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2. A CLÁUSULA DE ABERTURA A NOVOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA

2.2. Os princípios constitucionais

2.2.1. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana

2.2.1.1. Os marcos fundamentais da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana possui muitos marcos teóricos fundamentais, sejam eles jurídicos, políticos, filosóficos etc. Contudo, neste trabalho, elegemos três marcos

346 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 9.ed. Por Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.34-36.

347 RUOTOLO, Marco. Appunti sulla Dignità Umana. In: Direitos Fundamentais & Justiça. n.11, abr./jun. 2010, p. 125-126.

348 WEYNE, Bruno Cunha. O principio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofía de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 42-43.

113 principais: o monoteísmo judaico-cristão como marco religioso, os desenvolvimentos

filosóficos do Iluminismo, especialmente os de Immanuel Kant, como marco filosófico e o período imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial como marco histórico,

por ter incorporado e alçado a dignidade da pessoa humana ao centro do debate jurídico- político.

A começarmos pelo marco religioso, tem-se que as diversas religiões sempre buscaram justificar a condição da pessoa humana como sendo uma condição especial, diferenciada, alçando o homem a um lugar especial no universo.349 Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa humana reside no “coração” das mais variadas religiões (por óbvio, que cada uma a compreende de um modo diferente). Contudo, em face de nossa história e de nossas tradições, interessa-nos as concepções religiosas predominantes do “Ocidente”, deste modo, interessa-nos como a dignidade da pessoa humana desenvolveu-se na perspectiva das religiões judaico-cristãs.

Assim, em que pese não seja correto reivindicar a exclusividade, ou mesmo a originalidade, do desenvolvimento religioso de uma ideia de dignidade da pessoa humana à doutrina judaico-cristã, não há dúvidas de que nessa matriz religiosa, seja no velho350 ou no novo testamento,351 pode-se encontrar diversas passagens que conferem ao ser humano um

locus especial no universo, notadamente em face de ter sido feito o homem à imagem e

semelhança de Deus (Imago Dei), impondo-lhe um dever de amor incondicional ao próximo.352 Ademais, em face da influência determinante do cristianismo no desenvolvimento da civilização ocidental, alguns autores demonstram que no texto bíblico há passagens das quais pode-se abstrair não só uma ideia de dignidade da pessoa humana, mas também de elementos de individualismo, igualdade e solidariedade, os quais foram essenciais para a compreensão hodierna da dignidade.353

Na contramão das construções teóricas cristãs mencionadas, a Igreja Católica, enquanto religião cristã predominante da Idade Média, foi, sem dúvida alguma, uma das principais responsáveis pelas atrocidades contra a pessoa humana, ao longo da história da humanidade. Assim, em que pese o grande esforço de alguns de seus teóricos em defender

349 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 14-16. 350 Gênesis, cap. 1, vers. 26-27; Levítico, cap. 19, vers. 18; dentre outras passagens.

351 Efésios, cap. 4, vers. 24; Mateus, cap. 22, vers. 39; dentre outras passagens.

352 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 9.ed. Por Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 34.

353 STARCK, Christian. The religious and philosophical background of human dignity and its place in modern Constitutuions. In: KRETZMER, David; KLEIN, Eckart (Ed.). The concept of human dignity in human rights

114 uma concepção de dignidade humana, como Agostinho de Hipona354 e Tomás de Aquino,355 a Igreja sempre esteve à frente dos grandes momentos de destruição e reificação da pessoa humana, a exemplificarmos pela “Santa Inquisição”, que perseguia, torturava e matava, pelo apoio da Igreja à escravidão dos negros, sob o fundamento de que eles não teriam alma, pelo apoio da Igreja a Benito Mussolini e Adolf Hitler e seus regimes fascista e nazista, especialmente no holocausto judeu etc.356

Ao longo da Idade Média, a dignidade da pessoa humana sempre esteve atrelada às concepções religiosas, sendo compreendida como uma dádiva divina, um presente de Deus aos homens, algo que era inerente ao ser humano porque Deus assim os fez à sua imagem e semelhança, estando a ratio humana submetida à ratio cristã, mais precisamente às ideias e concepções da Igreja. Assim, em que pese digno e livre (livre arbítrio), o homem estava condicionado e limitado pela Igreja.357

Como bem explica Luís Roberto Barroso, “foi apenas em 1486, com Giovanni Picco, Conde de Mirandola, que a ratio philosophica começou a se afastar de sua subordinação à

ratio theologica”, sendo sua “Oratio de Hominis Dignity” considerada o escrito fundador do

humanismo renascentista.358

Giovanni Picco Della Mirandola, partindo ainda das ideias cristãs, sobretudo da

Imago Dei, propõe uma emancipação do homem, sob o argumento de que sendo o homem

feito à imagem e à semelhança de Deus e sendo ao homem dado o livre arbítrio, estaria ele livre para fazer suas próprias escolhas existenciais, isto é, para construir livremente a sua existência e realizar as escolhas que irão determinar o seu destino.359 Deste modo, no limiar

354 AGOSTINHO. Confissões. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

355 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2003. v.1.

