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A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais na Alemanha

1. A CLÁUSULA DE ABERTURA E A INESGOTABILIDADE DOS DIREITOS

1.3. A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais no constitucionalismo estrangeiro

1.3.2. A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais na Alemanha

A Constituição alemã, (também conhecida como Lei Fundamental de Bonn ou Lei Fundamental da Alemanha) possui duas diferentes cláusulas de abertura a novos direitos fundamentais, sendo que cada uma delas traz uma possibilidade diferente de se encontrar direitos fundamentais atípicos. A primeira possibilidade diz respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição, mas que se encontram fora do rol específico dos direitos fundamentais e a segunda possibilidade refere-se aos direitos fundamentais advindos do livre desenvolvimento da personalidade.

Como explica Ingo Wolfgang Sarlet,179 a Constituição da Alemanha, em seu art. 93, inc. I, nº 4, realiza uma abertura a direitos e garantias fundamentais análogos aos constantes

177 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, especialmente p. 115-134.

178 Ibidem, p. 124.

179 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 79.

73 do catálogo, também designados por Bodo Pieroth e Bernhard Schilink180 de direitos

equiparados aos direitos fundamentais, que dizem respeito aos direitos fundamentais

positivados no texto da Lei Fundamental, entretanto, fora do capítulo específico dos direitos fundamentais: o Capítulo I (art. 1º ao 19º).181

Nesse sentido, afirmam Bodo Pieroth e Bernhard Schilink que “há normas nos capítulos II, III e IX que, pela sua estrutura e pela sua história, se equiparam aos direitos fundamentais previstos nos arts. 1º a 19º. Esta equiparação também é declarada na Lei Fundamental no art. 93º, n. 1, al. 4ª: um recurso constitucional pode ser interposto com base também nos direitos contidos nos arts. 20º, n. 4; 33º; 38º; 101º; 103º; e 104º”.182 No mesmo sentido, Ernst-Wolfgang Böckenförde afirma que um recurso constitucional pode “ser requerido por cualquiera que sostenga que un acto estatal de autoridad (ley, disposición administrativa, sentencia judicial) le lesiona en sus derechos fundamentales o en sus derechos equiparados a éstos”.183

Observe-se que, por encontrarem-se expressamente positivados no texto da Constituição alemã (sendo, portanto, direitos formalmente constitucionais), só não estando colocados no capítulo particular dos direitos fundamentais, os direitos equiparados/análogos aos direitos fundamentais são uma espécie de direitos fundamentais atípicos que exigem um esforço argumentativo menor do intérprete, que aqueles que não se encontram previstos expressamente no texto constitucional. Além disso, essa espécie de direitos fundamentais atípicos está limitada aos direitos expressamente positivados na Constituição, sendo, assim, bastante restrita, isto é, a gama de direitos por ela contemplada é assaz limitada.

Assim, o papel da abertura material da Constituição Alemã para novos direitos fundamentais, em sentido mais amplo e contemplando especialmente um critério material de identificação de direitos fundamentais atípicos, ficou por conta do direito ao livre

desenvolvimento da personalidade, positivado no art. 2º, n. 1, que assim dispõe: Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persõnlichkeit, soweit er nicht die Rechte anderer verletzt und nicht gegen dir verfassungsmassige Ordnung oder das Sittengesetz verstosst.184

180 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 58.

181 Capítulo que trata dos direitos fundamentais especificamente, no qual se localiza um extenso rol de direitos fundamentais, semelhante ao que ocorre no Título II, da Constituição brasileira de 1988.

182 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 58.

183 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 96.

184 Em português: Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, nos limites dos direitos de outrem, da ordem constitucional e da ordem moral. (tradução livre).

74 Nesse sentido, como afirma Ingo Wolfgang Sarlet, na Alemanha, “a doutrina e a jurisprudência vêm aceitando alguns desenvolvimentos com base no art. 2º da Lei Fundamental (direito geral da personalidade), que assim também exerceria função similar a do nosso art. 5º, § 2º”.185 No mesmo sentido, Jorge Bacelar Gouveia afirma que “o preceito que pode ser considerado como realizando o reconhecimento de direitos fundamentais atípicos no Direito Constitucional Alemão é o do art. 2º, n.º 1, da LF”.186

Em sentido semelhante, Bodo Pieroth e Bernhard Schilink, ao analisarem o art. 2º, n.1 da Lei Fundamental (direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade), demonstram que ele se divide, hodiernamente, em liberdade de atuação em geral187 e em direito de personalidade em geral,188 e que ambos contribuem para a ampliação do âmbito de proteção da pessoa humana (por isso mesmo estão intimamente ligados à dignidade da pessoa humana, art. 1º, n. 1, da Lei Fundamental) possibilitando tanto o surgimento e reconhecimento de novos direitos como novas leituras de direitos já existentes.

185 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 79.

186 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 208.

