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A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais em Portugal

1. A CLÁUSULA DE ABERTURA E A INESGOTABILIDADE DOS DIREITOS

1.3. A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais no constitucionalismo estrangeiro

1.3.3. A cláusula de abertura a novos direitos fundamentais em Portugal

No constitucionalismo português, a cláusula de abertura a novos direitos fundamentais aparece expressamente pela primeira vez na Constituição portuguesa de 1911. Nada obstante, alguns constitucionalistas, como Jorge Miranda191 e Jorge Bacelar,192 defendem a natureza implícita da abertura material da Constituição a direitos fundamentais atípicos no âmbito das Constituições portuguesas anteriores, notadamente as de 1822, 1826 e 1838.193

Na Constituição portuguesa de 1911, a cláusula de abertura a novos direitos fundamentais ou de abertura a direitos fundamentais atípicos, fora positivada em seu art. 4º, que assim dispunha: “A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna ou constam doutras leis”.

Já na Constituição de 1933, como bem explica Jorge Bacelar, numa formulação semelhante a que havia sido positivada na Carta Constitucional anterior, a cláusula de abertura a direitos fundamentais atípicos estava prevista em seu art. 8º, § 1º, que afirmava que “a especificação destes direitos não exclui quaisquer outros constantes da Constituição ou das leis”, “aditando a LRC 33-10 a referência a <<liberdades>>”.194

A atual Carta Constitucional portuguesa (Constituição da República Portuguesa de 1976) prevê, em seu art. 16, n. 1, uma das cláusulas de abertura a novos direitos fundamentais mais abrangentes do direito constitucional contemporâneo, dispondo que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”.

A doutrina constitucional portuguesa ao analisar o referido dispositivo, em que pesem as divergências, visualiza-o como sendo uma cláusula de abertura constitucional a

191 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 198-199. 192 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 253-266. 193 Em sentido contrário, isto é, pela não admissão de uma abertura constitucional a direitos fundamentais atípicos nas Constituições de 1822, 1826 e 1838, ver: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 325.

77 outros direitos fundamentais que não aqueles que estão positivados expressamente na Parte 1 (Direitos e Deveres Fundamentais) da Constituição: numerus apertus dos direitos fundamentais. Deste modo, para os constitucionalistas lusitanos, para além dos direitos formalmente constitucionais (expressamente positivados no catálogo) existem direitos materialmente fundamentais.

Jorge Miranda, ao discorrer sobre a referida cláusula de abertura, leciona que, os

direitos fundamentais do constitucionalismo português “não são apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciam; são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição material”.195 Assim, para ele, os direitos fundamentais podem ser fundamentais em sentido material ou em sentido formal. Em sentido material, os direitos fundamentais assentam-se na Constituição material, “decorrem dos seus princípios e, naturalmente, também eles – pelo seu elenco, pelo seu sistema e pelo seu regime – a integram e definem”.196 Em sentido formal, são direitos com correspondência formal (positiva) na Constituição escrita. Contudo, advirta-se que, para o referido autor português, “todos os direitos fundamentais em sentido formal são também direitos fundamentais em sentido material”.197

Examinando o art. 16, n. 1 da Carta Constitucional portuguesa, José Carlos Vieira de

Andrade afirma que “o âmbito material dos direitos fundamentais não se reconduz pura e

simplesmente ao catálogo contido na Parte 1 da Constituição”.198 Segundo ele, o referido dispositivo consagra um princípio de cláusula de abertura com escopo de enumerar fontes de direitos fundamentais para além da Constituição escrita, albergando os direitos fundamentais extraconstitucionais. Para o citado professor português, não há correspondência necessária entre jusfundamentalidade material e jusfundamentalidade formal, podendo um direito ser apenas formalmente fundamental ou materialmente fundamental.199

J. J. Gomes Canotilho, em apreciação ao dispositivo constitucional português de

abertura a novos direitos fundamentais, afirma que se trata de uma norma fattispecie aberta, isto é, que promove a abertura da Constituição a direitos fundamentais atípicos e consagra o princípio da não identificação ou da cláusula aberta. Segundo ele, os direitos consagrados e reconhecidos pela Constituição formal designam-se direitos fundamentais formalmente

195 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 195. 196 Ibidem, p. 202.

197 Ibidem, p. 11.

198 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 73.

