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Dentre as principais conjecturas teórico-metodológicas - que estruturam organicamente a produção do conhecimento científico a determinados valores, ideologias e posições de classe - encontra-se o positivismo.

Sua origem, enquanto resultante da tentativa de se fundar uma ciência da sociedade a partir do modelo objetivo das ciências naturais, situa-se no século XVIII, no período do enciclopedismo iluminista. Segundo Michel Löwy (2010), “o positivismo é filho legítimo da filosofia das luzes” (p.39), podendo ser divido, segundo seu desenvolvimento histórico, em dois momentos distintos55.

No primeiro momento, referente ao período iluminista em questão, o positivismo se fundara através de uma ciência social de caráter crítico e revolucionário, pondo em questão os valores dominantes e os dogmas do clero e do Antigo Regime. Seu principal pensador - e na opinião de Löwy (2010) o “pai do positivismo” - é Condorcet, que trouxe sua forma de pensar enciclopédica para formular pela primeira vez a possibilidade de uma ciência social com a exatidão da matemática, sendo, portanto, uma espécie de matemática social. Apenas com a objetividade desta ciência seria possível fundar uma verdadeira investigação objetiva dos fatos sociais, que superasse os preconceitos e especulações do conhecimento dominante oriundo da classe dominante da época – conforme a postura utópico-revolucionária deste primeiro momento. Nesse sentido, Löwy (2010) afirma que:

Condorcet considera que, como na marcha das ciências físicas os interesses e as paixões não perturbam, o mesmo deve acontecer nas ciências da sociedade (...). Como esses interesses e paixões são, sobretudo, das classes dominantes feudais, para Condorcet se trata de eliminar do conhecimento social as doutrinas teológicas, os argumentos de autoridade papal, a autoridade de São Tomás de Aquino, enfim, todos os dogmas fossilizados que se arrogavam o monopólio do conhecimento social (p.40).

55 Uma interessante crítica à análise do positivismo realizado por Löwy (2010) está no artigo “Sobre o

Deste modo, inaugura-se a busca por uma ciência social livre de preconceitos56, com a

exatidão e a objetividade das ciências naturais, sendo estas as condições para o progresso da ciência.

Outro importante pensador da primeira fase do positivismo, socialista utópico e discípulo de Condorcet foi Saint-Simon. Este foi o primeiro a postular o termo “positivo”, na intenção de pensar uma “ciência positiva”, que definiria uma ciência social baseada no modelo da fisiologia. Com efeito, a “fisiologia social” estaria carregada de ímpeto crítico ao apontar para as classes sociais “parasitas” do “organismo social”, ou seja, as classes dominantes feudais.

Esta tendência critico-revolucionária do positivismo manteve-se até o século XIX, mudando então de postura:

...até os princípios do século XIX, o positivismo aparece como uma visão social do mundo, como uma ciência social que tem um aspecto utópico-crítico muito importante. A transformação, a mudança de direção, só se dá depois de Saint-Simon, através de seu discípulo Augusto Comte (LÖWY, 2010, p. 41).

Augusto Comte, considerado pela opinião geral como o pai da sociologia e do positivismo, seguiu o desenvolvimento de seus antecessores, discordando, todavia, da postura “crítica” e de “negatividade” deles, ou seja, do uso da ciência social como instrumento revolucionário. Sua filosofia conservadora revelava as dimensões estruturais de seu tempo histórico pós-1830, quando a burguesia se tornou então a classe dominante em parte da Europa e prezava pela ordem pública, pela conservação de seu poder. Nesse sentido, inverteu- se a posição original de Condorcet e Saint-Simon, pondo-se como tarefa da ciência livrar-se dos “preconceitos revolucionários”.

Deste modo, a luta contra os preconceitos muda radicalmente de função: de uma luta utópica, critica, negativa, revolucionária, passa a ser uma luta conservadora. Comte se queixa da disposição revolucionária de Saint-Simon, com as quais ele está inteiramente em desacordo. Ele explica que seu método positivo deve se consagrar teórica e praticamente à defesa da ordem real (LÖWY, 2010, p.42).

