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As Constituições do Pós-Guerra e as Declarações de Direitos Fundamentais

1. A CLÁUSULA DE ABERTURA E A INESGOTABILIDADE DOS DIREITOS

1.1. A constante evolução dos direitos fundamentais e a necessária abertura material da

1.1.2. Os direitos humanos internacionais e os direitos fundamentais constitucionais

1.1.2.3. As Constituições do Pós-Guerra e as Declarações de Direitos Fundamentais

No âmbito do direito estatal, a derrota do nazismo, significou também a decadência do positivismo jurídico legalista e a superação do constitucionalismo tradicional, que via a Constituição como mero documento organizacional, por um novo constitucionalismo, também chamado de neoconstitucionalismo,47ˉ48 do qual a força normativa das normas constitucionais e a prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana são as principais características.

47 Como explica Daniel Sarmento, o termo Neoconstitucionalismo ainda não está rigidamente definido, possuindo algumas variações, entretanto, pode-se conceituá-lo como “um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais” que, de modo geral, envolve “vários fenômenos diferentes, mas reciprocamente implicados, que podem ser assim sintetizados: (a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou ‘estilos’ mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com irradiação das noras e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário”. SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades. In: SARMENTO, Daniel (coord.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 113-114. Em sentido semelhante, Max Möller afirma que o Neoconstitucionalismo possui sete características comuns a maior parte das definições traçadas pela doutrina, sendo elas: a) rigidez constitucional; b) garantia jurisdicional da Constituição; c) força vinculante da Constituição; d) sobreinterpretação da Constituição (implica dizer que toda matéria não regrada, isto é, toda lacuna, encontra na Constituição um mínimo de regulação em face da sistemática constitucional); e) aplicação direta das normas constitucionais; f) interpretação conforme a lei (compreendendo a interpretação conforme a Constituição e a interpretação conforme o ordenamento legal, isto é, infraconstitucional que são complementares); g) influência da Constituição sobre as relações políticas. MÖLLER, Max. Teoria Geral do

Neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2011, p. 30-43.

48 Sobre o neoconstitucionalismo, não poderíamos deixar de mencionar os estudos organizados por Miguel Carbonel na Espanha a partir do ano de 2003, sendo considerado um dos grandes difusores dessa terminologia. CARBONEL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003; CARBONEL, Miguel (org.).

Teoria del Neoconstitucionalismo: ensaios escogidos. Madrid: Trotta, 2007; CARBONEL, Miguel;

35 Adotando aqui a definição de Luís Roberto Barroso49, pode-se afirmar que o

neoconstitucionalismo possui três marcos fundamentais: i) histórico; ii) filosófico; e iii) teórico. O marco histórico consiste no constitucionalismo do pós-guerra, isto é, no

desenvolvimento das Constituições garantistas da última metade do século passado, tendo como principal referência a Lei Fundamental da Alemanha (Lei de Bonn)50. O marco

filosófico consiste na superação do positivismo jurídico legalista por um movimento filosófico

denominado pós-positivismo jurídico51, bem como no reconhecimento da normatividade dos princípios jurídicos52 e na prevalência da dignidade da pessoa humana, como fim maior do Estado Democrático de Direito constitucionalizado. O marco teórico divide-se em três grandes transformações que, em conjunto, possibilitaram a adequação do conhecimento convencional ao Direito Constitucional: a) o reconhecimento da força normativa da Constituição, ideia difundida por diversos autores do pós-guerra, com merecido destaque a Konrad Hesse53; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional pautada, sobretudo, em princípios instrumentais trazidos pela própria Constituição.

O conjunto desses fatores possibilitou o surgimento de um novo constitucionalismo, agora voltado para a consecução dos fins humanos e não estatais, melhor dizendo, agora tendo o ser humano como principal finalidade do Estado. No neoconstitucionalismo, a dignidade da pessoa humana é o fundamento basilar da Constituição e do Estado54 e os direitos

49 BARROSO, Luís Roberto. Neo Constitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 384, p. 71-104, mar/abr, 2006.

