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O regime constitucional stricto sensu: o sistema de direitos fundamentais

2. A CLÁUSULA DE ABERTURA A NOVOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA

2.1. O regime constitucional

2.1.2. O regime constitucional stricto sensu: o sistema de direitos fundamentais

De que existe um sistema constitucional, parece que há muito não há dúvidas nem na doutrina nem na jurisprudência constitucionalista. Contudo, o mesmo não pode ser dito em relação aos direitos e garantias fundamentais. Assim, insta, além de apresentar o sistema de direitos e garantias fundamentais brasileiro como fonte dos direitos fundamentais atípicos, demonstrar que há um sistema de direitos e garantias fundamentais no âmbito de nosso vigente constitucionalismo.

Não é recente a concepção de que os direitos e garantias fundamentais possuem um sistema próprio, isto é, um subsistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais, contudo tal concepção é bastante controversa, sendo objeto de acirradas discussões dogmáticas no âmbito da doutrina e jurisprudência nacional308 e estrangeira.309

As discussões sobre um sistema de direitos e garantias fundamentais ganham evidência com o advento do constitucionalismo do pós-Guerra, em face da clara opção dos países democráticos em colocar a pessoa humana no centro do ordenamento resguardando-lhe uma gama ímpar de direitos e garantias fundamentais.

Como demonstra Ingo Wolfgang Sarlet, no direito alemão merece destaque a doutrina de Günter Dürig que sustentou, já na primeira década do novo constitucionalismo germânico, a existência de um legítimo sistema de direitos fundamentais. Para Dürig, a Lei Fundamental da Alemanha “consagrou um sistema de direitos e garantias fundamentais isento de lacunas, baseado no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da LF)”.310 Nesse sentido, o sistema de direitos e garantias fundamentais da Constituição Alemã, segundo Dürig, consagra a proteção e a promoção da pessoa humana de um modo

308 Apenas como exemplos, dentre tantos outros, pode-se citar: FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de

Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996, p. 54 e ss.; MORAES, Guilherme Braga Peña de. Dos Direitos

Fundamentais. São Paulo: Ltr, 1997, p. 89 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 69 e ss.

309 Apenas como exemplos, dentre tantos outros, na Alemanha, pode-se citar: DÜRIG, Günter. Der Grundsatz der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1 Abs. I in Verbindung mit Art. 19 Abs. II des Grundgesetzes. In: AÖR, nº 81, 1956, p. 119 e ss.; HESSE, Konrad. Grundzüge des

Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutchland. 20.ed. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 136 e ss;

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012. v. I, p. 113 e ss. Na Espanha, pode-se citar: PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. Los Derechos

Fundamentales. 10.ed. Madrid: Tecnos, 2011, p. 135 e ss. Em Portugal, pode-se citar: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 159 e ss.; ANDRADE, José Carlos

Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 71 e ss.

310 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 70.

103 geral, através da positivação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, princípio este que se concretiza pelos diversos direitos e garantias fundamentais positivados na própria Carta Constitucional. Ademais, o autor alemão apresenta uma série de justificativas para sustentar a existência de um autentico sistema de direitos e garantias fundamentais na Lei Fundamental alemã, especialmente referentes ao regime próprio desses direitos e garantias, como sua aplicabilidade imediata (art. 1º, III, da LF), a preservação de seu núcleo essencial (art. 19, II, da LF), sua colocação no rol das cláusulas pétreas (art. 79, III, da LF) etc.311

Conforme esclarece Ingo Sarlet, na doutrina de Günter Dürig, “a noção de um sistema isento de lacunas deve ser compreendida no sentido de um sistema de proteção abrangente e completo, e não como significando um sistema fechado e hermético”.312 Aqui faz-se de fundamental importância relembrar das lições de Konrad Hesse, para quem, em que pese a existência de determinadas conexões de natureza sistêmica, seria impossível sustentar que há um sistema de direitos fundamentais autônomo e fechado no âmbito da Lei Fundamental da Alemanha, como sustenta parte da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional Alemão.313ˉ314 Nesse sentido, no âmbito do constitucionalismo alemão só pode-se falar em um sistema de direitos fundamentais que seja aberto e flexível, mas jamais fechado, hermético ou autônomo (no sentido de não possuir conexões com o sistema constitucional).

