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6.1 O entre guerras: catástrofe, revolução e crise

6.1.3 A Crise

6.1.3.1 Crise econômica

Se os valores e aspirações burgueses do Iluminismo foram demolidos com a irracionalidade da Primeira Guerra Mundial, o velho liberalismo econômico sofreu um ataque irreversível com a Grande Depressão de 1929. Ela decretou a impossibilidade de se retornar às condições do mundo europeu burguês tal como do século XIX.

Este colapso econômico foi de tamanha magnitude para o destino da humanidade que, caso não tivesse ocorrido, “com certeza não teria havido Hitler. Quase certamente não teria havido Roosevelt (...) [e seria] muito improvável que o sistema soviético tivesse sido encarado como um sério rival econômico e uma alternativa possível ao capitalismo mundial” (HOBSBAWM, 2004, p.91).

Apesar de (supostamente) prevista pelos economistas - dentro das freqüentes flutuações econômicas e constantes crises cíclicas de superprodução do capital (tal como descrito por Marx desde o século XIX) – o desmoronamento econômico de 1929 pôs pela primeira vez não só as economias, mas o próprio sistema capitalista em xeque. Apesar de tudo, cabe destacar que as economias das grandes potências não pararam de crescer, exceto seu processo de globalização mundial, que se expressou pelo quase completo esvaziamento do fluxo internacional de capital explicitado na queda de 90% dos empréstimos internacionais entre 1927 e 1933 (HOBSBAWM, 2004, p. 93).

É correto afirmar que o centro desta crise foi a recessão econômica da principal potência da época: os Estados Unidos. O “crack” da bolsa de Nova Iorque levou à queda de um terço da produção norte-americana, refletindo assim no pólo industrial da Alemanha – cujas taxas de inflação foram a níveis estratosféricos – e, então, no resto do mundo, incluindo os exportadores de produtos primários da América Latina extremamente dependentes do mercado internacional, que inclui o Brasil. No caso brasileiro, ficou famosa a queima dos

estoques de café em locomotivas como forma de conter o colapso dos preços (HOBSBAWM, 2004, p.96-7).

Além das altas taxas de inflação e quebra da previdência privada, o principal desastre desta crise foi a alta taxa de desemprego, que atingiu níveis nunca antes imagináveis e por um tempo também nunca estimado. Considerado a “doença social” da época, ele abalou não só diretamente a economia na esfera da demanda e da produção, como enfraqueceu substancialmente o movimento trabalhista organizado das indústrias. O comércio mundial entre 1929 e 1932 caiu em 60% e não se encontrava qualquer solução, fora do velho manual econômico ortodoxo, para tal situação (HOBSBAWM, 2004, p.98).

Não compete a este estudo a investigação das raízes da crise em questão, que são situadas pela historiografia desde os efeitos das sanções à Alemanha no Tratado de Versalhes, assim como à assimetria do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos em relação ao mundo, indo para a explicação mais próxima à realidade do sistema capitalista que é a da superprodução (não acompanhada de demanda) no país norte-americano, somada à bolha causada pela especulação imobiliária dos bancos devido às famosas picaretagens financeiras (HOBSBAWM, 2004, p. 104).

Cabe destacar que, neste momento de completo pessimismo e queda no consumo, coube à figura emblemática do psicólogo Émile Coúe (1857-1926) a propagação de um slogan próximo da auto-ajuda que dizia: “Todo dia, em todos os aspectos, estou ficando cada vez melhor”. Este slogan era constantemente repetido, sendo parte da chamada “auto-gestão otimista” (HOBSBAWM, 2004). Sua função ideológica não esconde qualquer mistificação, ainda mais quando uma massa de trabalhadores desempregados tornara-se um potencial explosivo para a época.

A configuração política de praticamente todos os Estados mudou após 1929. Na América Latina, onde as mudanças foram mais rapidamente visíveis, dez países mudaram de governo e regime através de golpes militares. Na Alemanha e no Japão viu-se a subida ao poder governos de ultradireita, conservadores, nacionalistas e belicosos. Em contrapartida, o movimento comunista internacional sofreu grande baixa - sobretudo pela desmobilização do movimento trabalhista e pelo crescimento da social-democracia que flertava com a direita - indo assim no sentido oposto das expectativas dos planos revolucionários da época (HOBSBAWM, 2004, p.108-9).