50 Sobre os direitos fundamentais na Lei de Bonn, ver: PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos

fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012.

51 Em relação ao “pós-positivismo”, nos parece uma terminologia demasiada abrangente e imprecisa que pode simbolizar, ao menos a priori, tudo aquilo que veio depois do positivismo. Entretanto não é objetivo deste trabalho discutir o termo ou mesmo o que ele representa. Assim sendo, apenas para aclarar a discussão e manter o referencial teórico, vale dizer que para Luís Roberto Barroso, “o pós-positivismo identifica um conjunto de ideias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao Direito [...] Pós- positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética. A estes elementos devem-se agregar, em um país como o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar a prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a realidade”. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação

e aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 344-386.

52 Sobre o pós-positivismo jurídico e a normatividade dos princípios jurídicos, ver: DOS SANTOS, Eduardo R.

O Pós-positivismo jurídico e a normatividade dos princípios jurídicos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014.

53 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre; Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 54 Nesse sentido, Carlos Roberto Siqueira de Castro afirma que “o Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano” CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: ensaios sobre o

36 fundamentais representam sua materialização no texto constitucional55, assegurando-se sua máxima efetivação através da ação direta do Poder Executivo, encarregado de efetivar os direitos fundamentais constitucionais e impedir sua violação do âmbito estatal e privado, e, subsidiariamente, da atuação do Poder Legislativo, encarregado de criar as leis implementadoras desses direitos fundamentais e fiscalizar as ações do Poder Executivo. Ademais, para os casos de omissão ou para os casos de ações que violem ou não resguardem tais direitos, as Constituições hodiernas possuem mecanismos constitucionais judiciais (nos quais atua o Poder Judiciário, sempre que provocado) de proteção e implementação, como o

due process of law, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas corpus, o habeas data, as ações de controle de constitucionalidade, dentre outros.

Além disso, as novas Constituições Modernas possuem mecanismos que impedem a ação arbitrária dos poderes do Estado, sobretudo no que tange a reforma constitucional. Em primeiro lugar, há um limite formal que exige um quórum especialíssimo para que se proceda à reforma (Constituição rígida) e, em segundo lugar, há um limite material que consiste, dentre outras coisas, na proibição de redução (cláusula de proibição de retrocesso com núcleo pétreo) ou na proibição de alteração do quadro (cláusula pétrea) dos direitos fundamentais.

Este novo constitucionalismo, através do reconhecimento da força normativa das normas de direito constitucional e, sobretudo, dos princípios constitucionais, possibilitou uma maior proteção dos direitos do homem, positivados nas Constituições como direitos fundamentais. O Estado, através de seus três poderes e das demais instituições constitucionais, como a Advocacia e o Ministério Público, por exemplo, passa a ser o grande protetor e implementador dos direitos fundamentais do homem. O Estado tem o dever de implementar, de assegurar, de fiscalizar, de corrigir e reprimir as violações, de reestabelecer o gozo dos direitos. Se o ser humano é o grande portador de direitos, o Estado e a Sociedade,

constitucionalismo pós-moderno e comunitário. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 19. Em sentido semelhante, José Carlos Vieira de Andrade afirma que “a consagração de um conjunto de direitos fundamentais tem uma intenção específica, que justifica a sua primaridade: explicitar uma ideia de Homem, decantada pela consciência universal ao longo dos tempos, enraizada na cultura dos homens que formam cada sociedade e recebida, por essa via, na constituição de cada Estado concreto. Ideia de Homem que, no âmbito da nossa cultura, se manifesta juridicamente num princípio de valor, que é o primeiro da Constituição portuguesa: o princípio da dignidade da pessoa humana”. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na

Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 80.