78 constitucionais, enquanto os direitos advindos da abertura material da constituição designam- se direitos materialmente fundamentais ou, ainda, direitos fundamentais sem assento constitucional.200 Para Canotilho, assim como para Vieira de Andrade, nem todos os direitos formalmente fundamentais o são materialmente, isto é, “há direitos fundamentais consagrados na constituição que só pelo facto de beneficiarem da positivação constitucional merecem a classificação de constitucionais (e fundamentais), mas o seu conteúdo não se pode considerar materialmente fundamental”.201 Além disso, o professor português demonstra a existência de outras espécies de direitos fundamentais atípicos: os direitos fundamentais formalmente constitucionais, mas fora do catálogo, também chamados de direitos fundamentais dispersos (direitos fundamentais positivados na Constituição formal, contudo fora do catálogo – Parte 1 da Constituição portuguesa)202 e os direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (espécie mencionada pelo art.17 da Constituição portuguesa, cujos contornos são bastante imprecisos, segundo o próprio Canotilho).203

Em análise ao art. 16, n. 1 da atual Constituição portuguesa, Jorge Bacelar Gouveia afirma que ele realiza “uma abertura explícita a verdadeiros direitos fundamentais atípicos, norma que merece a qualificação de cláusula aberta por se referir na previsão a direitos fundamentais não especificados e na estatuição à sua admissibilidade constitucional”.204 E, tendo por base, predominantemente, o referido dispositivo de abertura constitucional a novos direitos fundamentais, o autor português formula sua definição de direitos fundamentais atípicos205 da seguinte maneira:

os direitos fundamentais atípicos correspondem aos direitos fundamentais que não constam da respectiva tipologia, sendo assim constitucionalmente relevantes sem recurso a um método tipológico na sua formulação. Tanto o adjectivo <<atípicos>>

como o substantivo <<atipicidade>>, que também utilizaremos por vezes, designam essa característica de os direitos fundamentais se não encontrarem constitucionalmente registrados através da sua especificação.206

João de Castro Mendes, em exame à cláusula de abertura a novos direitos

fundamentais da Constituição portuguesa de 1976, afirma que há dois conceitos distintos de

200 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 403-404.

201 Ibidem, p. 406. 202 Ibidem, p. 404-405. 203 Ibidem, p. 405-406.

204 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 484.

205 Lembramos, mais uma vez, que nossa concepção de “direitos fundamentais atípicos” não é a mesma do autor português.

79 direitos fundamentais: direitos fundamentais formais e direitos fundamentais materiais. Segundo ele, formais são os direitos fundamentais que pertencem à Constituição formal, enquanto materiais são os direitos fundamentais que possuem jusfundamentalidade material e que constam das leis e das regras de direito internacional.207

A doutrina portuguesa apresenta-se bastante rica em literaturas a contemplar a análise pormenorizada de sua cláusula de abertura aos direitos fundamentais atípicos, sendo que, além dos doutrinadores citados aqui, vários outros também se dedicaram ao tema.208 Nada obstante, acredita-se que com as considerações trazidas até agora e com as que se seguem possa se atingir o objetivo proposto neste tópico, isto é, demonstrar as linhas mais elementares da cláusula de abertura a novos direitos fundamentais do constitucionalismo português.

Após estas considerações preliminares da doutrina portuguesa sobre o panorama geral da cláusula de abertura a novos direitos fundamentais, passemos a análise específica de alguns pontos relevantes acerca dos direitos fundamentais atípicos em Portugal.

Em primeiro lugar, há de se falar da influencia da doutrina dos direitos naturais na

abertura constitucional aos direitos fundamentais atípicos. Nesse sentido, Jorge Miranda

destaca o fato de os direitos fundamentais “poderem ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base da vida humana no seu nível atual de dignidade”, assim justificando o apelo ao direito natural, ao valor da dignidade da pessoa humana, aos direitos derivados da natureza do homem ou mesmo da natureza do direito na jusfundamentalização material dos direitos.209 No mesmo sentido, José Carlos Vieira de Andrade afirma que a ideia de direitos não escritos, mas que ainda assim são direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, consagra-se num primeiro momento (antes da positivação de uma cláusula de abertura no texto da própria Constituição) na doutrina do jusnaturalismo moderno.210

Quanto à jusfundamentação dos direitos fundamentais no constitucionalismo português, em que pese algumas discordâncias, parece-nos quase unanime a adoção do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento matricial mais importante, no sentido de se exigir que um direito, para ser considerado materialmente fundamental, deva

207 MENDES, João de Castro. Direitos, liberdades e garantias: alguns aspectos gerais. In: Miranda, Jorge (org.).

Estudos sobre a Constituição. Lisboa: Petrony, 1977. v.1, p. 103-104.

208 Para uma ideia mais aprofundada das perspectivas doutrinárias portuguesas sobre o tema, ver: GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, especialmente p. 293-308.

209 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 12.

210 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 74.