Tal como já descrito noutras passagens, no Brasil a principal conseqüência política da depressão econômica foi a derrubada da República Velha oligárquica e a tomada do poder por Getúlio Vargas, a partir de um governo considerado nacionalista e populista. Nos outros países da América Latina, as mudanças políticas seguiram tendências que os orientaram para governos tanto de direita quanto de esquerda:

A Argentina entrou em uma era de governo militar após um longo período de governo civil; e embora líderes de mentalidade fascista como o general Uriburu (1930-2) logo fossem afastados, moveu-se claramente para a direita, se bem que uma direita tradicionalista. O Chile, por outro lado, aproveitou a Depressão para derrubar um de seus raros presidentes ditadores antes da era do general Pinochet, Carlos Ibañez (1927-31), e moveu-se, de uma forma tempestuosa, para a esquerda. Na verdade passou por uma momentânea “República Socialista” em 1932, sob um coronel de nome esplêndido, Marmaduke Grove, e depois criou uma bem-sucedida Frente Popular com base no modelo europeu (...) [em relação ao Brasil] A mudança no Peru foi bem mais para a esquerda, embora o mais poderoso dos novos partidos, a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) – um dos poucos partidos de massa com base na classe operária do tipo europeu bem-sucedidos no hemisfério ocidental -, fracassasse em suas ambições revolucionárias (1930-2). A mudança na Colômbia foi ainda mais para a esquerda. Os liberais sob um presidente de mentalidade reformista muito influenciado pelo New Deal de Roosevelt, assumiram após quase trinta anos de governo conservador (HOBSBAWM, 2004, p.109 -10).

No Hemisfério Norte, a crise das superpotências levou-as a tomar medidas protecionistas, o que abriu a possibilidade dos levantes de suas colônias, inaugurando, deste modo, um intenso movimento antiimperialista dos países da África Ocidental e do Caribe, cujas economias exportadoras estavam colapsadas e desprotegidas.

Desta maneira, “nada demonstra mais a globalidade da Grande Depressão e a severidade de seu impacto do que essa rápida visão panorâmica dos levantes políticos praticamente universais que ela produziu num período medido em meses ou num único ano” (HOBSBAWM, 2004, p.111). Neste contexto, era impossível a retomada de antigos regimes políticos assim como do velho modelo liberal econômico do século XIX. Cabia, aos Estados na época, três saídas: o primeiro seria o comunismo marxista que desde o início se propôs como alternativa ao sistema capitalista; o segundo, a orientação social-democrata capitalista cujo grande idealizador foi J.M. Keynes; o terceiro, o fascismo, cujo movimento ganhou força com a crise econômica mundial e que se posicionava contra qualquer tradição econômica liberal, defendendo um tipo de política nacionalista implacável. Este conseguiu contornar a crise pondo em xeque a velha tradição ortodoxa da economia; entretanto, pôs também em xeque as instituições políticas e os valores liberais burgueses que foram os pilares da moderna sociedade Ocidental de então.

6.1.3.2 Crise do Liberalismo

Há talvez um consenso entre a historiografia moderna de que o fascismo e o nacional- socialismo alemão não teriam existido se não fosse a Grande Depressão de 1929. Há também outro consenso de que parte desse movimento de ultradireita nacionalista e militarista ganhou força ao se tornar uma implacável “contra-revolução” à suposta revolução que se ameaçava com a organização operária e trabalhista pelo mundo, sobretudo, em tempos de crise. Entretanto, como pano de fundo destes dois fatos históricos, está o esgotamento da velha tradição liberal política e econômica, que viu seus valores desintegrarem-se quando parte de seus postulados tornaram-se obsoletos e perderam sentido diante de uma Europa devastada pela barbárie da guerra:

Esses valores eram a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso com um governo constitucional com ou sob governos e assembléias representativas livremente eleitos, que garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, publicação e reunião. O Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão, do debate público, da educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente da perfeição) da condição humana (HOBSBAWM, 2004, p.113-4)

Do período da Primeira Guerra Mundial até o início do entre-guerras, foi inegavelmente uma tendência mundial a eleição de governos sob uma democracia representativa. Entretanto, na década de 30, com a ascensão de Mussolini na Itália e Adolf Hitler na Alemanha, cresceram os números de Estados cujos poderes constitucionais foram dissolvidos; conseqüentemente, chama a atenção o fato de que os únicos países europeus que não sofreram qualquer abalo em suas democracias neste período foram Grã-Bretanha, Finlândia, Estado Livre Irlandês, Suécia e Suiça (HOBSBAWM, 2004, p. 115).

