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Sumário

V. Estrutura da dissertação

1 Capítulo A construção do estilo Kondur

1.1 A cerâmica “Uaboí”

O Baixo Amazonas foi uma das primeiras áreas estudadas arqueologicamente no Brasil, ainda no século XIX. Entre os materiais coletados, os muiraquitãs e as estatuetas líticas ganharam maior notoriedade nos estudos americanistas. Esses artefatos líticos foram logo incluídos em debates amplos sobre migração e difusão no continente americano (BARBOSA RODRIGUES, 1899; FONSECA JÚNIOR, 2010; PORRO, 2010). A cerâmica arqueológica do Baixo Amazonas, ao contrário, quase não despertou interesse entre os pesquisadores pioneiros da época, com exceção de Barbosa Rodrigues (1875b, 1876). O primeiro rótulo para as cerâmicas encontradas na região dos rios Trombetas e Nhamundá não foi baseado em uma classificação de artefatos, mas em associações com informações etno-históricas e história oral.

O naturalista João Barbosa Rodrigues buscou identificar, durante seu mapeamento geográfico dos rios Trombetas e Nhamundá, os vestígios arqueológicos correlatos às narrativas das crônicas coloniais e de informantes indígenas, como a das “Amazonas”. As descrições dos sítios arqueológicos e de artefatos líticos e cerâmicos foram as primeiras a ser publicadas sobre o Baixo Amazonas (BARBOSA RODRIGUES, 1875b). Outros naturalistas que passaram pela região do rio Trombetas apenas mencionaram a existência de cerâmica indígena arqueológica (PENNA, 1877; DERBY, 1898).

Barbosa Rodrigues não construiu uma classificação dos materiais encontrados, apenas a relação com etnônimos. Essa tentativa gerou a primeira identidade material da cerâmica encontrada entre os rios Trombetas e Nhamundá (ver FERREIRA, NOELLI, 2009). A correlação feita era direta e não era considerada a diferença cronológica entre as ocupações indígenas na região, nem se detém sobre as características dos objetos. Na ilha Paru, no rio Amazonas, entre as cidades de Óbidos e Santarém, Barbosa Rodrigues encontrou um sítio arqueológico de terra preta com cerâmica arqueológica, onde supôs ter vivido a “tribo” identificada pelos cronistas coloniais como das “Amazonas” (1875b, p. 89-91). No baixo curso do rio Trombetas, na Serra de Conuri, menciona ter encontrada cerâmica que teria sido produzida pelos “antigos Cunurys e Uabóys”, conhecidos nas crônicas do século XVII e XVIII (BARBOSA RODRIGUES, 1875a, p. 9). No baixo rio Nhamundá, ele identificou um sítio com cerâmica arqueológica que associou aos “Uabóys” a partir da interpretação do indígena Antonio Henrique, que o acompanhava na missão do mapeamento do rio Nhamundá: “Julgo que pertencia á dos Uabóys, porque não só o velho Antonio, como outros filhos de Uabóys, a quem mostrei depois, disseram, que outr‟ora seus pais usavam louça com o feitio da de que trato.” (BARBOSA RODRIGUES, 1875b, p. 38).

A estratégia de combinar narrativas indígenas a pesquisa arqueológica, apesar de não ter sido comum na arqueologia no Brasil imperial, era frequente no Sudoeste dos Estados Unidos (FOWLES, MILLS, 2017). O termo “Anasazi”, por exemplo, utilizado para denominar uma cultura arqueológica daquela região, foi obtido com indígenas Apache, que trabalharam em pesquisas de campo no final do século XIX (COLWELL- CHANTHAPHONH, 2009). Infelizmente, não há muita informação sobre o indígena Antonio Henrique e quais os significados da identificação da cerâmica com o passado

dos Uaboí. As informações acerca desse etnônimos são ainda muito escassas. A primeira menção conhecida de uma variante, “BaBuhi”, data de 1725, mas não há nenhuma indicação além do próprio termo (PORRO, 2010). Protásio Frikel, na década de 1950, relata que questionou indígenas do rio Nhamundá sobre o etnônimo “Wabuí”. Ela afirma que „[r]iram e responderam: „Somos nós, daqui, do Nhamundá. Os Chawiyána, Hichkaruyána, Kuiyána... todos eles são Wabuí‟.” (FRIKEL, 1958, p. 128). Os critérios de identificação acionado pelo indígena Antonio pode não ser equivalente a perspectiva arqueológica e essa complexidade conceitual não foi considerada por Barbosa, á época. No caso dos Asurini do Xingu, por exemplo, a cerâmica identificada como não-Asurini é relacionada a ação de Anumaí, um demiurgo dos tempos míticos (SILVA, 2002, 2015; GARCIA, 2017).

A primeira denominação, dada por um pesquisador, para as cerâmicas arqueológicas não delimitava um conjunto material específico. O estudo de Barbosa Rodrigues teve pouca repercussão nos estudos posteriores, com exceção de um único trabalho. João Barbosa de Faria, etnólogo da Comissão de Inspeção de Fronteiras, em 1928, realizou uma expedição etnográfica e coletou cerâmica arqueológica em Óbidos, Oriximiná e ao longo do rio Trombetas. A partir desse material publicou um estudo na década de 1940, o primeiro a tratar especificamente da cerâmica encontrada na bacia do rio Trombetas (FARIA, 1946). A discussão desse trabalho se focou principalmente em uma associação especulativa das figurações cerâmicas e interpretações sobre a cosmologia Muisca (ou Chibicha) da Colômbia. Apesar de o autor não explicitar o motivo dessa escolha, é provável que ele seguisse a indicação feita por Konrad Preuss, de que as esculturas líticas de San Agustín apresentariam semelhanças estilísticas com os “ídolos de pedra” encontrados no baixo Trombetas (FONSECA JÚNIOR, 2010). Uma das conclusões do autor, por exemplo, era que “[e]m virtude de suas afinidades religiosas com os povos Chibcha [identificadas a partir das esculturas cerâmicas], os Uaboí devem ser considerados um ramo dessa raça” (op. cit., p. 24). O autor interpretava a elaboração da “arte cerâmica” como resultado da uma influência andina, seguindo o legado do conceito de “degeneração” dos povos indígenas (FERREIRA, NOELLI, 2007).

Poucas descrições foram feitas do material e do contexto de coleta na região do rio Trombetas. Seguindo Barbosa Rodrigues, Faria considera o material encontrado

como “cerâmica da tribo Uaboí”. O autor ainda afirma que “Uaboí” era uma denominação genérica de tribo “constituída por cinco hordas ou clãs denominados – Uaboí, Conuri, Querena, Paracoimã e Paracuatá” (op. cit., p.6). Essa é uma leitura equivocada do trecho em que Barbosa Rodrigues menciona “tribos” ou “nações” – e não clãs – que teriam sido reunidas em um aldeamento na foz do rio Nhamundá (BARBOSA RODRIGUES, 1875b. p. 22). Não há nenhuma discussão, nem embasamento documental, para a associação mantida por Faria.