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CAPÍTULO 2. COZINHAR, ADORAR E FAZER NEGÓCIO: A CASA HINDU

2.3. As lojas das Casas

2.3.2. Fazer negócio com e para a família na loja e fora dela

2.3.2.1. Quem faz negócios

Todos os moradores, ainda que tenham outras ocupações, possuem atribuições nas lojas. Os homens, desde que começam a preparar seu casamento, respondem pela loja em primeiro lugar, mas sua ausência não impede o funcionamento do estabelecimento. Senhores e senhoras,

grandes e miúdos sabem dar conta das lojas. Privilegia-se que a loja funcione apenas com os

moradores a ela ligados, mas há lojas que têm empregados. O número de pessoas que se toma como responsáveis pelas lojas permite ter uma ou mais lojas. A maior parte dos empregados é não-hindu, mas há também empregados hindus. Comparando a relação estabelecida entre empregador hindu e empregado hindu e empregador hindu e empregado não-hindu, nota-se como a referência a laços familiares oferece o repertório para tratar das diferentes relações.

Apenas duas Casas não possuem lojas e seus homens adultos trabalham nas lojas de patrícios. Outra situação de empregado hindu que acontece é a de uma miúda trabalhar em loja de um patrício para preparar seu casamento, caso em que a loja de seu pai prescinde de seu trabalho por ter outros moradores e também por ter pouco negócio. Embora não se espere hoje em dia que um empregado hindu venha a ter sua própria loja em Inhambane, como já foi o caso quando da migração Diu-Moçambique, espera-se que os empregados hindus possam co- responsabilizar-se pelo negócio de seu empregador. Já dos empregados não-hindus é freqüente

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O uso da palavra patrício (glosada em dicionários da língua portuguesa, consultados no Brasil, como “que ou aquele que é compatriota, conterrâneo”, cf. Houaiss), entre os hindus em Inhambane muitas vezes refere-se apenas a relações familiares que acontecem entre empregador e empregado hindu. Ou seja, quando uma pessoa fala-me de sua relação com outro hindu para quem trabalha ou que é seu empregado, designa-o patrício, mas quando estas mesmas pessoas falam uma da outra e não estão vivendo uma relação de empregador e empregado, usam outras das designações-expressões possíveis para falar de relações familiares: é família, é dos nossos, é filho do irmão de

não se esperar que eles associem-se aos empregadores como membros co-responsáveis pelo negócio. Embora, como se verá no capítulo 5, os hindus se relacionem com não-hindus, inclusive em relações familiares, frente a eles, todos os hindus se reconhecem como família. Potencialmente, crê-se possível uma sociedade econômica com um hindu e não com um não- hindu, ainda que estas também existam.

Os dois homens que trabalham em lojas de seus patrícios são empregados registrados, como os demais empregados das lojas, mas estão numa situação diferente. Enquanto o empregado hindu assume a loja de seu patrício em caso de falta dele (por viagem, por exemplo), um possível não-hindu é considerado genericamente não-confiável. Ouvi algumas histórias de empregado hindu que roubaria o patrício, mas elas são narradas como excepcionais e inesperadas, já dos empregados não-hindus diz-se que é sempre preciso ter cautela. Em várias lojas contaram que o empregado fica na loja e vai tirando aos pouquinhos mercadoria e dinheiro. Considera-se que os empregados não-hindus não aprendem a trabalhar com suas famílias, que tiveram pais que não trabalharam ou que foram explorados no trabalho e que uma e outra razão faz com que eles não valorizem o trabalho. Considera-se também que o empregado não-hindu não tem visão de futuro e, não se contentando em esperar para acumular o dinheiro de seu trabalho - como se supõem que fazem os empregados hindus -, acaba com todo o dinheiro que tem e, em dívida, compromete o próprio emprego. Na hora do almoço, os empregados hindus vão comer em suas cozinhas. Muitos empregados não-hindus comem das cozinhas de seus empregadores, mas na hora do almoço eles saem da loja e da cozinha, esperando no quintal ou na marquise em frente à loja e só depois do almoço dos empregadores, eles entram na cozinha, pegam seu almoço servido pela senhora, almoçam no quintal e depois lavam os pratos. A porta do quintal para a residência é chaveada para que os donos possam dormir até a hora de abertura da loja103.