187 Como liberdade de atuação em geral, Bodo Pieroth e Bernhard Schilink afirmam que “o art. 2º, n, 1, protege não um âmbito de vida determinado e delimitado, mas toda a atuação humana e constitui um “direito fundamental que assiste ao cidadão de apenas ser onerado com uma desvantagem com base naquelas normas que são formal e materialmente conformes à Constituição”. Este amplo âmbito de proteção, em virtude do qual o art. 2º, n. 1, é designado como cláusula geral, tem sobretudo duas consequências: a) O art. 2, n. 1, constitui um

direito fundamental de acolhimento em face dos direitos fundamentais especiais e passa para segundo plano

perante estes, até onde cheguem os seus âmbitos de proteção (subsidiariedade; cf. n. m. 353 e s. ). Este direito fundamental só ganha importância se não for aplicável um âmbito de proteção de um direito fundamental especial [...] b) O art. 2º, n. 1, na sua função de cláusula geral, abre, em larga ,medida, o recurso constitucional. O art. 2º, n. 1, é um dos direitos fundamentais referidos no art. 93º, n. 1, al. 4a), em que o recurso constitucional se pode apoiar. O alargamento do âmbito de aplicação tem, pois, como consequência um alargamento do âmbito de aplicação do recurso constitucional”. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 175-177.

188 Como direito de personalidade em geral, resumidamente, Bodo Pieroth e Bernhard Schilink afirmam que ele “foi desenvolvido pelo Tribunal Constitucional Federal a partir do art. 2º, n. 1, em ligação com o art. 1º, n. 1. O direito de personalidade em geral radica no art. 2º, n. 1, porque, tal como a liberdade de atuação em geral, não está limitado a determinados domínios de vida, mas torna-se relevante em todos os domínios da vida. O direito de personalidade em geral tem uma ligação com o art. 1º, n. 1, porque, tal como acontece com a dignidade da pessoa humana, protege menos o particular na sua atuação do que, pelo contrário, na sua qualidade de sujeito. As diferentes manifestações do direito de personalidade em geral produzidas pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal não se aplicam afinal a diferentes domínios de vida, mas a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito. Aplicam-se: à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação [...] a) Apesar disso, o direito de personalidade em geral, como direito à autodeterminação, garante ao particular determinar por si próprio a sua identidade. Disso faz parte, entre outras coisas, o direito de se assegurar da sua própria identidade e a liberdade de não ser onerado de maneira que afete massivamente a formação e a afirmação da identidade [...] b) Como direito à autopreservação, o direito de personalidade em geral garante ao particular o poder retirar-se, proteger-se e ficar por sua conta. Os direitos de se retirar e de se proteger, que estão protegidos pelo direito de personalidade em geral como direito de autopreservação, devem ser entendidas sobretudo tanto do ponto de vista social como do espacial [...] c) Como direito à autoapresentação, o direito de personalidade em geral garante ao particular a possibilidade de se defender não só contra apresentações públicas desprestigiantes, falseadoras, desfigurantes e indesejadas, mas também de observações secretas e indesejadas da sua pessoa”. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 177-180.

75 O art. 2º, n.1 da Lei Fundamental da Alemanha (direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade), entendido tanto como direito de liberdade de atuação em geral como direito de personalidade em geral, consiste numa cláusula geral que promove a abertura da Constituição aos direitos fundamentais atípicos não constantes da Constituição formal, mas somente da Constituição material, sendo, portanto, fonte dos direitos

fundamentais materiais.

Nessa perspectiva, com base no direito de liberdade de atuação em geral e no direito de personalidade em geral, o Tribunal Constitucional Federal Alemão tem reconhecido diversos direitos fundamentais atípicos. Apenas como exemplo, pode-se dizer que a Corte Constitucional, tendo como fonte o direito de liberdade de atuação em geral, reconheceu os seguintes direitos: liberdade de atividade econômica, liberdade negocial, liberdade de saída da Alemanha, direito de divulgação de escritos etc. Por outro lado, tendo como fonte o direito de personalidade em geral, o Tribunal Constitucional reconheceu os seguintes direitos: direito das crianças de conhecimento de sua ascendência, proteção dos nomes de nascimento, proteção da honra pessoal, direito à própria imagem, direito dos reclusos à ressocialização, direito a não ser obrigado a se autoacusar no processo penal etc.189

Quanto ao regime jurídico dos direitos fundamentais atípicos no âmbito do constitucionalismo alemão, pode-se dizer que os direitos equiparados/análogos aos direitos fundamentais (reconhecidos em face do art. 93, inc. I, nº 4) possuem o mesmo regime que os direitos fundamentais típicos. Já os direitos fundamentais atípicos advindos do livre desenvolvimento da personalidade (reconhecidos em face do art. 2º, n.1), em razão das especificidades do próprio direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (direito que, apesar de seguir o regime jurídico geral dos direitos fundamentais, possui algumas especialidades em sua interpretação e aplicação) possuem um regime jurídico de natureza mista, combinando normas gerais (aplicáveis a todos os direitos fundamentais) e normas específicas (aplicáveis somente ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade).190

Por fim, há de se ressaltar que, tanto os direitos equiparados/análogos aos direitos fundamentais típicos (expressamente positivados no catálogo) como os direitos advindos do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (seja do direito de liberdade de atuação em geral ou do direito de personalidade em geral) são direitos fundamentais atípicos reconhecidos pelo constitucionalismo alemão. Além disso, ambas as cláusulas de

189 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 212-214. 190 Ibidem, 216-218.

76 abertura a novos direitos fundamentais – art. 93, inc. I, nº 4 (abertura expressa) e art. 2º, n.1 (abertura implícita) – se complementam, sendo necessárias a uma abertura mais satisfatória do sistema de direitos fundamentais.

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