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Pseudoconcreticidade e formas fetichistas de objetividade: a abstração da realidade

Se anteriormente foi descrito o longo percurso do processo de reprodução do concreto enquanto concreto pensado, nesta seção será realizada uma breve discussão sobre a face

alienada desta concreticidade, como forma de complementar a seção anterior sobre os limites do positivismo a partir do materialismo histórico e dialético. Dadas as definições das categorias dialéticas da totalidade, mediação e contradição, cabe o retorno à discussão sobre a base da produção ideológica da moderna sociedade burguesa, que se realizaria em sua manifestação através de uma pseudoconcreticidade (KOSIK,1989) e suas relativas formas fetichistas de objetividade (LUKÁCS, 2003) enquanto momentos da aparência abstrata e reificada da realidade social do capital.

Como descrito em capítulo anterior, a ideologia pode ser entendida como uma ilusão, que tem por fundamento os mecanismos de abstração e inversão do real. Apesar de ilusória, tem uma base real, portanto, objetiva. Enquanto manifestação de uma práxis alienada teria como função ocultar o processo social de dominação, através de uma realidade aparente que encontraria sua determinação essencial na produção material da realidade. Todavia, esta produção espiritual da realidade não se reduz a mero reflexo da realidade material:

...a ideologia não é um “reflexo” do real na cabeça dos homens, mas o modo ilusório (isto é, abstrato e invertido) pelo qual representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Se a ideologia fosse um “simples reflexo” da realidade na consciência dos homens, a relação entre o mundo e a consciência não seria dialética (isto é, contraditória ou de negação interna), mas seria mecânica ou de causa e efeito. Se a ideologia fosse o espelho “ruim” da realidade, ela seria o efeito mecânico da ação dos objetos exteriores sobre nossa consciência, como a ação da luz sobre nossa retina (...) A ideologia é uma das formas de práxis social: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados da vida social, constrói abstratamente um sistema de idéias ou representações sobre a realidade (CHAUÍ, 2012, p. 114-15).

Indo além, o fenômeno da alienação - como expressão de uma realidade autônoma e fora de controle diante de um indivíduo que nela não se reconhece mais - produz uma objetividade que aparece aos sujeitos de maneira fetichizada, reificada, enquanto forma fetichista de objetividade (LUKÁCS, 2003) ou pseudoconcreticidade (KOSIK, 1989). Enquanto resultado da cisão entre pensamento e ser, esta objetividade fetichizada – que aparece “como coisas e relações entre coisas” (LUKÁCS, 2003, p.87) seria o ponto de partida da investigação do Positivismo, limitado à mera aparência que está alienada de sua verdadeira essência, ou seja, da realidade concreta do capital, da sua práxis social.

Essa mudança contínua das formas de objetividade de todos os fenômenos sociais em sua ação recíproca, dialética e contínua, e o surgimento da inteligibilidade de um objeto a partir de sua função na totalidade determinada na qual ele funciona fazem com que a concepção dialética da totalidade seja a única a compreender a realidade como devir social. É somente nessa perspectiva que as formas fetichistas de objetividade, engendradas necessariamente pela produção capitalista, nos permitem vê-las como meras ilusões, que não são menos ilusórias por serem vistas como

necessárias. As relações reflexivas dessas formas fetichistas, suas “leis”, surgidas inevitavelmente da sociedade capitalista, mas dissimulando as relações reais entre os objetos, mostram-se como as representações necessárias que se fazem os agentes da produção capitalista. Elas são, portanto, objetos do conhecimento, mas o objeto conhecido nessas formas fetichistas e através delas não é a própria ordem capitalista de produção, mas a ideologia da classe dominante (LUKÁCS, 2003, p. 85-6).

Ao mesmo tempo em que aliena, esta objetividade fetichizada expressaria - a partir das relações deduzidas entre os objetos que constitui a sua realidade aparente - a própria fragmentação real e imanente à sociedade capitalista. Portanto, a lógica da identidade e da equivalência que se apresenta nos conceitos e nas leis positivistas, seria a expressão da própria equivalência resultante da abstração do trabalho e de todos os objetos na realidade do capital sob a forma da mercadoria. A abstração do pensamento revelaria uma abstração real, a pseudoconcreticidade revelaria a essência da concreticidade.

O caráter fetichista da forma econômica, a reificação de todas as relações humanas, a extensão sempre crescente de uma divisão social do trabalho, que atomiza abstratamente e racionalmente o processo de produção, sem se preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores imediatos, transformam os fenômenos da sociedade e, com eles, sua apercepção. Surgem fatos “isolados”, conjuntos de fatos isolados, setores particulares com leis próprias (teoria econômica, direito, etc.) que, em sua aparência imediata, mostram-se largamente elaborados para esse estudo científico. Sendo assim, pode parecer particularmente “científico” levar até o fim e elevar ao nível de uma ciência essa tendência já inerente aos fatos

(LUKÁCS, 2003, p.72).