Quanto aos países americanos, foi citado anteriormente que a tendência geral da América Latina foi a de não avançar democraticamente neste período, pendendo para o autoritarismo normalmente vinculado com a direita. Os únicos Estados que mantiveram firme suas instituições democrático-constitucionais em todo o período foram: Canadá, Colômbia, Costas Rica, Estados Unidos e Uruguai. Entretanto, cabe mencionar que, apesar do fortalecimento constitucional de alguns países, “um terço da população do mundo vivia sob domínio colonial” (HOBSBAWM, 2004, p.114).

Deste modo, a derrubada de governos constitucionais e das instituições liberais como um todo se tornou, no entre-guerras, uma tendência clara a todos. Certamente, o mundo

seguiria nesta direção em seu futuro. E este se tornou o programa da direita, sobretudo, pelo enfraquecimento do movimento comunista soviético desde a década de 20, que sequer tinha forças, em seu isolamento, para liderar qualquer movimento revolucionário mundial. Sendo adepta ou não ao fascismo, como um todo “essa direita representava não apenas uma ameaça ao governo constitucional e representativo, mas uma ameaça ideológica à civilização liberal como tal, e um movimento potencialmente mundial...” (p.116).

Enquanto movimento potencialmente mundial, a direita mobilizou aquilo que antes lhe causava espanto: as massas. A princípio, a população média via com maus-olhos o progressivo crescimento e organização do movimento trabalhista. Todavia, com o tempo, não apenas a defesa de uma suposta revolução social contra o modo de produção burguês, mas justamente a apologia dos princípios liberais foi o motivo suficiente da completa ojeriza da direita contra a esquerda operária mobilizada:

A ignorância e atraso das massas, seu compromisso com a derrubada da sociedade burguesa pela revolução social, e a irracionalidade humana latente tão facilmente explorada por demagogos, eram de fato motivo de alarme26. Contudo, o mais

perigoso desses novos movimentos de massa, o movimento trabalhista socialista, era na verdade, tanto em teoria como na prática, tão apaixonadamente comprometido com os valores da razão, ciência, progresso, educação e liberdade individual quanto qualquer outro. A medalha do Dia do Trabalho do Partido Social-Democrata alemão mostrava Karl Marx de um lado e a Estátua da Liberdade do outro. O desafio deles era à economia, não ao governo constitucional e à civilidade (HOBSBAWM, 2004,

p.114).

É assim que a direita, como força conservadora antiliberal e anticomunista, se fortaleceu enquanto “contra-revolução” pelo mundo: “todos eram contra a revolução social, e na verdade uma reação contra a subversão da velha ordem social em 1917-20 estava na raiz de todos eles” (HOBSBAWM, 2004, p.116).

Uma população sem respostas para a crise social, política e econômica no mundo. Uma classe de políticos e de economistas que não tinha respostas imediatas ou qualquer saída que não fosse fracassada para a Grande Depressão. Um ressentimento culposo e vingativo quanto às medidas da “paz punitiva” pós-guerra. Além do espanto sobre uma possível subversão da ordem social pela esquerda revolucionária. Foi justamente deste engodo que a direita encontrou a sua hora:

As condições ideais para o triunfo da ultradireita alucinada eram um Estado velho, com seus mecanismos dirigentes não mais funcionando; uma massa de cidadãos

26 A tendência de Raul Briquet nos capítulos que tratam do fenômeno de massas, em seu manual de Psicologia

Social, é a de reproduzir o discurso acima, tratando o fenômeno coletivo enquanto espaço de puro rebaixamento da razão e do senso crítico.

desencantados, desorientados e descontentes, não mais sabendo a quem ser leais; fortes movimentos socialistas ameaçando ou parecendo ameaçar com a revolução social, mas não de fato em posição de realizá-la; e uma inclinação do ressentimento nacionalista contra os tratados de paz de 1918-20 (HOBSBAWM, 2004, p.131).

