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6.1 O entre guerras: catástrofe, revolução e crise

6.1.2 A revolução

Bastou a primeira década do século XX para que grande parte da humanidade percebesse que os valores liberais-burgueses da Revolução Francesa apontavam para seu esgotamento. Sua falência foi decretada com a Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, diante desta catástrofe, um potencial revolucionário entre aqueles que não enxergavam mais o horizonte da velha ordem liberal se formava, sobretudo pela construção de uma alternativa histórica por parte do movimento socialista que se expandia mundialmente junto da classe trabalhadora. Esperava-se apenas o estopim, que ocorreu em 1917 com a Revolução Bolchevique encabeçada por Lênin na Rússia. Se a revolução é filha da guerra do século XX, a Revolução Russa foi sua ponta de lança, alterando para sempre a dinâmica histórica mundial a partir daquela data (HOBSBAWM, 2004).

Justamente por seus efeitos irreversíveis, Hobsbawm (2004) coloca esta revolução, para o século XX, sob o mesmo nível de importância que a Revolução Francesa de 1789 teve para o século XIX:

...a Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que sua ancestral. Pois se as idéias da Revolução Francesa, como é hoje evidente, duraram mais que o bolchevismo, as conseqüências práticas de 1917 foram muito maiores e

mais duradouras que as de 1789. A Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna (p.62).

O contexto para este movimento mundial se deu através do completo colapso político gerado pela Grande Guerra, levando a múltiplos levantes sociais contra seus governos orientados pelo espírito anti-guerra:

Em 1918, todos os quatro governantes das potências derrotadas (Alemanha, Áustria- Hungria, Turquia e Bulgária) perderam seus tronos, assim como o czar da Rússia, derrotada pela Alemanha, que já caíra em 1917. Além disso, a inquietação social, equivalendo quase a uma revolução na Itália, abalou até mesmo os beligerantes europeus do lado vencedor (HOBSBAWM, 2004, p. 65).

Ainda neste espírito, viu-se também nos país beligerantes a organização de uma forte militância trabalhista industrial e anti-guerra, formada por parte dos operários das indústrias armamentistas. Na Rússia, assim como na Alemanha, as “principais bases navais (Kronstadt; Kiel) iriam tornar-se grandes centros de revolução (...). A rebelião contra a guerra adquiriu assim concentração e atuação” (HOBSBAWM, 2004, p.66).

No caso da Rússia, a figura de Lênin foi fundamental para a orientação de um país atrasado e semi-feudal, composta por uma massa – a maioria de camponeses – miserável e opositora à guerra, que desejava a derrubada do regime e que ainda não se identificava com o pequeno partido operário bolchevique. A insurreição, primeiro contra o Czar, depois contra o breve governo provisório liberal apoiado pelo Ocidente, foi inevitável e aglutinou as massas russas revoltadas:

Quatro dias espontâneos e sem liderança na rua puseram fim a um Império. Mais que isso: tão pronta estava a Rússia para a revolução social que as massas de Petrogrado imediatamente trataram a queda do czar como uma proclamação de liberdade, igualdade e democracia direta universais. O feito extraordinário de Lênin foi transformar essa incontrolável onda anárquica popular em poder bolchevique

(HOBSBAWM, 2004, p.67).

Em março de 1917, o slogan bolchevique “Pão, Paz e Terra” tentava sintetizar as demandas das diferentes camadas populares da Rússia, tantos do campo quanto da cidade, sendo uma tentativa de orientar e conduzir o ímpeto das massas para um programa político real. Daí, destaca-se a liderança de Lenin:

Ao contrário da mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como um organizador de golpes, a única vantagem real com que ele e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer o que as massas queriam; de conduzir25,

25 A missão de “conduzir” um povo, a partir da figura de um líder intelectual, tornara-se uma espécie de

paradigma emancipador da época. No manual de Psicologia Social de Briquet, são diversas as passagens que explicitam a intenção de “se conduzir” a nação brasileira para a auto-determinação. Esta se daria, sobretudo, pela

por assim dizer, por saber seguir. Quando, por exemplo, ele reconheceu que, ao contrário do programa socialista, os camponeses queriam uma divisão da terra em fazendas familiares, não hesitou um instante em comprometer os bolcheviques com essa forma de individualismo econômico (HOBSBAWM, 2004, p. 68).

A Guerra Civil de 1918-20 foi a reação contra-revolucionária de regimes brancos contra o ímpeto soviético, resultando no final de 1920 na vitória e no aumento de poder dos bolcheviques, na sua centralização partidária, a despeito do isolamento da Rússia em relação à política internacional. Apesar do projeto de uma revolução mundial não ter vingado, os dois anos seguintes à Revolução de Outubro foram de insurgências pelo mundo: em Cuba, formaram-se modelos de sovietes nas indústrias de tabaco; na Espanha em 1917-19 viu-se o chamado “biênio bolchevista”; na China em 1919 e na Argentina em 1918 viu-se a organização de movimentos estudantis revolucionários marxistas que se espalharam pela América Latina. Além deles, México, Austrália. Indonésia e os finlandeses de Minnesota nos Estados Unidos foram influenciados pelo movimento e pelo ideário russo (HOBSBAWM, 2004, p. 72).