A partir desta premissa concebeu a “física social”, que seria uma ciência natural cujo estudo dos fenômenos sociais teria a mesma fidedignidade dos estudos em física, química e astronomia. Deste modo, estes fenômenos estariam sob a determinação de leis naturais e

56 Condorcet fazia a apologia do imperativo: “livre de preconceitos”. Chama a atenção que a definição do termo

“preconceito”, presente na Enciclopédia, aproxima-se de uma das descrições realizadas por Raul Briquet no capítulo sobre o mesmo termo em seu livro Psicologia Social, que seria para os enciclopedistas “tudo que é

dogma irracional, dogma político ou religioso (...) do qual se trata de se libertar o pensamento e o conhecimento social” (ibidem, p.41).

invariáveis, que se apresentariam, por exemplo, na naturalização da concentração de riqueza da sociedade:

...a lei da distribuição das riquezas e do poder econômico, que determina a “indispensável concentração das riquezas na mão dos senhores industriais”, é para Augusto Comte um exemplo de lei invariável, natural, da sociedade, cujo estudo é tarefa da física social e, depois, da sociologia (...). Ele espera que “graças ao positivismo os proletários reconhecerão, com a ajuda feminina, as vantagens da submissão e de uma digna irresponsabilidade (LÖWY, 2010, p.42-43).

Com efeito, o positivismo comtiano seria pedagogicamente a ciência da “sábia resignação” às leis naturais da sociedade, as quais colocariam de antemão os proletários na posição inevitável de explorados e as mulheres de submissas, segundo a ordem natural da sociedade. Caberia à ciência apenas identificar e analisar estas leis, incluindo os “males sociais”, de maneira contemplativa.

Com base nesta posição foi que Comte formulou a famosa “Leis dos Três Estados”, na tentativa de traçar as condições históricas que levariam à evolução do espírito humano segundo três estados específicos, em que os precedentes determinariam os sucessores. No caso, a humanidade passaria em sua evolução por estes “estados”, onde a moderna sociedade burguesa se situaria no mais evoluído, sendo estas três fases:

...a fase fetichista ou teológica, na qual os homens explicam a realidade através de ações divinas; a fase metafísica, na qual os homens explicam a realidade por meio de princípios gerais e abstratos; e a fase positiva ou científica, na qual os homens observam efetivamente a realidade, analisam os fatos, encontram as leis gerais e necessárias dos fenômenos naturais e humanos e elaboram uma ciência da sociedade, a física social ou sociologia, que serve de fundamento positivo ou científico para a ação individual (moral) e para a ação coletiva (política). É a etapa final do progresso humano (CHAUÍ, 2001, p.32).

Estas fases da humanidade refletiriam momentos gerais do conhecimento humano de determinado período, ou seja, o conjunto das idéias e dos conhecimentos teóricos que buscavam com seus recursos explicar a realidade de cada época, e que foram nomeados por Comte como “ideologias”. Portanto, cada momento teria a sua ideologia como meio de explicação do real.

Nesse sentido, a fase positiva ou científica – a mais avançada - seria aquela em que a “teoria” seria privilégio dos sábios, instrumento de organização da realidade na medida em que a desmistificaria de saberes obscurantistas. Deste modo, o saber científico se tornaria um efetivo meio de controle sobre a vida social:

O lema positivista por excelência é: “saber para prever, prever para prover”. Em outras palavras, o conhecimento teórico tem como finalidade a previsão científica

dos acontecimentos para fornecer à prática um conjunto de regras e de normas, graças às quais a ação possa dominar, manipular e controlar a realidade natural e social (CHAUÍ, 2001, p. 33)

A ordem e o progresso seriam premissas fundamentais da filosofia positivista no estudo da sociedade e anunciariam a harmonia da teoria com a prática, ou em outras palavras, a coação da prática à teoria. Qualquer acontecimento, qualquer ação prática que escapasse à teoria ou se chocasse a ela recairia na “desordem”, portanto, na “anormalidade” e na ameaça à conservação da sociedade. A ameaça à ordem seria uma ameaça ao progresso.

Assim sendo, a suposta conservação garantida pela dominação da realidade prática humana através do conhecimento científico tomaria sua forma essencial na divisão entre trabalho manual e intelectual, em que este seria privilégio de elites intelectuais e científicas dirigentes:

Se examinarmos o significado final dessas conseqüências, perceberemos que nelas se acha implícita a afirmação de que o poder pertence a quem possui o saber. Por esse motivo, o positivismo declara que uma sociedade ordenada e progressista deve ser dirigida pelos que possuem o espírito científico, de sorte que a política é um direito dos sábios, e sua aplicação, uma tarefa de técnicos ou administradores competentes (CHAUÍ, 2001, p.35).

Enfim, por trás da busca incessante pelo modelo cientificista de neutralidade e objetividade importado das ciências naturais à sociologia, o positivismo se revelou cúmplice do que buscava criticar, mistificando e ocultando o verdadeiro movimento da realidade na tentativa obstinada de manter intacta a ordem pública e social.