80 proteger ou promover diretamente o aludido princípio.211 Isso se dá, considerando a própria essência dos direitos fundamentais que reside justamente na proteção e promoção da pessoa humana em face do poder estatal. Assim, nos Estados Constitucionais Democráticos da Idade Contemporânea, como Portugal, a dignidade da pessoa humana é considerada o fundamento primeiro de toda a estrutura estatal, devendo o ser humano ser o fim primeiro e maior do Estado e não o contrário (jamais podendo ser usado unicamente como meio para a consecução dos fins do Estado ou dos demais seres humanos).212 Nesse sentido, ao comentarem o art. 16, n. 1, Jorge Miranda e Rui Medeiros afirmam que “o n.º 1 consagra uma cláusula aberta ou de não tipicidade ou, doutro prisma, uma noção material de direito fundamentais, derivada da própria ideia de dignidade da pessoa humana cuja realização está para além de qualquer catálogo fixo”.213

Sobre as possíveis fontes dos direitos fundamentais atípicos reconhecidas pela abertura material da Constituição portuguesa (art. 16, n.1.), além do próprio texto constitucional (considerando aqui a abertura para o reconhecimento de direitos fundamentais em outras partes do texto, para além do catálogo da Parte 1, bem como os direitos implícitos), pode-se dizer, na esteira do pensamento de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, que elas são: as leis, que significam “qualquer acto legislativo”; e as regras aplicáveis de direito

internacional, que significam “designadamente os pactos nacionais referentes aos direitos do

homem e ratificados pelo Estado português”, bem como “os direitos reconhecidos no direito comunitário”.214 Sobre as fontes, vale registrar que Jorge Miranda admite ainda a possibilidade de se encontrar direitos fundamentais atípicos no âmbito do direito constitucional consuetudinário.215

No que se refere ao âmbito de aplicação da cláusula de abertura aos direitos fundamentais atípicos no constitucionalismo português, pode-se dizer que há certo dissenso em razão da amplitude da referida cláusula. De um lado, Jorge Miranda, Jorge Bacelar Gouveia, Paulo Otero, Rui Medeiros, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, dentre outros,

211 Nesse sentido, dentre outros: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 12; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição

Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 79-80; João de Castro. Direitos, liberdades e garantias:

alguns aspectos gerais. In: Miranda, Jorge (org.). Estudos sobre a Constituição. Lisboa: Petrony, 1977. v.1, p. 162.

212 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 79-80.

213 MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra, 2005, v.1, p. 138.

214 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada: artigos 1º a 107. 4.ed. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 365-366.

81 posicionam-se pela aplicação tanto no âmbito dos direitos individuais como no âmbito dos direitos econômicos, sociais e culturais. De outro lado, Henrique Mota, Casalta Nabais e Isabel Moreira, dentre outros, posicionam-se pela aplicação restrita no âmbito dos direitos individuais.216

Apenas como exemplos, tendo como base os estudos de Jorge Miranda,217 Jorge Bacelar Gouveia218 e José Carlos Vieira de Andrade,219 pode-se apontar os seguintes direitos fundamentais atípicos reconhecidos pela cláusula de abertura a novos direitos fundamentais: a) advindos da lei: direito ao nome, direito de recusa de exames e tratamentos hospitalares, liberdade de associação patronal, direito de assistência religiosa nos hospitais etc.; b)

implícitos ao texto constitucional: direito à integridade física, direito à identidade pessoal,

direito à cidadania, liberdade de trabalho e profissão etc.; c) previstos em outras partes do

texto constitucional (fora do catálogo): direito de não pagar impostos inconstitucionais (art.

103, n. 3), direitos de participação política (arts. 122, 124, n. 1, 239, n. 4), direitos dos trabalhadores (art. 276, n. 7) etc.; d) advindos das regras do direito internacional: proibição da prisão por dívidas, direito à razoável duração do processo civil, direito dos pais assegurarem a educação dos filhos conforme suas convicções religiosas etc.

Em relação à extensão do regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias fundamentais aos direitos fundamentais atípicos, como salienta Jorge Bacelar Gouveia, não há unanimidade na doutrina constitucionalista portuguesa. Nada obstante há duas posições que são mais comuns: De um lado, há aqueles (maioria da doutrina) que acreditam que deva se estender apenas parcialmente o referido regime aos direitos fundamentais atípicos e, de outro lado, há aqueles que acreditam que se deva estendê-lo totalmente.220 Jorge Bacelar, por sua vez, propõe que, ao invés da extensão (parcial ou total) do regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias fundamentais aos direitos fundamentais atípicos, “estes direitos devem beneficiar de um regime jurídico totalmente idêntico ao dos direitos fundamentais típicos”.221

Por fim, há de se ressaltar, mais uma vez, a importante contribuição da doutrina portuguesa para o desenvolvimento teórico e prático dos direitos fundamentais atípicos, bem como da cláusula de abertura que lhes dá origem, amparando, assim, a construção e o

216 Posicionamentos identificados na nota de rodapé de nº 3, nos estudos de: MIRANDA, Jorge. Manual de

Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 199.

217 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 5.ed. Coimbra: Coimbra, 2012. v.4, p. 206-210. 218 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 374-383. 219 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 81-93.

220 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Os Direitos Fundamentais Atípicos. Lisboa: Aequitas, 1995, p. 415-429. 221 Ibidem, p. 430.

82 reconhecimento mais seguro desses direitos. Importância esta que transpassa a ordem jurídica portuguesa e influência muitos outros países, inclusive, o Brasil.

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2. A CLÁUSULA DE ABERTURA A NOVOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA

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