• Nenhum resultado encontrado

Da abstração analítica ao concreto pensado: a “viagem de retorno”

A crítica à economia política na “Introdução” dos Grundrisse revela uma síntese da base metodológica do materialismo dialético de Marx - então constituído após longo percurso intelectual –e dá o contorno do objeto de investigação: a sociedade burguesa. Para tanto, o “procedimento fundante é a análise do modo pelo qual nele se produz a riqueza material” (NETTO, 2011, p.39), a produção burguesa moderna.

Em conhecida passagem do capítulo sobre “o método da economia política”, Marx descreve o percurso metodológico correto para a investigação científica, que iria do abstrato ao concreto:

Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P.ex., trabalho assalariado, capital etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relaçõesA primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc,; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise (MARX, 2011, p. 54).

Nesta passagem, Marx além de traçar o ponto de partida de sua concepção materialista e dialética, também faz a diferenciação fundamental entre realidade e pensamento, entre o concreto e o abstrato, ou seja, define sua posição investigativa crítica frente ao objeto. Assim como descrito por Lukács (2003), “o ponto de partida metódico de toda tomada de posição crítica consiste justamente na separação entre método e realidade, entre pensamento e ser” (p. 69) e, portanto, entre sujeito e objeto.

Conforme exposto acima, pela apreensão do real e do concreto, pode-se chegar por meios analíticos a conceitos e determinações abstratas mais simples: do “concreto representado” para “conceitos abstratos”. Este percurso metodológico foi adotado pela economia política e se tornou exatamente o seu ponto de insuficiência, por constatar no concreto analisado uma “representação caótica de um todo”. Segundo Marx, o trabalho

dialético fundamental é realizar “a viagem de retorno”, apreendendo o concreto como concreto pensado, ao constituí-lo a partir de suas determinações mais simples até chegar à sua efetividade real dentro de uma totalidade dinâmica. Este, pois, seria o método “cientificamente correto”:

Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento (MARX, 2011, p. 54).

Para a realização da tarefa de ir do mais simples ao complexo, é fundamental o procedimento da abstração, momento analítico primordial. Dentro do percurso metodológico do materialismo dialético apresentado nos Grundrisse, Dussel (2012) define cinco passagens centrais: “a abstração das determinações; a elevação dialética do abstrato ao concreto, a construção sintética do todo concreto; a problemática em torno das categorias; (...) o plano das investigações” (p. 49).

Se o início do trabalho de investigação é o concreto real, cabe distingui-lo da primeira representação que se tem dele, da “representação plena” e “caótica” (daí a necessidade de separar o real – enquanto exterioridade - do pensado). A partir desta representação plena é que se dará o trabalho analítico da abstração:

O ato da abstração é analítico no sentido de separar da `representação plena´um a um os seus múltiplos conteúdos noéticos (momentos da realidade da própria coisa); separa uma parte do todo e a considera como todo. Considerar uma “parte” como “todo”, pela capacidade conceptiva da consciência, constitui a essência da abstração

(DUSSEL, 2012, p.52).

A abstração ao separar o “conteúdo noético” da “representação plena”, define as múltiplas determinações da coisa. Determinações estas que são momentos reais, mas que pelo trabalho analítico se tornam momentos do pensamento, reproduções do real agora conceptualizado. Este duplo trabalho da abstração (separar e produzir determinações) tem início sobre essa primeira “representação plena” e “caótica” e não sobre o real concreto, portanto, é posterior a esta representação inicial. Assim, “a representação é ´volatilizada` na

determinação abstrata; desaparece como representação plena, é negada metodologicamente – no momento, analiticamente” (DUSSEL, 2012, p.52).

Posto que a representação inicial é ainda um momento pré-analítico, resultado de uma forma fetichista de objetividade (LUKÁCS, 2003), o primeiro passo metodológico é exatamente depurá-la em suas determinações abstratas, das mais simples às complexas. Daí o interesse de Marx sobre o “trabalho em geral”, abstrato, como categoria simples, para se pensar a economia da moderna sociedade burguesa.

O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ´trabalho` é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples relação (MARX, 2011, p.

54).

