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A classificação que as lojas fazem dos clientes

CAPÍTULO 2. COZINHAR, ADORAR E FAZER NEGÓCIO: A CASA HINDU

2.3. As lojas das Casas

2.3.3. A relação com os clientes

2.3.3.1. A classificação que as lojas fazem dos clientes

O que se vende especialmente faz a clientela fixa, mas os hindus vendem também para uma clientela que não se fixa em uma ou outra loja, clientes que passam de loja em loja procurando um negócio. Para os hindus, os clientes que não são conhecidos e ainda não possuem dinheiro, são clientes com quem se relacionam de forma distante, embora aberta à negociação sobre preço. Com estes clientes não se negocia prazo, a venda só se faz se tiverem dinheiro na mão. O cliente entra, pergunta se há prego, o lojista diz que há, o cliente pergunta o preço e o lojista anuncia o preço. O cliente então vira as costas e o lojista lhe pergunta quanto tem em dinheiro, o cliente pode não responder e dando de ombros sair da loja, mas também

pode anunciar uma quantia e então o lojista poderá lhe vender o produto em quantidade que lhe pareça pagar o custo. O cliente eventual pode ser um ambulante eventual e quando o lojista lhe pergunta quanto tem em dinheiro, o cliente pode responder mostrando-lhe uma mercadoria, o que pode não resultar em negócio em uma loja, mas pode vir a resultar em negócio em outra loja.

Entre os clientes eventuais os que mais interessam aos lojistas são aqueles que estão preparando casamentos, pois podem ser moradores do mato, bastante afastados da cidade, que usam outras formas de se abastecer - por meio das lojas dos distritos, por exemplo - mas que frente à cerimônia de casamento vão até as lojas de Inhambane – capital da Província – para fazer as compras de roupas para os noivos e ainda das prestações relacionadas ao casamento. Senhor Manishankar, lembrando dos tempos de bom negócio em Inhambane, diz que bom negócio era feito com os magaíças, que vinham das minas sul-africanas com libras e compravam na loja tudo para o casamento, menos o boi. Considera-se que atualmente se gasta muito menos com os casamentos, mas ainda assim esse é um negócio valorizado e para o qual as lojas empenham-se em atrair clientes. Outro cliente esporádico e procurado é o que abre uma

barraca - estabelecimento comercial que vende bebidas na periferia - e que pode tomar uma das

lojas como seu distribuidor. As barracas são consideradas pontos de comércio efêmero, que hoje têm um dono e amanhã têm outro e por esta razão os lojistas relacionam-se com elas com relativa possibilidade de negociação de prazo, mas sempre com negociação de preço e forma de pagamento.

Entretanto, o comércio corriqueiro que garante entradas sistemáticas é feito com os clientes que são empregados na cidade de Inhambane. São professores das escolas, policiais, atendentes de estabelecimentos comerciais (farmácias, bares, restaurantes), burocratas, radialistas, enfermeiros, cooperantes internacionais e a elite política e administrativa local. Cada loja possui um número mais ou menos fixo de clientes deste tipo, muitos dos quais compram a prazo. As compras assim acontecem em meio a conversas sobre as famílias e trabalhos respectivos. Trata-se de uma compra de produtos e também de uma troca de serviços. Os clientes– como os empregados não-hindus e alguns dos ambulantes com quem se faz

negócio mais sistematicamente – são identificados por relações de famílias: pai de, irmão do,

etc. Muitos dos hindus foram colegas de algumas destas pessoas na escola ou se conhecem pelas instâncias de trabalho destes clientes. Tratam com eles sobre os filhos na escola, sobre a

segurança das lojas, sobre as formas de receber atendimento no hospital ou em posto de saúde, sobre encomendas do correio e outros assuntos cotidianos.

Assim, é notável a diferença de relação estabelecida entre os lojistas e seus compradores sistemáticos e com os compradores esporádicos. Com estes, da parte dos lojistas, há uma atitude de indiferença e desinteresse. Muitas vezes não se cumprimenta e nem se dirige o olhar para o cliente que entra, respondendo às suas perguntas com poucas palavras e só investindo numa conversa de negócio quando se tratar de compras para cerimônias ou para passar-lhe bebidas para barracas. Já com os compradores sistemáticos, a relação é de proximidade e troca de informações e serviços. Os compradores sistemáticos compram mensalmente itens como óleo, sabão, arroz e açúcar e pagam por eles em seus dias de pagamento.

É no dia de pagamento (no meio ou no final de cada mês) que se vê as lojas mais cheias e é também nestes dias que se assiste a situações de tensão envolvendo os clientes habituais e os lojistas. As tensões que acontecem nas lojas nos dias de pagamento dos cadernos evidenciam um debate que revela algumas das concepções que os não-hindus têm sobre os hindus. Trata-se da forma como os não-hindus pensam a atividade comercial dos hindus, bem como da relação entre esta atividade e a família.