Contudo, o ano de 1918 presenciou não apenas greves e manifestações políticas de influência soviética, mas também do movimento anti-guerra que norteou a maioria dos países da Europa Central, sobretudo aqueles que, sob a supervisão dos vitoriosos da guerra, tornaram-se Estados-Nação formando uma espécie de “cinturão de quarentena” europeu que contivesse o avanço vermelho. De maneira geral a “revolução, que assim varria regimes de Vladivostok ao Reno, era uma revolta contra a guerra e, na maior parte, a vinda da paz desarmou muito do explosivo que ela continha” (HOBSBAWM, 2004, p.73).

Em 1920, apesar do “grande erro” soviético de dividir permanentemente o movimento trabalhista mundial - que havia se fortalecido com a insurgência dos movimentos socialistas durante a guerra na Europa - a partir do modelo de partido de vanguarda-leninista, viu-se na Alemanha o maior Partido Comunista fora da Rússia, cujos grandes líderes foram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (p.75).

A despeito do sectarismo partidário, o modelo de partido idealizado por Lenin formou um corpo revolucionário mundial disciplinado, sendo uma novidade sobre qualquer outra forma concebida na época:

formação de uma elite intelectual dirigente que conduziria a política brasileira segundo os princípios da ciência. Cabe destacar também a famosa divisa “NON DVCO, DVCOR” do brasão da cidade de São Paulo, criado em 1916 pelo governo de Washington Luís, cujo significado em latim é “não sou conduzido, conduzo”. Sua intenção era refletir o papel de liderança e vanguarda da cidade em relação a todo o país. Noutro capítulo, esta discussão será mais bem detalhada.

A força do movimento pela revolução mundial estava na forma comunista de organização, o “novo tipo de partido” de Lenin, uma formidável inovação de engenharia social do século XX, comparável à invenção das ordens monásticas cristãs e outras na Idade Média. Dava até mesmo a organizações pequenas uma eficácia desproporcional, porque o partido podia contar com extraordinária dedicação e auto-sacrifício de seus membros, disciplina e coesão maior que a de militares, e uma total concentração na execução de suas decisões a todo custo

(HOBSBAWM, 2004, p. 82).

A questão do sacrifício e da disciplina por uma causa, justificava-se pelo ímpeto vanguardista que, como citado anteriormente, era representado pela figura de um líder ou por um elite que traria a emancipação e a condução as massas:

...os partidos leninistas eram essencialmente construídos como elites (vanguardas) de líderes (ou melhor, antes das revoluções serem vencidas, “contra-elites”), e as revoluções sociais, como mostrou 1917, dependem do que acontece entre as massas e em situações que nem as elites nem as contra-elites podem controlar por inteiro

(HOBSBAWM, 2004, p. 82).

Deste modelo de revolução mundial, apesar de fracassado, viu-se no Brasil o surgimento de uma elite intelectual comunista na década de 30, composta por jovens de origem oligárquica latifundiária e por oficiais subalternos. Nesta década, tentativas de insurreição armada foram presenciadas por toda América Latina, tendo por principal líder brasileiro o tenente rebelde Luís Carlos Prestes.

Não cabe a este estudo aprofundar os desdobramentos do movimento socialista internacional nas décadas seguintes. Entretanto, cabe reiterar, como conclusão, que a revolução bolchevique de 1917 foi o imã de vários levantes sociais pelo mundo, tanto na orientação de aliados, quanto no fortalecimento de opositores. Também, seu modelo político organizado em partidos de vanguarda foi fundamental para a compreensão da dinâmica das massas revolucionárias e da importância do líder em sua condição, temas pertinentes no manual de Psicologia Social de Raul Briquet. Em suma, diretas ou indiretas, as conseqüências do pós-1917 foram as bases da história do período entre-guerras e de todo século XX:

Os anos após a Revolução Russa iniciaram o processo de emancipação colonial e descolonização, e introduziram a política de bárbaras contra-revoluções (na forma do fascismo e outros muitos movimentos [...]) e a política de social-democracia na Europa. Esquece-se muitas vezes que até 1917 todos os partidos trabalhistas e socialistas (foram a meio periférica Austrália) prefeririam ficar em permanente oposição até a chegada da hora do socialismo. Os primeiros governos ou coalizões de governos social-democratas (não do Pacífico) foram formados em 1917-19 (Suécia, Finlândia, Alemanha, Austrália, Bélgica), seguidos, depois de poucos anos, pela Grã-Bretanha, Dinamarca e Noruega. Tendemos a esquecer que a própria moderação desses partidos era em grande parte uma reação bolchevismo, como o foi a disposição do velho sistema político de integrá-los (HOBSBAWM, 2004, p.79).

Os anos seguintes à Grande Depressão de 1929 trouxeram a União Soviética à tona por ter sido a única potência a não se abalar com a crise financeira mundial, além de mostrar para os outros Estados capitalistas o esgotamento da ortodoxia do livre mercado e da possibilidade de uma alternativa econômica ao capital.