Esta massa, composta sobretudo pelas camadas inferiores e médias européias, também se viu diante de um intenso movimento migratório mundial, que representava uma ameaça à sua posição social em seu próprio país. Não foi à toa que o termo “nacionalismo”, de fins do século XIX, tornou-se uma orientação política que foi apropriada pela classe trabalhadora ameaçada, tendo por efeito imediato o racismo e a xenofobia. Nesse sentido, sua base concreta, seu “cimento comum (...) era o ressentimento de homens comuns contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes movimentos trabalhistas, do outro” (HOBSBAWM, 2004, p.122-3). A expressão fundamental desse sentimento que resultou do choque entre capital e trabalho foi o anti-semitismo.

Hobsbawm (2004) descreve três tipos de direita que derrubaram regimes democrático- constitucionais pelo mundo27. A primeira, de caráter não fascista, representava uma classe

reacionária autoritária e parlamentar, porém não democrática. Seu método de governo, apoiado no militarismo, se dava pela coerção física orientada pelo espírito nacionalista. Não havia “qualquer programa ideológico particular, além do anticomunismo e dos preconceitos tradicionais de sua classe” (p.117). Exemplares deste primeiro tipo ocorreram na Hungria, Iugoslávia, Finlândia e Espanha. A segunda, também não fascista, baseava-se no chamado “estatismo orgânico”, perpetuando uma ideológica nostalgia com a antiga sociedade feudal, em que a hierarquia social baseada em estamentos e em classes rígidas compunham uma suposta harmonia de um “todo social orgânico”. Travestido de democracia (ou buscando dar- lhe outro sentido), esse regime se intitulava “democracia orgânica”, ou seja, acreditava-se “melhor que a real, mas de fato combinava-se sempre com regimes autoritários e Estados fortes governados de cima, em grande parte por burocratas e tecnocratas” (HOBSBAWM, 2004). Como exemplos estão Portugal, Áustria e até, em certa medida, a Espanha.

O terceiro tipo é a direita fascista. Se o fascismo teve como princípio a figura de Benito Mussolini na Itália, há um consenso dentro da historiografia de que ele não teria se tornado um movimento universal (tal como um equivalente opositor do comunismo mundial) se não fosse a subida de Adolf Hitler no poder na Alemanha em 1933. Nesse sentido, mudou-

27 Excetuando-se “a forma tradicional de golpes militares que instalavam ditadores ou caudilhos latino-

se a orientação inclusive dos outros movimentos da ultradireita européia (anteriores ao fascismo, tais como os descritos acima), onde alguns aderiram aos princípios fascistas (tal como a Cruz em Seta na Hungria e a Guarda de Ferro na Romênia) enquanto outros se mantiveram sob o solo apenas do nacionalismo. Entretanto, a despeito das diferenças entre a direita não-fascista e a propriamente fascista, era consenso o acato à hegemonia alemã sobre o mundo (HOBSBAWM, 2004, p.120).

A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os defensores do “Estado orgânico” tentavam contornar. O fascismo rejubilava-se na mobilização das massas, e mantinha-a simbolicamente na forma de teatro público (...) mesmo quando chegava ao poder; como também faziam os movimentos comunistas. Os fascistas eram os revolucionários da contra-revolução: em sua retórica, em seu apelo aos que se consideravam vítimas da sociedade, em sua convocação a uma total transformação da sociedade, e até mesmo em sua deliberada adaptação dos símbolos e nomes dos revolucionários sociais, tão óbvia no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores de Hitler, com sua bandeira vermelha (modificada) e sua imediata instituição do Primeiro de Maio dos comunistas como feriado oficial em 1933 (HOBSBAWM, 2004, p.121).

A despeito das diversas roupagens do fascismo pelo mundo, além da grande adesão de intelectuais conservadores que lhe apoiaram, fato era que a “teoria não era o ponto forte de movimentos dedicados às inadequações da razão e do racionalismo e à superioridade do instinto e da vontade” (HOBSBAWM, 2004, p.120). Nesse sentido, reside aí um abismo entre os movimentos fascistas e os socialistas: os princípios teóricos do último ainda se baseavam (ou ao menos respeitavam) as tradições iluministas e se voltavam para políticas progressistas, tais como as discussões de gênero do trabalhismo feminista28.

