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Sumário

Mapa 1. Mapa feito por Nimuendajú sintetizando a distribuição dos estilos Tapajó e variantes no rio Arapiuns e Monte Alegre (vermelho) e Kondurí (azul) no Baixo Amazonas É indicada com círculo vermelho a Serra de Parintins, como limite da ocorrência de fragmentos do estilo Tapajó associado ao Kondurí e outros estilos próximo ao rio Xingu Em azul o autor indica áreas

2 Capítulo A formação das coleções e o seu legado

2.3 Artefatos em diáspora

2.3.1 Belezas emaranhadas

As coleções reunidas entre o século XIX e primeira metade do XX no Baixo Amazonas foram constituídas pelo critério difuso de “beleza”. Os sentidos que essa concepção estética podem assumir dependem do agenciamento desses materiais por diferentes habitus, contexto e instituições. A percepção de membros das comunidades tradicionais é marcadamente diferente da compartilhada pelos colecionadores de “arte”. São modos de avaliação que podem selecionar os mesmos objetos, sobrepondo os desejos de cada ator, mas ainda divergindo sobre seu valor, ontologia e história.

Figura 21. Gargalo com pintura de esmalte de unha roxo da coleção doméstica da senhora Laudelina (Comunidade de Ajará, Lago Sapucuá) na cidade de Oriximiná. Foto: Marcony Alves, 2014.

A maioria das coleções de pequena escala - com exceção das reunidas por professores locais - é produzida fora de um habitus letrado, compartilhado por “curiosos”, colecionadores, artistas, etnólogos, arqueólogos e, muitas vezes, turistas. As associações dos materiais feitas por ribeirinhos, quilombolas e indígenas são muito

variadas e combinam formas onto-epistemológicas não modernas. Em alguns casos, por exemplo, não é reconhecida sua produção humana, mas sim, uma criação “divina”, “mítica” ou “natural” (LIMA et al., 2013; ver também SILVA, 2015). A potência agentiva xamânica dos materiais também podem ter efeitos sobre a condição de quem se relaciona com eles (JÁCOME, 2017). Em toda a Amazônia, fora dos âmbitos letrados, as narrativas em torno da cerâmica e outros objetos partem de concepções variadas do que, em termos arqueológicos, é caracterizado como artefato datado de um período específico (BEZERRA, 2011, 2013; CABRAL,2014; ROCHA et al., 2014).

A categoria “careta” (além de suas variações, “carinha” e “caretinha”) é fundamental para as comunidades ribeirinhas para descrever as modelagens zoomorfas e é extremamente disseminada na Amazônia brasileira. A possibilidade de reconhecer um rosto humano ou de um animal nas modelagens tornam elas especialmente atraentes. Os principais elementos para a seleção dos objetos para a composição de coleções de pequena escala são critérios visuais como morfologia padronizada, brilho, pintura, elementos plásticos e figurativos. Essas características do design dos artefatos são agrupadas dentro da categoria de “bonito” (SILVA, 2015). A partir desse critério são reunidos objetos distintos, que em termos arqueológicos, seriam atribuídos a diferentes períodos, como fragmentos pré-coloniais e um fragmento de garrafa de grés. Da mesma maneira, objetos naturais, como um seixo de rio, podem ser mantidos em uma coleção porque se assemelham a uma forma humana ou animal. O interesse pelos elementos visuais das peças leva muitos ribeirinhos coletores de peças a modificá-las, adicionando camadas de “embelezamento”, como pinturas, incisões, amarrações, etc (Figura 20).

Na Aldeia Santidade, em que vivem indígenas Wai Wai e outras coletividades Karib, um indígena pintou um aplique em forma de cabeça de ave com as cores que aludem ao animal a qual a figuração é relacionada (JÁCOME, 2011, p. 471). Essa peça teve um cordão inserido em seu orifício formando um colar. Prática semelhante foi vista em peças coletadas por dona Laudelina, no Lago Sapucuá, que pintou algumas peças de sua coleção com esmalte de unha roxo (Figura 21). Os materiais arqueológicos também são mobilizados no cotidiano, como lâminas de machado usadas como peso de porta (TROUFFLARD, 2012). O conhecimento sobre as práticas de colecionamento de pequena escala na Amazônia ainda são limitados. Novos estudos são necessários para

pensar na articulação do colecionismo praticado em cidades e parte de elementos centrais do ethos moderno.

