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Sumário

III. Estudo de coleções

As coleções de museu foram à base do conhecimento arqueológico do final do século XIX e início do XX. Grandes conjuntos de peças inteiras e elaboradas, reunidas por arqueólogos e colecionadores, chegaram aos museus e foram objeto das primeiras pesquisas arqueológicas. A necessidade de explicar o contexto e sua espacialidade levou ao desenvolvimento de métodos e técnicas para criar amostras melhor controladas. As coleções, ao longo do século passado, tornaram-se cada vez menos atrativas devido à ausência de informações de contexto. A dificuldade de precisar qual a representatividade da coleção em relação ao conjunto total é o principal problema apontado em relação a esses materiais. Como destaca Angela Huster (2013, p.77), existe uma relação de “amor e ódio” com as coleções: ao mesmo tempo em que faltam as referências de contexto, as coleções geralmente apresentam grande quantidade de objetos raros e íntegros.

Huster (op. cit., p. 78) menciona três modos em que se costuma estudar objetos de coleções de museu em arqueologia: (1) aplicação de novos métodos de análise; (2)

estudos descritivos de peças únicas ou raras; (3) estudo de um conjunto de artefatos como uma unidade coesa. As duas primeiras formas de análise são bem aceitas e geram menos problemas sobre a representatividade da amostra. O conjunto de artefatos tratados como uma unidade, no entanto, pode gerar distorções dependendo da documentação existente sobre a coleta e se existe uma maneira de identificar os vieses da amostra. Uma das maneiras de realizar um estudo mais controlado das coleções é considerando apenas uma classe de artefatos e comparando suas variáveis. A seleção de peças realizada pelo colecionador/coletor pode ser avaliada e suas potencialidades explicitadas. As coleções não podem ser abandonadas nas reservas técnicas, salienta Huster, sem que se discuta como poderiam contribuir para os estudos arqueológicos.

Na arqueologia brasileira tem havido um crescente interesse por estudos de coleções museológicas. Estão sendo feitas tentativas de analisar com novos métodos físico-químicos antigas coleções (FREITAS et al., 2009); análises descritivas de conjuntos de peças raras (FONSECA, 2010; PORRO, 2010; ALVES; PROUS, 2016); e também estudos de conjuntos coesos de artefatos (PROUS, 2010; PROUS; LIMA, 2012; BARRETO, 2009; NEVES, 2008; BARBOSA, 2011; CORRÊA, 2014, OLIVEIRA, 2016; NOBRE, 2017, etc.). Nos estudos de arqueologia amazônica essa tendência tem se direcionado a iconografia, valendo-se especialmente dos elementos figurativos e correlações com cosmologias indígenas contemporâneas. Esses trabalhos mostram a potencialidade das coleções e a necessidade de abordar os materiais para além dos modelos classificatórios tradicionais. Pouco se tem refletido, no entanto, sobre os vieses das coleções de museu, sendo uma exceção o artigo de Scatamacchia et

al. (1996) e outros artigos publicados, até 2006, na seção de “Estudos de Curadoria” da Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia.

Existem coleções com quantidades variadas de peças Konduri em diferentes instituições no Brasil e em algumas do exterior – particularmente no Museu da Cultura Mundial em Gotemburgo, Suécia. Muitas das peças Konduri, pertencentes a essas coleções, nunca foram estudadas e outras foram estudadas há décadas atrás, a partir de metodologias pouco sistemáticas. É notório, por exemplo, a existência de duas coleções reunidas por Peter Paul Hilbert no Museu Paraense Emílio Goeldi - uma reunida com colaboração de Harold Schultz em 1953 cujos resultados nunca foram publicados. Outras coleções, reunidas por ribeirinhos e eruditos locais chegaram a museus e

colocam uma maior complexidade, uma vez que quase não se dispõe de informações contextuais e as peças de áreas muito distintas foram colocadas juntas.

As coleções museológicas, fonte inesgotável de peças “típicas”, não podem ser desconsideradas por sua “descontextualização”. A falta e a limitação, normalmente associada a esses materiais, podem ser revertidas em uma perspectiva regional e as informações do processo de colecionamento permitem inferir, em muitos casos, áreas distintas e/ou os sítios em que foram realizadas as coletas. Comparações exploratórias podem ser delineadas, bem como o desenvolvimento de novas hipóteses. Os resultados da pesquisa permitem estabelecer caracterizações tecnológicas e proposições sobre variações locais.

As coleções de museu são “híbridos” de objetos feitos no passado pré-colonial e a seleção e disposição modernas. Não é possível separar a materialidade dessas de seus agenciamentos recentes e sua hibridez (LATOUR, 1994). As pesquisas que ignoram completamente esse fato acabam por reduzir as informações sobre os materiais estudados; toda a cadeia de formação das coleções é importante para avaliar as possibilidades interpretativas sobre o passado pré-colonial. A seleção e a história acumulada por esses conjuntos de objetos influenciam fortemente o conhecimento científico. Em uma região como o Baixo Amazonas, em que muito do conhecimento arqueológico foi gerado a partir do estudo de coleções, uma posição reflexiva sobre o papel da seleção de artefatos por diferentes atores sociais é fundamental. Não é a proposta explicar as “coleções em si”, mas ao longo da pesquisa tornou-se patente a necessidade de compreender e reconhecer como o colecionismo é parte constitutiva do conhecimento gerado e que é preciso avaliar seus efeitos na amostra disponível para estudo e nas proposições feitas por outros/as pesquisadores/as.

Uma perspectiva biográfica das coleções permite compreender a formação de algumas das questões levantadas em torno do estilo Konduri, informando tanto do passado mais recuado quanto o mais recente (KOPYTOFF, 1986; PEARCE, 1995; GOSDEN, MARSHALL, 1999; HAMILAKIS, 1999; HOLTORF, 2002). É preciso reavaliar o conhecimento gerado em relação às pesquisas recentes, sem descartar por princípio as proposições desenvolvidas a partir dos estudos de coleções nem assumi-las completamente. Nesse sentido, esta dissertação é um retorno ao estudo de coleções de

cerâmica Konduri, que tenta integrar informações de coleções reunidas por diferentes pessoas, com diferentes interesses e em locais distintos. O estudo comparado de coleções permite contrapor os modos de seleção e a “imagem” que eles produzem. Quais são seus vieses? O quanto é possível apreender do conjunto Konduri a partir dessas coleções? As análises de materiais coletados sistematicamente realizadas nos últimos anos (GUAPINDAIA, 2008; CHUMBRE, 2014; PANACHUK, 2016a) permite contrapor preliminarmente as coletas intensivas e não seletivas às extensivas e seletivas. Por sua vez, o estudo de peças mais elaboradas, raramente encontradas por arqueólogos/as em contexto, permite uma complementação do amplo conjunto de dados dos materiais coletados em escavações sistemáticas.