Após o trabalho analítico da abstração de “fixar” as determinações, cabe elevá-las do simples ao complexo, da parte ao todo, do abstrato ao concreto, que seria o trabalho sui generis do método dialético:

O método dialético consiste em situar a ´parte`no ´todo`, como ato inverso ao efetuado pela abstração analítica. A abstração parte da representação (todo pleno) e chega à determinação abstrata (clara, mas simples). O ato dialético parte da determinação abstrata e constrói sinteticamente uma totalidade – concreta em relação à determinação, abstrata em relação à totalidade concreta explicada

(DUSSEL, 2012, p.53).

Neste sentido, o estudo da “produção” como uma determinação simples (que também possui suas determinações internas), levou Marx a relacioná-la a outras determinações simples (distribuição, troca e consumo) e - a partir da relação estabelecida entre estes diferentes momentos - realizar o trabalho teórico de sintetizar uma nova totalidade, um concreto com “múltiplas determinações”. Sendo um momento do processo geral do pensamento, o movimento dialético segue um duplo caminho:

Por uma parte, maneja as determinações (claramente definidas como “conceitos”, eles mesmos “construídos” enquanto essência pensada com determinações internas) e as relaciona mutuamente entre si (produção – consumo, p. ex.), codeterminando-se mutuamente, Deste modo, os “opostos” se codefinem. Num segundo momento, constitui-se sinteticamente com eles uma nova totalidade que adquire autonomia (é a totalidade articulada com múltiplas determinações). Levados a este nível concreto o que antes aparecia como opostos (produção e consumo), agora eles fazem parte de uma ´unidade`que os compreende e explica (DUSSEL, 2012, p.54).

Como citado anteriormente por Marx (2011), o “mercado mundial” seria o último nível de construção da totalidade e – tomando o exemplo da “população” – a partir deste

limite, deveria ser realizada a “viagem de retorno” à “população” só que agora construída segundo suas “múltiplas determinações”.

Por meio desse movimento de “ascenso” e “descenso” dialético, torna-se fundamental o momento de explicação categorial, de definição da ordem dos conceitos ou categorias então realizados pelo trabalho da abstração, entendidos como “formas de ser” da totalidade real que é a moderna sociedade burguesa. Assim:

No real, as determinações são momentos da sua existência, formas de ser da própria sociedade. Enquanto abstratas, são já fruto de um ato analítico de separação metodológica. As determinações abstratas, enquanto definidas, são “conceitos” e, enquanto “instrumentos” ou “mediações” interpretativas, são categorias. A ordem que estas guardam entre si é a própria ordem real que guardam as determinações como momento da realidade da sociedade burguesa concreta (DUSSEL, 2012,

p.53).

Os momentos metodológicos fundamentais do materialismo dialético podem, assim, ser explicados da seguinte maneira: do concreto real (mundo externo), formular-se-ia por um processo de totalização uma representação plena (ainda inicial, abstrata, uma totalidade ainda caótica). Pelo trabalho da abstração se chegaria às suas determinações abstratas (em que se realizaria o trabalho de categorização e conceptualização) e, a partir delas, o processo de síntese a uma totalidade construída (concreta) em geral. Este seria o momento do “ascenso dialético”. No entanto, é necessário o caminho de “retorno”, o retorno explicativo, ou seja, o momento da “explicação categorial” que - a partir das categorias explicativas então sintetizadas - chegaria à totalidade concreta histórica explicada e, por fim, à realidade conhecida novamente (exterior) (DUSSEL, 2012, p.51). Cabe lembrar que não foi atribuição de Marx a realização de um tratado metodológico para a identificação destes diferentes momentos; antes, foram “reflexões ´ao correr da pena`” (ibidem, p.55).

A posição de Marx a respeito da ordem das categorias para a análise concreta da realidade lhe pôs em choque com as posições de Hegel e Proudhon sobre a relação entre as sucessões dessas categorias na história (real) e no pensamento lógico-teórico (abstração). Se para o primeiro as duas se assemelhavam (pensamento produzindo a realidade60), já o último

as separava absolutamente. Para Marx - em oposição a ambos - o ponto de partida deveria ser a totalidade real e concreta:

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna

sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão das diferentes formas de sociedade. Muito menos de sua ordem “na ideia” (...) Trata-se, ao contrario, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa

(MARX, 2011, p. 60).