O dia de pagamento dos cadernos é um dia de conversas longas em torno aos cadernos de anotação das compras. Alguns clientes podem suspeitar que as anotações nos cadernos incluem produtos que não foram comprados ou preços mais altos do que se supunha e por último acreditam que no mês anterior pagaram alguns itens que não foram computados como pagos. Os lojistas defendem seus registros, uma discussão acontece, uns concebem os outros como confusionistas, espertos e malandros. E a discussão é terminada com um acerto que depende da capacidade de cada um dos lados de argumentar em favor de sua interpretação sobre o que deve ser pago. A discussão é sistemática e faz parte do processo de negociação. Eventualmente acontece de um cliente sair e dizer que nunca mais colocará os pés numa determinada loja, mas o mais comum é que aconteça um acerto consensual e saindo desta loja é encontrado em outra. É uma tensão repetida e controlada, pois de ambos os lados há interesse em continuar negociando. Para além de reconhecerem-se como lojistas e clientes, há um reconhecimento pautado por relações de vizinhança, de escola ou de troca de serviços, e estas interações colocam os hindus frente a não-hindus, e vice-versa, como pessoas relacionadas às famílias.

A filha da professora de um dos filhos da Casa Maitri desentendeu-se com o senhor Samrat, que é o único homem casado e filho da casa, no dia do pagamento das contas. No outro dia sua mãe foi desculpar-se em nome da filha. A conversa aconteceu num contexto de visita, em que a professora sentou-se, bebeu um refresco e experimentou um pedaço de bolo preparado na cozinha. Em outra situação, um policial considerou confusas as contas da senhora Kahini e no outro dia, na loja de seu pai, reclamava das contas já pagas. Mais um exemplo é o do filho do empregado do Mercado Chanakya, que reclamou do preço de uma mercadoria na loja de senhor Darpak. Seu pai foi averiguar e observou que o mesmo produto era vendido em loja Manishankar por preço mais baixo porque os estoques eram velhos. Há uma rede de clientes, que ao mesmo tempo são empregados ou relacionados a eles e que também prestam serviços aos hindus, que respeita um código pautado por um repertório que identifica laços considerados de família de ambos os lados.

Há ainda outros clientes com quem os hindus possuem um tipo distinto de laço: os que ocupam os cargos administrativos e políticos na cidade e os europeus. Com alguns dos primeiros, os hindus utilizam o seu conhecimento sobre a cidade para indicar famílias e travam com estes relações semelhantes às travadas com os seus clientes preferenciais, descritos anteriormente. São, todavia, consideradas relações mais distanciadas e restritas às Casas economicamente mais fortes. Há também muitos casos em que os cargos políticos e administrativos mais elevados são ocupados por pessoas que são de outras Províncias, o que inibe a identificação das famílias às quais pertencem. Ao lado destes, estão os considerados

europeus, categoria atribuída genericamente aos estrangeiros não indianos, pelos indianos. Europeus e elite administrativa e política raramente compram a prazo, no caderno. Na verdade,

eles preferem comprar em Maputo e na África do Sul por considerarem que só nesse lugares conseguem satisfazer seus anseios de consumo na variedade e preço, mas também porque, embora alguns estejam filiados a laços de solidariedade com determinadas lojas, genericamente o comércio realizado pelos hindus é considerado um comércio desonesto.

Estes clientes – diferente dos professores, policiais, empregados da administração pública, empregados dos hindus e comerciantes – preferem fazer compras na África do Sul e Maputo, mas residindo em Inhambane, fatalmente precisam usar das lojas. São disputados por algumas lojas que procuram estar com seus estoques em dia para satisfazê-los. Os europeus e a elite político-admnistrativa também têm suas preferências e tentam comprar numa mesma loja

na tentativa de estabelecer um vínculo, mas que se restringe a estas compras esporádicas. Fora das lojas, raramente europeus e elite político-administrativa se encontrarão com os hindus. Alguns poucos foram colegas de escola da elite administrativa e os serviços prestados por esta não são diretamente relacionados às lojas hindus. Para além das lojas, os estrangeiros, geralmente vinculados à cooperação internacional ou a prestação de serviços de turismo, estão em relações indiretas com os hindus. Assim que estes clientes também manifestam, com relação aos hindus, um parecer que se expressa geralmente fora da loja e em outros termos que os dos clientes que descrevi acima.

A crítica que fazem às lojas hindus foi ouvida não em dias de pagamento, mas em conversas que aconteceram comigo sobre minha pesquisa. Neste contexto, os europeus e integrantes da elite político-administrativa local comentam sobre a desonestidade do comércio moçambicano em geral. Percebem que há preços diferentes para pretos e para brancos, para

nativos e para estrangeiros e não estão de acordo com este procedimento, mas consideram que

esta prática - quando feita por um moçambicano - é aceitável em razão da pobreza. Todavia, no que diz respeito aos lojistas hindus (ou mais genericamente, a indianos), acreditam que a oscilação de preços resulta de uma conduta desonesta e gananciosa, pois os lojistas hindus não seriam pobres. Examinando o ponto de vista manifesto por tais clientes, quero dar visibilidade a uma das representações correntes sobre a família hindu, de um ponto de vista externo a ela. Esses comentários serão mais uma vez aproximados aos discursos acadêmicos sobre a presença indiana em Moçambique.