Figura 22. Quadrantes sugeridos por Pearce como articuladores da classificação de objetos no pensamento ocidental moderno

A constituição de coleções de larga escala se vincula ao modo de colecionar denominado de “fetichista” por Pearce (1993). Uma das principais características desse modo de colecionamento considerado “sério” é a reunião de objetos com um valor artístico, científico e/ou econômico, reconhecido por instituições e especialistas. No caso das coleções de cerâmica arqueológica, a mesma ênfase em peças decoradas, encontradas nas coleções de pequena escala, tem papel decisivo nas grandes coleções. Esse interesse é parte de um habitus das classes médias e altas urbanas, interessada em artes e antiguidades, que se desenvolveu a partir do interesse por objetos greco- romanos. Frederico Barata exemplifica essa situação muito bem: fazia parte dos mais altos círculos artísticos e intelectuais do país, em meados do século passado, ter um

retrato pintado por Portinari e escrever um livro sobre o artista Eliseu Visconti (ROSA, 2008). A partir desse conhecimento e relações estabelecidas é possível “reconhecer” o valor das “caretas” para as ciências e artes.

A composição das coleções tanto particulares como de museus compartilha da lógica ocidental que opõe arte/artefato e autêntico/inautêntico (CLIFFORD, 1988; PEARCE, 1995). Separam-se os objetos do cotidiano (artefatos espúrios), dos objetos etnográficos e arqueológicos (objetos autênticos para o conhecimento), das réplicas e souvenires (obras-primas espúrias) e de objetos de grande importância (obras-primas verdadeiras)(Figura 22). Subjaz a esse modo de classificação, especialmente em arte, um princípio de avaliação estética de todas as produções materiais humanas. Entre as “verdadeiras” obras de arte são incluídas pinturas e esculturas do Ocidente moderno, mas também peças da Antiguidade clássica, consideradas centrais para o cânone da história da arte, desde o século XVIII (ver JECKINS, 1992). Os objetos produzidos fora desses contextos também são avaliados a partir do esteticismo universalista euro- americano, dependendo do contexto em que são apresentados (PRICE, 1986; GELL, 1992). Tanto objetos arqueológicos quanto etnográficos podem ser convertidos em “arte primitiva” a partir de mercados especializados ou museus (STOCKING, 1985). Essa vinculação, no entanto, não é direta e está sujeita a flexibilização da estética clássica (WILLIAMS, 1985). O interesse por muitos dos artefatos de povos não ocidentais se relaciona às tensões e aos padrões estéticos no final do século XIX e início do XX. O “primitivismo” que contagiou vanguardas europeias teve efeitos sobre o modernismo brasileiro e a avaliação dos artefatos arqueológicos. Manoel Pastana, que desenhou peças Santarém e Konduri para publicações de Barata e Hilbert, foi um expoente de uma vertente artística paraense interessada em objetos arqueológicos (ver LINHARES, 2011; MARTINS, 2017). Artistas como Cânido Portinari, Petrônio Bax e Abelardo Rodrigues, colecionaram alguns exemplares de cerâmica Santarém e/ou Marajoara.

Nas coleções particulares e de museu, as vasilhas de cerâmica Santarém foram deslocadas da sua condição de artefatos arqueológicos ao status de obra de arte. A divisão entre o “mero artefato” e a “obra- prima”, no caso de artefatos não ocidentais, é fundamentada na avaliação estética dos objetos, convertida em linha evolutiva do “simples” ao “complexo”. Os esquemas de valoração do “Outro” no tempo e no espaço seguem um princípio de valorização do que mais parece com “Nós”, hierarquizados e

“complexos” (PEARCE, 1995). Essas formulações evolucionistas tem um longo processo dentro da história da arte, com o desenvolvimento do ideal de beleza grega no século XVIII por Johann Wickelmann (JENKINS, 1992; DIETLER, 2005). No mesmo sentido, Hartt (1885, p. 96) defendeu que “[p]ode-se classificar as tribos e as nações [ameríndias] pelo estado de progresso em que se acha a sua arte ornamental”. Em linhas gerais, as produções materiais de “grandes civilizações” estão mais próximas da “arte”, como a dos impérios andinos e mesoamericanos. A elevação e interesse pela “arte” marajoara se sustenta a partir da mesma forma de atribuir valor, desde as primeiras coletas e descrições realizadas por Frederich Hartt (LINHARES, 2011, 2015). Como explicita Métraux (1959), o que chamou a atenção para o Marajó foi o “haut niveau de civilization” indicado pelas urnas funerárias. O mesmo ocorreu com a cerâmica de Santarém, que foi mais enfatizada em relação a encontrada em Monte Alegre e no rio Trombetas. A “beleza” das peças de Santarém, sua “superioridade”, permitiu que essa cerâmica ganhasse um espaço dentro da “arte pré-colombiana” em museus e coleções particulares, como a Barbier-Muller.