Tendo isto em vista, Kosik (1989) e Lukács (2003) apontam para a análise dialética, a partir do ponto de vista da totalidade, como meio para se “destruir” a pseudoconcreticidade ou superar as formas fetichistas de objetividade. Esta análise se definiria pelo chamado “estudo concreto”, que significaria a “relação com a sociedade como totalidade” (LUKÁCS, p. 140). Na compreensão da produção subjetiva em seu contexto histórico, objetivo, caberia ao pensamento dialético situá-la para além de sua imediaticidade, de suas relações causais aparentes, recuperando suas determinações dialéticas em seu movimento dentro da totalidade:

O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência. O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem de efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos, mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando o seu caráter mediato e apresentando, contra a sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado (KOSIK, 1989, p. 16).

A revelação de suas mediações (para além de sua imediaticidade) e o apontamento de sua função ideológica em determinada época seria, para Lukács (2003) insuficientes para a

análise dialética que, além de se ocupar destes pontos, ou seja, os limites de determinada subjetividade, também deveria apontar para o seu devir, para a sua “possibilidade objetiva”:

A relação com a totalidade concreta e as determinações dialéticas dela resultantes superam a simples descrição e chega-se à categoria da possibilidade objetiva. Ao se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação de sua vida, se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente essa situação e os interesses dela decorrentes, tanto em relação à ação imediata, quanto em relação à estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses. Reconhece, portanto, entre outras coisas, os pensamentos que estão em conformidade com sua situação objetiva (p. 141).

Estes seriam, pois, os fundamentos da análise materialista histórica e dialética de determinado fenômeno segundo seu movimento aparente, situando-lhe dentro de uma totalidade, ou em termos específicos, como parte da práxis humana.

9.7 A relação entre Psicologia e Sociologia: uma antinomia costurada

Das antinomias que aparecem ao pensamento a partir da pseudoconcreticidade burguesa - enquanto relações aparentemente naturais e deduzíveis da realidade empírica tal qual se apresenta - a oposição entre indivíduo e sociedade é uma das mais importantes, sobretudo por separar de maneira antagônica duas das suas principais ciências: a Psicologia e a Sociologia.

Conforme mostrou Adorno (1991), as dificuldades em se relacionar Psicologia e Sociologia não são derivadas de questões metodológicas ou dificuldades conceituais, tal como concebia o pensamento científico dominante, mas da cisão entre psique e objetividade na realidade concreta, efeito da alienação do indivíduo frente às cegas forças sociais. Nesse sentido, enquanto expressão de determinadas formas de objetividade à consciência, esta cisão seria a base de uma “falsa consciência”:

La separación entre sociedad y psique es falsa conciencia; eterniza em forma de categorias la escisión entre el sujeto viviente y la objetividad que impera sobre los sujetos y que, no obstante, son ellos quienes producen. Pero no se le puede quitar el terreno a esa falsa conciencia por decreto metodológico. Los seres humanos no son capazes de reconocerse a sí mismos em la sociedad, ni ésta en ellos, porque están enajenados entre sí y respecto al conjunto. Sus relaciones sociales cosificadas se eles presentam necessariamente como seres em sí mismos (p.139-40).

Nesse sentido, qualquer tentativa de aproximar metodologicamente os objetos da Psicologia e da Sociologia representaria mera harmonização formal e ideológica de um

antagonismo real entre sujeito e sociedade, cuja relação seria essencialmente reificada e alienada. Se as contradições do pensamento teórico revelariam as contradições reais, deste modo, enquanto ideologia, a teoria tradicional teria uma dupla dimensão de verdade e falsidade, por expor, de um lado, a efetiva cisão dos dois pólos ao pressupô-los como premissa indelével e, de outro lado, por buscar sua impossível reconciliação através de dispositivos metodológicos.

Pero la diferencia entre individuo y sociedad no es solo cuantitativa: así se la encara unicamente por el camino de um processo social que troquela de antemano a los sujetos individuales como soportes de su función em el proceso conjunto. Ninguna síntesis científica futura puede conseguir que se meta em el misno saco lo que está radicalmente escindido consigo mismo (ADORNO, 1991, p. 147).

A realidade da qual se defrontam aquelas ciências seria a de um sujeito resignado diante de um processo social do qual não se identifica enquanto produtor. Do mesmo modo, este processo não reconhece os homens em sua ação histórica, senão enquanto acessórios de sua própria engrenagem social. Nesse sentido, torna-se impossível a realização do indivíduo que se vê anulado61 diante do movimento de total socialização da sociedade. O triplo processo

da alienação, reificação e fetichismo mediariam a relação de um indivíduo sem subjetividade diante de uma sociedade sem sujeitos, em que a totalização se tornou a base da práxis. A sociedade é vista como regida por leis e fatores extrínsecos, enquanto o indivíduo como uma mônada isolada. De um ponto de vista dialético, o indivíduo isolado, objeto fundamental da psicologia, enquanto “puro sujeito de la autoconservación, encarna el principio más íntimo de la sociedad con respecto a la que se encuentra em oposición absoluta” (ADORNO, 1991, p.157).

