entre Grã-Bretanha e França, perdera progressivamente sua existência (HOBSBAWM, 2004, p.42).

Se as duas guerras mundiais tiveram como resultado a vitória econômica dos Estados Unidos, tornando-se potência global, não há como negar que, apesar da destruição física e econômica dos países restantes, sua produção teve considerável avanço técnico e científico. Por terem se caracterizado como guerras totais, ambas as guerras constituíram-se enquanto “guerras de massas” e que exigiam produção em massa.

Na primeira grande guerra, via-se a batalha entre nações com base na tecnologia, sobretudo no uso de submarinos em batalhas navais. A economia dos países beligerantes voltou-se totalmente para a produção industrial bélica, assim como grande parte da população não combatente, exigida como mão-de-obra da alta produção em massa. Esta enorme mobilização gerou seus efeitos:

24Esta política “de cima para baixo” no destino de diferentes etnias gerou na época uma onda de refugiados

migrantes pelo mundo que fugiam dos conflitos bélicos de seus países. A conseqüência da entrada maciça de estrangeiros nos países europeus resultou em xenofobia e no chamado “preconceito de raça”, tema também de um dos capítulos do manual de Raul Briquet.

Mesmo em sociedades industriais, uma tão grande mobilização de mão-de-obra impõe enormes tensões à força de trabalho, motivo pelo qual as guerras de massa fortaleceram o poder do trabalhismo organizado e produziram uma revolução no emprego de mulheres fora do lar: temporariamente na Primeira Guerra Mundial, permanentemente na Segunda (HOBSBAWM, 2004, p.51).

Não seria possível tamanha produção sem a sua necessária racionalização, ou seja, pela sua administração e pelo seu planejamento calculados:

Mas a produção também exigia organização e administração – mesmo sendo o seu objetivo a destruição racionalizada de vidas humanas da maneira mais eficiente, como nos campos de extermínio alemães. Falando em termos mais gerais, a guerra total era o maior empreendimento até então conhecido do homem, e tinha de ser conscientemente organizado e administrado (HOBSBAWM, 2004, p. 52).

A conseqüência desta racionalização foi a fusão entre Estado e a produção de alta tecnologia bélica, formando-se os grandes complexos industrial-militares. Também, viu-se o avanço do pensamento técnico-científico destinado a produção bélica para outros setores especializados da economia. Nesse sentido, pode-se afirmar que “a guerra total sem dúvida revolucionou a administração” (HOBSBAWM, 2004, p.54).

Se por um lado, a racionalização da produção bélica em massa levou ao progresso da administração e ao desenvolvimento da economia de forma integral, por outro resultou na trágica conseqüência da guerra tecnológica: a sua “impessoalidade”, que tornava suas vítimas invisíveis. Segundo Hobsbawm (2004), “as maiores crueldades do nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais” (p. 57).

A matança em larga escala tornou-se banal, assim como a expulsão de milhões de pessoas de seus territórios. A morte de 1,5 milhões de armênios pela Turquia figurou como a primeira tentativa de extermínio em massa da era moderna. Tanto a Primeira Guerra Mundial, quanto a Revolução Russa forçaram a migração de milhões de pessoas como “refugiados”, inclusive como parte da política de “troca” entre Estados. Todas estas experiências levaram à invenção de novas palavras que lhe dessem definição, tais como “genocídio” e “apátrida” (HOBSBAWM, 2004). Entre 1914 e 1922, o número total de refugiados pelo mundo girava em torno de 4 e 5 milhões, levando a Liga das Nações a inventar o “passaporte de Nansen”, destinado àqueles que não tinham sua existência comprovada pela burocracia de um Estado (HOBSBAWM, 2004, p.57-8).

Em suma, se a catástrofe da Primeira Guerra levou ao fim da Europa burguesa e liberal enquanto centro do mundo, as conseqüências políticas do pós-guerra radicalizaram mais ainda este processo:

...A Primeira Guerra Mundial não resolveu nada. As esperanças que gerou – de um mundo pacífico e democrático de Estados-Nação sob a Liga das Nações; de um retorno à economia mundial de 1913; mesmo (entre os que saudaram a Revolução Russa) de capitalismo mundial derrubado dentro de anos ou meses por um levante de oprimidos – logo foram frustradas. O passado estava fora de alcance, o futuro fora adiado, o presente era amargo, a não ser por uns poucos anos passageiros em meados da década de 20 (HOBSBAWM, 2004, p.59).

Talvez o principal efeito do pós-guerra, em ambas as guerras, tenha sido um movimento revolucionário mundial. Da Primeira Guerra Mundial, viu-se de um lado a tentativa do avanço bolchevista sobre a Europa e a Ásia, e de outro, revoluções contra a guerra, sobretudo em países do Ocidente. O que é certo é que a Revolução de Outubro de 1917 foi o estopim das revoltas sociais de todo o século XX.