...embora o fascismo também se especializasse na retórica da volta ao passado tradicional (...) não era de modo algum tradicionalista (...). Enfatizava muitos

valores tradicionais, o que é outro assunto. Os fascistas denunciavam a emancipação

liberal – as mulheres deviam ficar em casa e ter muitos filhos – e desconfiavam da corrosiva influência da cultura moderna, sobretudo das artes modernistas, que os nacional-socialistas alemães descreviam como “bolchevismo cultural” e degeneradas. Contudo, os movimentos fascistas – o italiano e o alemão – não apelavam aos guardiões históricos da ordem conservadora, a Igreja e o rei, mas ao contrário buscavam complementá-los com um princípio de liderança inteiramente não tradicional, corporificado no homem que se faz a si mesmo, legitimizado pelo apoio das massas, por ideologias seculares e às vezes cultas.

(...)

28 Como exemplo, estão os clássicos textos de Virginia Woolf destinados às associações de mulheres, tais como

O passado ao qual eles apelavam era uma invenção. Suas tradições, fabricadas29

(HOBSBAWM, 2004, p.121).

A fabricação das tradições revelava o princípio relativista do fascismo que adaptava tudo de acordo com seu interesse. Se de um lado era antiliberal por essência, por outro, utilizava-se da moderna ciência tanto para sua argumentação eugênica, quanto na investigação de métodos de extermínio em massa. Tanto importava a miscelânea entre princípios conservadores e técnicas modernas, contanto, que permitisse a justificação racional de sua política irracional.

Mesmo o racismo de Hitler não era feito daquele orgulho de uma linhagem ininterrupta (...) mas uma mixórdia pós-darwiniana do século XIX pretendendo (e, infelizmente, na Alemanha muitas vezes recebendo) o apoio da nova ciência da genética, mais precisamente do ramo da genética aplicada (“eugenia”) que sonhava em criar uma super-raça humana pela reprodução seletiva e a eliminação dos incapazes (...). Hostil como era, em princípio, à herança do Iluminismo e da Revolução Francesa do século XVIII, o fascismo não podia formalmente acreditar em modernidade e progresso, mas não se acanhava em combinar um lunático conjunto de crenças com uma modernidade tecnológica em questões práticas, exceto quando ela comprometia sua pesquisa científica básica feita em premissas ideológicas (HOBSBAWM, 2004, p.121-2).

No geral, a tendência da Igreja Católica Romana era identificar-se com a direita, não sendo à toa que os regimes direitistas do “Estado orgânico” ocorreram em países católicos. Com princípios reacionários, a aproximação da Igreja ao fascismo se deu através do “ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: a democracia, liberalismo e, claro, mais marcadamente, o `comunismo ateu´” (HOBSBAWM, 2004, p.118).

Embora o ódio ao liberalismo fosse parte constituinte do fascismo, sua apropriação conveniente de valores e posicionamentos políticos lhe permitiu flertar com outra fonte de extremo poder: o capital. Não é errôneo afirmar que sua política com base na anti-democracia, na violência e no extermínio trouxe vantagens ao capital:

Primeiro, eliminou ou derrotou a revolução social esquerdista, e na verdade pareceu ser o principal baluarte contra ela. Segundo, eliminou os sindicatos e outras limitações aos direitos dos empresários de administrar sua força de trabalho. Na verdade, o “princípio de liderança” fascista era o que a maioria dos patrões e executivos de empresas aplicava a seus subordinados em suas firmas, e o fascismo

29 Note-se a possível aproximação desta posição da direita fascista européia da década de 30 com a atual direita

brasileira que ganhou visibilidade ao se opor, de forma implacável, às políticas de cunho progressista. Termos como “marxismo cultural” e “feminazi” parecem reapropriações de discursos do século passado, assim como a já então defendida “meritocracia”. A nova defesa dos valores e instituições “tradicionais” contra as atuais demandas progressistas – tais como a discussão de gênero nas escolas, a não criminalização do aborto e a legalização do casamento homoafetivo - resultou na reedição “pós-moderna” da Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 2014.

lhe dava justificação autorizada. Terceiro, a destruição dos movimentos trabalhistas ajudou a assegurar uma solução extremamente favorável da Depressão para o capital (...). Finalmente, (...) o fascismo foi eficiente na dinamização e modernização de economias industriais – embora de fato menos no planejamento técnico-científico