O mesmo parece ser aplicável ao sistema de direitos e garantias fundamentais da atual Constituição brasileira. Isto porque, em primeiro lugar, o próprio sistema constitucional positivo se abre a novos direitos e garantias fundamentais através do § 2º, de seu art. 5º (cláusula de não tipicidade dos direitos), isto é, se abre a outras fontes e outras possibilidades de se encontrar, identificar e construir direitos fundamentais, consagrando, assim, o caráter exemplificativo do rol de direitos fundamentais positivado no Título II, da Constituição de 1988. Além disso, há de se lembrar da pluralidade de conteúdo e natureza dos direitos e

311 Ibidem, idem. 312 Ibidem, idem.

313 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

314 Nesse sentido, esclarece Ingo Sarlet: “Para Hesse, os direitos fundamentais, apesar de comumente agrupados em um catálogo, são garantias pontuais, que se limitam à proteção de determinados bens e posições jurídicas especialmente relevantes ou ameaçados. De outra parte, a existência de direitos fundamentais dispersos no texto constitucional, a ausência de uma fundamentação direta de todos os direitos fundamentais no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o estreito entrelaçamento entre os direitos fundamentais e o restante das normas constitucionais, impedem, segundo a perspectiva de Hesse, a existência de um sistema autônomo, fechado (no sentido de isento de lacunas), tal como sustentado por parte da doutrina e, ao menos de forma majoritária, pelo próprio Tribunal Federal Constitucional”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos

fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre:

104 garantias fundamentais positivados em nossa Carta Maior, o que também está na contramão de um sistema fechado e hermético, tendo muito mais afinidade com a abertura sistêmica. Ademais, em que pese a dignidade da pessoa humana ser apontada como o núcleo fundamental e a matriz jurídico-axiológica dos direitos e garantias fundamentais (de todos eles, em maior ou menor grau), há de se reconhecer que os demais princípios constitucionais, notadamente os positivados no Título I de nossa Constituição, também consistem em matrizes desses direitos e garantias, sendo, muitas das vezes, até mais significativos para determinados direitos do que a própria dignidade da pessoa humana, o que reforça o caráter aberto de nosso sistema de direitos e garantias fundamentais.315

Nada obstante, em relação ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, há de se destacar a sua multifuncionalidade no sistema de direitos e garantias fundamentais brasileiro. Em primeiro lugar, em razão da exigência de unidade e coerência do sistema, vez que a dignidade consiste na matriz jurídico-axiológica comum desses direitos e garantias, que confere harmonia a um sistema tão conflitante, vez que muitos desses direitos, muitas das vezes, apresentam-se conflitantes nos casos concretos.316 Para além disso, há de se destacar a importância da dignidade na própria abertura do sistema de direitos e garantias fundamentais, pois trata-se de seu fundamento material, consistindo não só em fonte dos direitos e garantias atípicos, mas também em norma a orientar a interpretação e aplicação/concretização de todos os direitos e garantias fundamentais.317

Em relação à abertura do sistema de direitos e garantias fundamentais e aos direitos fundamentais atípicos, para além de ser o referido sistema verdadeira fonte dos mencionados direitos, há de se destacar as importantes funções que estes últimos cumprem para a aludida abertura, notadamente duas: integração e adequação. A integração busca completar o sistema em razão de suas lacunas, vez que o elenco de direitos e garantias fundamentais não se queda completo em face das novas situações e necessidades das pessoas e dos novos problemas sociais, bem como em face das situações antigas, mas que na contemporaneidade reclamam novas respostas. Já a adequação tem como escopo suprir e aprimorar as regulações do sistema

315 Ibidem, idem.

316 Nesse sentido, dentre outros: SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 85 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 72.

317 Nesse sentido, dentre outros: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4; p. 202; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição

105 que necessitam de aprimoramento, sobretudo levando-se em conta que a regulação positiva dos direitos fundamentais no Brasil é demasiado deficiente.318

Em que pese, como acabou-se de afirmar, a regulação positiva do sistema de direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988 ser bastante deficiente,319 pode-se destacar, ainda, para a melhor visualização do referido sistema, as disposições constitucionais positivadas pelo art. 5º, § 1º, e pelo art. 60, § 4º, IV, de nossa Carta Constitucional.