55 Nessa perspectiva, Carlos Roberto Siqueira de Castro, segundo quem, “no que toca aos direitos fundamentais do homem, impende reconhecer que o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se o epicentro do extenso catálogo de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais...”. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A

Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e

37 inclusive as instituições privadas,56 são os grandes portadores dos deveres. Por óbvio que os indivíduos, também, têm deveres fundamentais, no mínimo o de respeitar e não infringir o direito fundamental alheio.

É nesse cenário político que as declarações de direitos das Constituições contemporâneas deixaram de ser meros programas constitucionais e se tornaram um complexo sistema de direitos dos homens apto a assegurar e promover a dignidade da pessoa humana em todos os ambitos, através da positivação das mais variadas espécies de direitos fundamentais, como direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, individuais, coletivos e difusos, agora exigíveis do Estado, da Sociedade e, inclusive das pessoas (naturais ou jurídicas) no âmbito público e privado.

No âmbito do constitucionalismo pátrio, este novo paradigma constitucional é implementado com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que já em seu art. 1º, inciso III, declara que o Estado brasileiro tem como fundamento o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Destaque-se que a atual Carta Constitucional brasileira positivou um dos mais ricos róis de direitos fundamentais existentes,57 ocupando um título inteiro só com os direitos fundamentais (Título II). Ressalte- se ainda que no âmbito do novo constitucionalismo brasileiro, os direitos fundamentais são dotados de aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º)58 e o sistema de direitos e garantias fundamentais constitui-se num sistema aberto à existência de novos direitos fundamentais (art. 5º, § 2º).

56 Sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, por todos, ver: SARMENTO, Daniel. Direitos

Fundamentais e Relações Privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2009; SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo:

Malheiros, 2011; e STEINMETZ, Wilson. Vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2005.

57 Nesse sentido, em palestra ministrada no Brasil, no dia 15 de outubro de 2013 na sede do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), o professor italiano Luigi Ferrajoli, um dos constitucionalistas mais respeitados das últimas décadas, afirmou que “a Constituição brasileira é das mais avançadas do mundo”.

58 Quanto à aplicabilidade imediata existe um grande dissenso doutrinário e jurisprudencial quanto à sua abrangência. Para alguns, existem direitos fundamentais incompatíveis, ao menos faticamente, com tal aplicabilidade. Contudo, há aqueles que defendem ser possível, ao menos sobre determinadas perspectivas, a sua aplicação a todos os direitos fundamentais. Nada obstante, essa discussão desviaria o foco do nosso trabalho, por isso, sobre o tema, remetemos o leitor as seguintes leituras: CUNHA JÚNIOR. Dirley da. Curso de Direito

Constitucional. 6.ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 655-668. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 96-102. SARLET,

Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 261-273. STEINMETZ, Wilson. O dever de aplicação imediata de direitos e garantias fundamentais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e nas interpretações da literatura especializada. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (coords.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 113-130.

38 Além disso, a Constituição de 1988, seguindo as linhas neoconstitucionalistas de proteção aos direitos fundamentais, possui limites formais e materiais ao Poder Constituinte Reformador. Como limitação formal prevê, dentre outras59, a necessidade de aprovação, em dois turnos, nas duas casas legislativas (Senado e Câmara Federal), por três quintos dos votos dos respectivos membros, para toda e qualquer Emenda à Constituição (art. 60, § 2º). Como limitação material, especificamente aos direitos fundamentais prevê a vedação de qualquer proposta tendente a aboli-los, isto é, que vise diminuí-los ou extingui-los (art. 60, § 4º).

A Constituição brasileira de 1988, em consonância com as Constituições Modernas do pós-guerra, consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento básico e fim maior do Estado Democrático de Direito. Na linhagem de Immanuel Kant, colocou a pessoa humana como fim do Estado e não como meio para a consecução dos seus fins,60 conferindo-lhe uma das mais extensas e completas declarações de direitos fundamentais da contemporaneidade.

1.1.3. Os direitos fundamentais do homem como direitos históricos: uma história sem

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