356 Nesse sentido, Barroso afirma que “a Igreja em si, como uma instituição humana, tem estado em desacordo com a dignidade humana em diversas ocasiões, incluindo sua participação na divisão da sociedade em propriedades, no apoio à escravidão e na perseguição de ‘hereges’”. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da

pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da

jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 16. 357 Ibidem, p. 16-17.

358 Ibidem, idem.

359 “Li nos escritos dos Árabes, venerandos Padres, que, interrogado Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que o homem. Com esta sentença concorda aquela famosa de Hermes : “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem” [...] Ora, enquanto meditava acerca do significado destas afirmações, não me satisfaziam de todo as múltiplas razões que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da grandeza da natureza humana: ser o homem vínculo das criaturas, familiar com as superiores, soberano das inferiores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder indagador d razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem os Persas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundo atestou David, em pouco inferior ao anjos [...] Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. Coisa inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por isso o homem é dito e considerado

115 da Idade Moderna, Picco Della Mirandola “justifica a importância da busca humana pelo conhecimento, trazendo o homem e a razão para o centro do mundo”. Assim, “não chega a ser uma surpresa, portanto, que suas teses tenham sido consideradas heréticas pelo Papa Inocêncio VIII e consequentemente proibidas pela Inquisição”.360

No limiar dos séculos XVI e XVII, muitos filósofos consagrados contribuíram para o desenvolvimento da ideia de dignidade humana, especialmente em relação aos direitos naturais da pessoa. Nada obstante, foi durante o século das luzes (século XVIII), com o

Iluminismo,361 que o conceito de dignidade da pessoa humana ganhou desenvolvimento significante em si mesmo, com base na ideia de centralidade do homem, enquanto sujeito de

direitos merecedor de especial respeito e consideração de seus semelhantes e do Estado,362

concepção determinante até hoje para a definição de dignidade da pessoa humana.363

Mais precisamente, pode-se dizer que foi com Immanuel Kant que a dignidade da pessoa humana completou seu processo de secularização, com alicerces na autonomia ética e racional do ser humano.364 A contribuição de Kant, sem dúvida alguma, parece-nos ser a mais determinante e significativa para a construção da dignidade da pessoa humana, sendo

justamente um grande milagre e um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado [...] Estabeleceu, portanto, o óptimo artífice que, àquela a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: “Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar; aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo” [...] Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem! Ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer. As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde o princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos.” MIRANDOLA, Giovanni Pico Della. Discurso

sobre a Dignidade do Homem. Edição Bilingue. 6.ed. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 53-57.

360 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 17. 361 Tomando de empréstimo as formulações de Peter Gay, pode-se dizer que o Iluminismo, na busca pela emancipação do homem dos dogmas cristãos, foi um programa de “secularismo, humanismo, cosmopolitismo e liberdade”. GAY, Peter. The enlightenment: an interpretation. New York: W.W. Norton & Company, 1977. 362 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 18. 363 Nesse sentido, por todos: KIRSTE, Stephan. A dignidade humana e o conceito de pessoa de direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

364 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

116 recepcionada pelo discurso jurídico mundial contemporâneo365 e, em especial, pela doutrina jurídica366 e jurisprudência brasileiras.367

Resumidamente e correndo os riscos da simplificação de um pensamento tão complexo, pode-se dizer que Kant defendia que tudo na vida possuía um preço ou uma dignidade, sendo que aquilo que fosse insubstituível (único) teria uma dignidade, ao contrário, aquilo que pudesse ser substituído (aquilo que em seu lugar se pudesse pôr um equivalente) teria um preço, sendo a dignidade um valor espiritual posto infinitamente acima de qualquer preço.368

Para ser insubstituível e não ser considerado coisa dever-se-ia tratar de algo que possuísse um fim em si mesmo, algo que necessariamente fosse racional por natureza e, portanto, fosse senhor de si mesmo (legislador de si mesmo), portador de uma autonomia de

vontade, uma autonomia moral, capaz de realizar suas próprias escolhas à luz de sua própria

razão, capaz de realizar, por si só, suas escolhas existenciais.369

Apenas o ser racional possui tais características, portanto somente o ser racional possui dignidade, vez que, para Kant, “a autonomia é pois o fundamento da dignidade da

365 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 68. 366 Exemplificativamente, pode-se citar a recepção da doutrina kantiana da dignidade da pessoa humana, dentre outros, pelos seguintes autores: MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2009, p. 25; SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p. 20 e ss.; SILVA, José

Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. In: Líber Amicorum, Hector

Fix-Zamudio. San José: Corte Interamericana de Derechos Humanos, 1998, p. 587-591. v.1.; ROCHA, Carmen

Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista Interesse Público, n. 4, p. 23-48, 1999.; BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.; WEYNE, Bruno Cunha. O principio da

dignidade humana: reflexões a partir da filosofía de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 200. SARLET, Ingo

Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais n;a Constituição Federal de 1988. 9.ed. Por Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 42.