O § 1º, do art. 5º, da atual Constituição brasileira, ao afirmar que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” implementou uma inovação de grande importância para nosso sistema de direitos e garantias fundamentais, assegurando a aplicabilidade imediata desses direitos e consagrando que não se trata de normas meramente programáticas.320 Ademais, o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais reforça o caráter distinto e específico dos direitos e garantias fundamentais, que não se desconectam do sistema constitucional, mas que no âmbito desse sistema formam um subsistema específico, com normas e regulações inerentes só a tais direitos e garantias.

Já o § 4º, IV, do art. 60, de nossa Carta Maior, ao preceituar que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: iv - os direitos e garantias individuais”,

318 Nesse sentido, Jorge Bacelar Gouveia afirma: “O raciocínio imanente à consagração de uma tipologia exemplificativa de direitos fundamentais é o de permitir a abertura da pluralidade dos tipos constitucionalmente

tipificados, qualificando consequentemente esse sistema como sistema aberto, e reconhecendo, ao mesmo tempo, a sua insuficiência na captação da respectiva fenomenologia. Essa abertura define-se essencialmente pela

incapacidade de encontrar resposta para todas as situações a merecer tratamento ao nível dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais atípicos vão assim desempenhar duas importantes funções na abertura

do sistema: - a função de integração; e - a função de adequação [...] A mais importante – e também a mais

comum – é a primeira, que vai permitir que o sistema não fique incompleto (ou fique menos incompleto) e seja preenchido por outros direitos que não foram incluídos, por dois diferentes motivos: a elaboração do elenco de direitos fundamentais nunca é tarefa acabada e perante novas necessidades e novos problemas pode ser forçoso dar uma resposta ao nível da construção de novos tipos de direitos; pode também suceder que, por circunstâncias várias, certos direitos, apesar de idealizados, não cheguem a ser incluídos em face de compromissos do momento [...] A outra cura do acompanhamento, por parte do sistema de direitos fundamentais, da evolução da realidade e relaciona-se com deficiências de regulação que carecem de aperfeiçoamento. Não há aqui, propriamente, uma omissão na sua positivação; sente-se é a imperfeição dessa regulação, seja pela necessidade de complementar os tipos de direitos previstos com novas faculdades de aproveitamento, seja pela necessidade de actualizar a respectiva configuração em face da mutação acelerada das situações da vida a retratar”. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 72-74.

319 Nesse sentido, por todos, ver: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 68-69.

320 Sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, em especial das normas de direitos e garantias fundamentais, dentre outros, ver: SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012; BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a eficácia de suas normas. 5.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; BRITTO, Carlos Ayres; BASTOS, Celso Ribeiro. Interpretação e aplicação

das normas constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre:

106 conferiu especial proteção às normas do sistema de direitos e garantias fundamentais.321 A citada cláusula de proibição de retrocesso com núcleo pétreo, ou “cláusula pétrea”, demonstra mais uma vez que os direitos e garantias fundamentais gozam de um regime jurídico especial, diferenciado e que possuem um sistema próprio no âmbito da Constituição de 1988, contudo, comprova também, justamente por estar expressa em outro Título (IV) que não o específico dos direitos fundamentais (Título II), que o sistema de direitos e garantias fundamentais é conexo, comunicante e englobado pelo sistema constitucional.

Há de se ressaltar, mais uma vez, que o subsistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais da Constituição brasileira de 1988 consiste num sistema aberto e flexível de regras e princípios jurídicos, cuja matriz jurídico-axiológica comum e que lhes confere unidade sistêmica reside nos princípios fundamentais (Título I), de forma especial na dignidade da pessoa humana.

Por fim, enquanto fonte dos direitos fundamentais atípicos, o sistema dos direitos e garantias fundamentais atua desde a identificação, desenvolvimento e construção até a interpretação, aplicação e concretização desses direitos, devendo os direitos atípicos guardarem uma unidade mínima com os típicos. Ademais, na análise do sistema de direitos e garantias fundamentais enquanto fonte dos direitos fundamentais atípicos, há de se destacar o papel desenvolvido pelos direitos fundamentais individuais básicos, positivados no caput do

art. 5º (vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade)322 e dos direitos sociais mínimos

positivados no art. 6º (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança,

previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados), dos quais pode-se abstrair a maior parte dos demais direitos fundamentais expressos em nosso texto constitucional, bem como outros nele não expressos.

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