Portanto, a disposição ordinal das categorias no pensamento teórico, apoiado na realidade concreta, “deve estar determinada por sua posição sincrônica e essencial na moderna sociedade capitalista” (DUSSEL, 2012, p.56-57). Além disso, o entendimento e a apreensão da dinâmica dessa totalidade permite a compreensão de momentos históricos anteriores sem, no entanto, cair nas “robinsonadas” da economia política, que generalizava e naturalizava a sociedade burguesa para outras épocas.

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se (...) A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida (DUSSEL, 2012, p. 58).

O conceito de “trabalho em geral”, tão utilizado por Marx, é resultado de um processo de uma abstração tanto “espiritual”, quanto “concreta”. Como determinação abstrata, constitui-se como essência do “trabalho” a partir de sua análise teórica. Por outro lado, a abstração do “trabalho” como “trabalho em geral” também é um resultado objetivo:

...essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo de trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente (...) tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna (ibidem, p.58)

Antes de constitui-lo como categoria econômica, é necessário definir o “trabalho” enquanto conceito, a partir da análise de suas determinações abstratas mais simples – ou seja, enquanto “trabalho geral”, “determinação essencial abstrata” do trabalho, sua “laboriosidade essencial abstrata” (DUSSEL, 2012).

A partir do procedimento de elevar as categorias “mais simples” às mais “complexas”, tendo em vista sua relação sincrônica com a sociedade burguesa moderna, cabe a discussão do eixo diacrônico da análise da ordem das categorias na história. Em passagem dos Grundrisse, Marx (2011) cita que a categoria “renda da terra”, olhada por um ponto de vista histórico cronológico, seria a categoria econômica mais simples pelo fato da agricultura ser a forma de

produção universal desde as mais antigas formas de sociedade. No entanto, sob a moderna sociedade burguesa, a categoria “capital” é anterior a ela, “já que a funda e a explica teoricamente (sincronicamente)” (DUSSEL, 2012, p.59). Na sociedade burguesa, “a agricultura devém mais e mais um simples ramo da indústria, e é inteiramente dominada pelo capital. O mesmo se dá com a renda da terra” (MARX, 2011, p.60). O capital, como totalidade de todas essas determinações, é para Marx (2011) ser e essência da sociedade capitalista (DUSSEL, 2012):

O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de cada um, é necessário examinar sua relação recíproca (MARX, 2011, p. 60)

Portanto, para além da sucessão histórica das categorias, a análise deve contemplar a relação que as categorias assumem na sociedade burguesa, em sua reciprocidade dialética. É assim que...

as categorias mais simples (determinações abstratas ou conceitos construídos) pode, por sua parte, constituir categorias mais complexas (assim, a categoria trabalho pode constituir um suposto da categoria dinheiro e esta, por seu turno, constitui um suposto do capital). E as categorias mais complexas ou concretas (“totalidade construída em geral”)(...) podem explicar, mediante as categorias que as compõem (por exemplo, “capital constante” ou “capital variável”), a “totalidade concreta histórica explicada” (...), a moderna sociedade burguesa. As categorias são assim, elementos ou mediações de construção (constituição) ou explicação – momentos hermenêuticos essenciais do método (DUSSEL, 2012, p.60).

Em síntese, na “Introdução” dos Grundrisse, Marx delimitou de forma mais precisa não apenas o objeto e o método de sua pesquisa, como definiu as categorias de análise e seu consecutivo ordenamento na investigação, apesar das mudanças posteriores que ocorreram na estrutura da obra até sua plena realização n´O capital, assim como a parte “incompleta” sobre o Estado, o mercado mundial, etc. Contudo, é evidente no livro a preocupação de Marx com a apresentação das categorias e o cuidado com a descrição de seu percurso que vai das categorias mais simples às mais complexas.

Pretende-se, nesta pesquisa, a execução do mesmo percurso quanto à análise da produção intelectual da Psicologia Social no Brasil, para tanto, buscar-se-á primeiramente a definição de categorias de análise e, em seguida, a compreensão das relações que estas estabelecem entre si.

9.5 Totalidade, mediação e contradição: as três categorias fundamentais da análise