367 Exemplificativamente, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, pode-se citar o voto do Min. Joaquim Barbosa, em voto proferido no RE 398.041, em que afirma que “o constituinte de 1987/1988 [...] inovou ao incluir o princípio da dignidade humana no rol dos princípios informadores de toda a ordem jurídica nacional. E o fez certamente inspirado na máxima kantiana segundo a qual ‘l’humanité ele-même est une dignité’ (a condição humana em si mesma é dignidade)”. No mesmo sentido, a Min. Carmen Lúcia Antunes Rocha, em voto proferido na ADIN 3.510, referiu-se a Kant como sendo “o grande filósofo da dignidade”.

368 Nesse sentido, afirma Kant: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...] Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade”. Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p.82-83.

369 Nessa perspectiva, segundo Kant, “aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é

dignidade [...] Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois

só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins. Portanto a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”. Ibidem, p.82.

117 natureza humana e de toda a natureza racional”.370 Deste modo, o homem (enquanto ser racional conhecido)371 é o único capaz de realizar suas próprias escolhas existenciais à luz de sua própria razão (o único ser que possuí autonomia de vontade e autonomia moral), sendo, portanto, um fim em si mesmo, e estando submetido à lei, segundo a qual, os seres racionais jamais devem tratar-se a si mesmos ou a outros seres racionais meramente como meios, mas sempre, concomitantemente, como fins em si (aqui reside, segundo Kant, a condição suprema que limita a liberdade das ações de cada homem).372

Nas palavras do próprio Kant, como arremate à sua concepção de dignidade humana e trazendo à reflexão uma de suas sentenças categóricas, tem-se:

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo,

não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em

todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como

fim. [...] Portanto o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas

acções é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto do respeito). Estes não são portanto meros fins subjectivos cuja existência tenha para

nós um valor como efeito da nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizer, coisas

cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor

absoluto; mas se todo // o valor fosse condicional, e por conseguinte contingente, em

parte alguma se poderia encontrar um princípio prático supremo para a razão [...] O fundamento deste princípio é: A natureza racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjectivo das acções humanas. Mas é também assim que qualquer outro ser racional se representa a sua existência, em virtude exactamente do mesmo princípio racional que é válido também para mim; é portanto simultaneamente um princípio objectivo, do qual como princípio prático supremo se tem de poder derivar todas as leis da vontade. O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na

pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca // simplesmente como meio.373

Assim, como bem salienta Bruno Cunha Weyne,374 pode-se responder com apoio na filosofia de Immanuel Kant à pergunta: por que o ser humano possui uma dignidade? Ora, o

370 Ibidem, p. 84.

371 Kant fala em ser racional, então, a nosso ver, se houvesse ou se se encontrasse vida inteligente (ser racional) para além da humanidade, esta também teria dignidade à luz da teoria kantiana.

372 Ibidem, p. 73-80. 373 Ibidem, p. 72-73.

374 WEYNE, Bruno Cunha. O principio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofía de Kant. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 315.

118 ser humano possui uma dignidade porque é um ser racional, isto é, porque possui razão, porque é capaz de realizar suas próprias escolhas existenciais e diferenciar-se de todos os demais de sua espécie em alguma medida, sendo, portanto, único e insubstituível. É exatamente a sua autonomia de vontade375 (cujas bases residem na ratio) que o torna especial e diferente, atribuindo-lhe um valor intrínseco absoluto, intransponível, conferindo-lhe um

locus especial no universo, exigindo, consequentemente, que ao ser humano seja destinado

especial respeito e consideração, tanto pelos seus semelhantes, como pelo Estado.

A filosofia kantiana acerca da dignidade da pessoa humana, como dissemos, encontra grande aceitação no discurso jurídico contemporâneo. Contudo, isso não significa que depois das ideias de Kant, outras boas concepções não tenham sido formuladas, como, por exemplo, as reflexões de Friedrich Hegel,376 no século XIX, cujas bases de uma dignidade humana residiam na ideia de eticidade, segundo a qual cada um deve ser pessoa e respeitar outros como pessoas, conforme explica Carlos Ruiz Miguel.377 Nada obstante, foram as ideias de Kant que alçaram a dignidade da pessoa humana ao centro do discurso filosófico e afastou sua fundamentação das concepções religiosas, universalizando a dignidade e os direitos dela decorrentes. Mais ainda, são as ideias kantianas a base de grande parte dos discursos filosóficos, jurídicos e políticos do mundo contemporâneo, como facilmente se perceberá em nossa análise sobre as dimensões da dignidade humana.

375 “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes a elas; e, ao contrário, toda heteronomia do livre-arbítrio não apenas deixa de fundar qualquer obrigação, como também se opõe ao princípio desse livre-arbítrio e à moralidade da vontade. Com efeito, é na independência de toda a matéria da lei (isto é, de um objeto desejado) e, ao mesmo tempo, na determinação do livre-arbítrio por meio da forma legisladora universal comum, de que toda máxima deve ser capaz, que consiste o princípio único da moralidade [...] Essa independência, porém, é liberdade em sentido negativo, enquanto esta legislação própria da razão pura e, como tal, prática, é liberdade no sentido positivo. Consequentemente, a lei moral exprime tão-

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