Frente a uma objetividade cega que determina a abstração em todos seus outros níveis, a relação entre estrutura social e suas formas de consciência se torna determinante. Com efeito, não levaria à reprodução mecânica do social ao nível individual, mas à determinação de sua forma aparente que, no caso, seria fragmentada:

La psicodinámica es la reproducción de conflitos sociales em el indivíduo, pero no de forma tal que meramente copie las tensiones acctuales. Sino que además, al existir como algo cuajado y separado por la sociedad, esa dinâmica sigue

61 Ruy Fausto (1987) realiza uma excelente análise da noção de pressuposição do sujeito “homem”, sobretudo no

que se refere à impossibilidade deste se tornar um sujeito positivado em seu predicado. No caso, dentro do modo de produção capitalista, o homem apenas “passa no” seu predicado, que o nega enquanto determinação alienada. Por outro lado, o capital é sujeito, que se predica positivamente em seus momentos “dinheiro” e “mercadoria”, enquanto transforma o “homem capitalista” e o “homem operário” em suportes de sua reprodução. Deste modo, segundo a lógica marxiana, “o discurso teórico marxista em sentido estrito tem como objeto central não os predicados do sujeito pressuposto “homem”, mas o sujeito real “capital”, cujos predicados – suportes – reais são os predicados (negações) “do” sujeito pressuposto homem” (p.31).

desarrollando aún más desde si mísma la patogénesis de uma totalidad social sobre la que también impera la maldición de la fragmentación (ADORNO, 1991,

p.157).

Deste modo, esta abstração total implicaria na forma conhecimento da Sociologia e da Psicologia. A primeira, concebendo uma sociedade distante de sua concreticidade, regulada por abstratas leis e fatores isolados, a segunda, um indivíduo isolado da totalidade, sob sua própria lógica, e distante de sua práxis histórica.

Em síntese, a oposição entre Psicologia e Sociologia revelaria não apenas a divisão do trabalho ao nível intelectual, segundo a racionalização do conhecimento científico, mas a dupla condição do antagonismo entre indivíduo e sociedade: por um lado, ocultando o processo histórico e social que resultou na alienação entre parte e todo, ao mesmo tempo em que, ao tomá-la como premissa, o revela enquanto realidade alienada.

La separación de Sociología y Psicología es incorrecta y correcta al mismo tiempo. Incorrecta em cuanto acepta como si fuera de recibo la renuncia al conocimiento de la totalidad que ordeno esa separación; correcta en la medida em que registra la ruptura cumplida en la realidad como demasiado irreconciliable para uma precipitada unificación conceptual (ADORNO, 1991, p. 159-160).

A Psicologia Social, enquanto tentativa de ponto de intersecção entre estas duas ciências particulares, também não escapou das inevitáveis antinomias destas, tendendo ora para a falsa consciência produzida pela Sociologia, ora pela Psicologia. Especificamente, será visto que Raul Briquet encontrou um beco em saída na tentativa de costurar a cisão entre indivíduo e sociedade a partir do Positivismo e de sua premissa no método das ciências naturais.

10 O LIVRO “PSICOLOGIA SOCIAL” DE RAUL BRIQUET (1935)

Esta seção é dedicada à análise62 da estrutura do livro e de suas principais ideias,

conforme a relação entre sua forma e conteúdo, totalidade e particularidade, sujeito e objeto, mediação e contradição, conforme as categorias do materialismo histórico e dialético. Também serão realizados alguns primeiros comentários acerca de passagens do texto, para depois serem melhor desenvolvidos em seções posteriores.

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A primeira edição do livro Psicologia Social de Raul Briquet foi lançada em 1935 pela Livraria Francisco Alves: Paulo de Azevedo & CIA. Na primeira folha o autor é citado como “CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E PROFESSOR DE PSICOLOGIA SOCIAL DA ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO”. Note que, sua apresentação se dá pelos cargos acadêmicos que ocupava, revelando sua dupla vinculação tanto numa instituição médica, como noutra de Sociologia e Política. Também cabe destacar que o autor foi membro presente na fundação de ambas as instituições.

No total, o livro possui 265 páginas incluindo um “índice alfabético” com os principais termos da obra e suas respectivas páginas relacionadas, assim como um “índice de autores” segundo a mesma estrutura. Na última página há uma errata com a correção de 5 termos digitados equivocadamente.