A arte oleira da “segunda grande civilização amazônica” tornou-se, assim objeto de desejo e fascinação para as coleções particulares e de museus. É provável que depois da cerâmica Marajoara, a Santarém tenha sido a segunda mais colecionada, mesmo com o sucesso das urnas Maracá e Cunani (Aristé), décadas antes. A frequente comparação entre os dois estilos cerâmicos a partir de um vocabulário que emula a história da arte resulta desse processo de avaliação estética e colecionamento. Gastão Cruls (1942, p. 194), por exemplo, afirmou que “A cerâmica tapajônica está para a marajoara como o estilo barroco está para o clássico”. Frederico Barata, por sua vez, não apenas estabeleceu uma comparação, como tentou inverter a “superioridade” artística marajoara em relação a Santarém: “Não hesito em afirmar que, como manifestação de arte, é a cerâmica de Santarém muito mais importante do que a de Marajó.”37

A associação direta da “arte indígena” apenas com a cerâmica Marajoara seria o resultado, segundo Barata, da profusão de estudos arqueológicos sobre o tema e as apropriações artísticas dos padrões pintados na cerâmica, tanto no Brasil quanto na Europa. A justificativa para a maior importância da “cerâmica de Santarém” seria a maior “evolução” técnica que as modelagens representariam em relação às pinturas. A

37

BARATA, Frederico. Os animalistas de Santarém. O Jornal. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1942, Segunda Seção, p. 1-2.

tendência a equacionar “progresso da arte ornamental” do qual falava Hartt (1885) permeia todo o discurso de Barata. Essa perspectiva ainda está viva nas relações estabelecidas com objetos não modernos, mesmo por praticantes da arqueologia. Ribeiro (2016), por exemplo, mostra os problemas gerados pela descrição de um estilo cerâmico como “simples”, que sustentam a visão de um “baixo desenvolvimento cultural” no extremo Sul do Brasil. A equivalência da elaboração de algumas técnicas com “complexidade social” é o outro extremo da mesma equação evolucionista. Como o legado do conceito de “degeneração” ainda presente na arqueologia amazônica (NOELLI, FERREIRA, 2007), o peso das noções de “arte”, “civilização” e “progresso” ainda reverberam nos estudos arqueológicos.

A concepção de arte e sua separação de meros artefatos cotidianos, desde o Renascimento, fazem parte de modo aristocrático de ordenar o mundo e constituir um certo habitus. O modo de reconhecer arte é parte das hierarquias que separam os conhecedores daqueles que não são (PRICE, 1986). As produções materiais da antiguidade greco-romana foram o primeiro conjunto a ser deslocado para esse espectro interpretativo, a partir do Renascimento (DIETLER, 2005). O englobamento de outras “artes”, no entanto, foi contínuo, a partir da própria expansão colonial do ocidente. A herança do classicismo e da identidade euro-americana foi atualizada nas cerâmicas amazônicas, como a Marajoara e Santarém. A tendência de equacionar as “belas” cerâmicas a “civilizações” faz parte de uma matriz de pensamento interessada num passado “nobre” da Nação, tal qual Ferreira (2002, 2007) argumenta ter sido fundamental para o pensamento das elites do período imperial. Como bem o autor (2002, p.67): “O índio [dentro da arqueologia nobiliárquica] seria um grego agora nu”. A estratégia discursiva no século XIX, analisadas pelo historiador foi a de aproximar o passado pré-colonial do atual território brasileiro às “civilizações” mediterrâneas ou a origens bíblicas. Na primeira metade do século XX, essas associações foram desqualificadas, mas a premissa de equacionar “beleza” a maior nível de desenvolvimento social permaneceu. Sua mobilização na forma de coleções para Museu Nacional e Museu Goeldi durante a Era Vargas foi mais uma tentativa de associar a nação brasileira a uma grande arte ancestral. A analogia estabelecida entre as cariátides gregas e um tipo de vaso de Santarém faz parte do interesse em converter essas peças em “arte”. Barata não conseguiu inverter o legado do “Marajoara-mania”, mas, como

mostram publicações, catálogos e exposições, por meio da cerâmica Santarém a “civilização tapajônica” se estabeleceu entre as artes amazônicas.

A metáfora construída por Candance Slater (2002) de “édens emaranhados” (entangled edens) para sintetizar o complexo jogo de imagens e relações como a Amazônia pode ser útil para pensar as coleções e os diferentes atores envolvidos em sua formação e circulação. Slater mostra como coexistem paralelamente as grandes narrativas, como a do El Dourado e suas versões contemporâneas de busca por riqueza, e as narrativas locais de ribeirinhos, quilombolas e indígenas que vivem diariamente em contato com a terra amazônica. De maneira similar, as coleções de cerâmica arqueológica do Baixo Amazonas (e talvez de toda a Amazônia) poderiam ser descritas como “belezas emaranhadas”. Virtualmente todas as coleções reunidas fora do contexto de escavações arqueológicas sistemáticas apresentam um mesmo critério difuso norteado pela “beleza”. As modelagens pré-coloniais agem na produção de relações estéticas, que ora se associam ao “Belo” aristocrático e civilizatório, ora se convertem em “bonito” que serve de brinquedo e decoração da casa. Os materiais circulam em cadeias, unindo conceitos distintos de beleza, ontologias e classes sociais distintos.