Discípulo de Comte, Émile Dürkheim superou a postura especulativa e doutrinária de seu antecessor, trazendo a proposição teórico-metodológica do positivismo para a sociologia científica e acadêmica. Na opinião de Löwy (2010), “Dürkheim era um sociólogo no sentido pleno da palavra (...) a sociologia positivista deriva muito mais de Dürkheim que de Comte” (p.44). Para tanto, além do positivismo de Comte, também bebeu na fonte do método da economia política burguesa, a qual postulava as leis da sociedade como tão necessárias quanto as leis da física. Nesse sentido, afirmava categoricamente que o princípio econômico do nivelamento dos preços pela concorrência seria fenômeno tão natural e inevitável quanto a gravitação dos corpos na natureza.

Deste modo, Dürkheim reproduz o conservadorismo de seu antecessor na esfera do método, afirmando que o “sociólogo deveria se colocar no mesmo estado de espírito que os

químicos, os físicos ou os fisiólogos, quando executassem o seu trabalho de investigação57

(LÖWY, 2010, p.45), pois, conseqüentemente, os fatos sociais seriam naturais, imodificáveis e independentes da vontade humana, assim como os fenômenos da natureza.

Contudo, cabia como condição para a realização desta ciência social o afastamento das pré-noções, ideologias, visões de mundo, etc. Esta conduta se daria em diversas dimensões. Primeiramente, no nível da sociedade, que não deveria tomar qualquer posicionamento ideológico. Segundo, ao sociólogo, que deveria silenciar todas suas paixões e preconceitos, assim como isolar suas pré-noções antes da investigação social, sendo esta última a terceira dimensão. Estas condições permitiriam a cientificidade e o olhar neutro sobre a realidade (LÖWY, 2010, p.46).

Entretanto, da maneira como são concebidas, trata-se de meras formulações psicológicas na tentativa ingênua de proscrição dos elementos inconvenientes à investigação, acreditando-se que “a solução da objetividade, do conflito entre a necessidade de objetividade científica e a existência de pontos de vista contraditórios que se enfrentam no campo social, é a boa vontade, o esforço, a serenidade, o sangue-frio, o empenho na imparcialidade” (LÖWY, 2010, p.47).

Para ilustrar esta perspectiva, Löwy (2010) faz a analogia dela com a história infantil do Barão de Münchhausen a qual, resumidamente, seria a de um aventureiro fanfarrão que, durante uma cavalgada, atola-se em um pantanal e começa a afundar montado em seu cavalo. Desesperado, ao ver que o nível do pântano já estava na altura do ventre do cavalo, teve então a brilhante idéia de se puxar pelos próprios cabelos, conseguindo desta maneira livrar o cavalo e a si da morte. Desta analogia, critica-se a pretensão do cientista social de “se puxar” do contexto social e ideológico ao qual está inserido:

A objetividade científica do método positivista significa que o sociólogo, que está enterrado até a cintura no pantanal de sua ideologia, de sua visão social de mundo, de seus valores, de suas pré-noções de classe, sai dessa puxando-se pelos seus próprios cabelos, arrancando-se do pantanal para atingir um terreno limpo, asséptico, neutro, da objetividade científica (LÖWY, 2010, p.47).

É justamente nesse ímpeto por se “autoneutralizar” que os positivistas caem em contradição, principalmente por tomarem como premissas indiscutíveis seus preconceitos de classe ou de gênero, tal como a visão comtiana da mulher como “naturalmente” idônea.

57 Em capítulo sobre o método sociológico em seu manual de psicologia social, Briquet afirma que o único ponto

de diferenciação entre as diferentes ciências estaria na questão da observação (que seria orientada pela teoria), igualando-se todas, posteriormente, no processo da indução, ou seja, na passagem “dos fatos às leis”.

Apesar da preocupação real com a objetividade científica, suas posições conservadoras e até reacionárias tornam-se para eles algo evidente, óbvio, não passando assim pelo crivo da neutralização por simplesmente não serem vistos como preconceitos.

...esse modelo de objetividade científica inspirado nas ciências naturais, que supõe a possibilidade de neutralização ideológica, que supõe o esforço individual de objetividade, de autoneutralização ideológica do cientista social – esse modelo que segue o princípio metodológico do Barão de Münchhausen -, reaparece das maneiras mais variadas e imprevistas nos pensadores positivistas mais inteligentes e sofisticados, não só no século XIX, mas também no século XX (LÖWY, 2010,

p.48).

Esta inversão despercebida serve como instrumento de justificação de formas de dominação através de um aparato teórico-metodológico que se autodenomina neutro. Uma análise dialética desta forma de pensamento revela, a despeito de sua zona ideológica e mistificadora, um núcleo de verdade, racional, que seria o do esforço sincero na tentativa de se alcançar o conhecimento científico e verdadeiro (ibidem, p.49). Desta maneira cabe, então, a problematização de quais seriam as premissas essenciais para se chegar à construção do que se entende por “verdade”, através do apontamento crítico dos limites do pensamento científico tradicional do positivismo.