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. Pode-se também comparar os atuais empregados hindus com os chamados, termo utilizado em relação a

chamador para dizer dos homens que saíram de Diu para Inhambane chamados por seus patrícios. Os termos

parecem designar uma série de obrigações implícitas (informações, recursos materiais, apoio, etc) e revela aspectos da migração Diu- Inhambane. Os empregados hindus trabalham para seus patrícios como os antepassados trabalharam na condição de chamados (por um patrício). Todavia, diferenças importantes existem entre uns e outros. À diferença do chamado, o empregado hindu já está estabelecido em Inhambane e não tem a dívida inicial da passagem com o chamador. Tem sua própria residência e não mora com o patrício com quem trabalha. Também não recebe do empregador o corte de cabelo, nem a muda de roupa. Outra diferença é que ele recebe seu salário mensal, ao contrário do chamado que tinha o salário retido pelo chamador até que, passados mais ou menos 5 anos, tivesse acumulado o suficiente para à Índia casar e estabelecer-se lá ou em Moçambique. O estabelecimento

Os empregadores não demonstram apenas uma visão depreciativa sobre empregados não-hindus, também lhes creditam poderes e os temem. O empregador hindu reconhece a possibilidade do empregado não-hindu ser ou poder utilizar um poder sobre o qual o empregador não tem qualquer possibilidade de intervenção: a feitiçaria (cf. Fry: 2000). Uma senhora hindu queixava-se de uma empregada, mas para despedi-la teve especial cuidado, esperando pelo momento em que um filho de Maputo a visitava para dizer à empregada que o filho a levaria embora. Se a empregada achasse que estava sendo despedida para ser substituída por outra, poderia se zangar e fazer feitiço contra a Casa. Além da crença na feitiçaria dos empregados, os empregadores hindus acreditam na capacidade ervateira deles. Doenças de pele que aparecem em si, nas crianças, nos velhos ou no cachorro são mostradas aos empregados não-hindus da cozinha ou da loja. Compartilhando uma visão geral de que não-hindus não são família e, comparativamente aos considerados indianos mesmo seriam menos confiáveis e também manipuladores de códigos mágicos e de cura, os empregadores hindus se acercam de cuidados na contratação, buscando sempre atuar dentro de uma rede que permita um pacto por meio do qual, ainda que não se espere traçar “relações de família”, seja possível contratar não- hindus de quem se conhece a família104. Alimentando redes com descendentes de empregados de hindus ou, por meio deles, entrando em outras redes familiares, intermediadas por aquelas, os empregadores hindus, confiam na possibilidade de trocar com famílias que não são suas105. Os empregados não-hindus são conhecidos como pais, filhos, irmãos, etc. de outros que foram empregados de famílias hindus ou foram intermediados por famílias hindus ou por elos estabelecidos com elas. E, intermediados por estas relações, endereçadas por termos familiares, os empregados não-hindus, são considerados confiáveis e, portanto, possíveis parceiros econômicos.

Levando em consideração este cálculo, os proprietários de lojas hindus ampliam ou diminuem os negócios que fazem, tendo em vista o número de pessoas potencialmente capazes

de uma nova loja tinha o chamador como fiador, como repassador de mercadorias e outros bens que auxiliam no

processo da nova loja.

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Este suposto contrato entre famílias permite que, por exemplo, na ausência de um empregado por motivo de doença, este seja substituído por outro de sua família neste interregno. O pagamento é um só.

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Ganhos indiretos (roupas de bebê, calçados, comida, morar na cidade, trazer crianças , ajuda em questões de saúde, transporte e intermediação) são, como se apresenta também na literatura brasileira que trata da relação entre empregador e empregado-doméstico (Koffes, 2001), moedas valorizadas e que permitem constituir pessoas constituidoras de redes de emprego e, por extensão ou combinação, de relações. Em nome da cumplicidades com estas pessoas, que estão aliadas aos possíveis empregadores e aliadas aos possíveis aliados é que se mantém uma rede fluída de trocas neste campo.

de, não apenas atender nas lojas, mas responsabilizar-se por ela enquanto um empenho econômico que faz referência a um conjunto de pessoas relacionadas por laços familiares. Analisando o número de lojas por Casa nota-se a articulação entre sociedade econômica e arranjo familiar nos diferentes momentos do curso da vida.

Quando há uma unidade doméstica e uma loja, mais freqüentemente se manda os filhos para Londres para complementar os custos que a Casa terá com cerimônias. Com uma unidade doméstica e uma loja em Inhambane, é possível juntar todos os braços para o trabalho coletivo na cidade e ainda liberar um jovem para que envie libras aos pais. Casas com duas unidades domésticas e duas lojas indicam separação recente entre irmãos, o que significa trabalho dobrado para ambos nas duas unidades domésticas e lojas em Inhambane, sendo mais raro nestes casos o envio de alguém para fora de Inhambane. Um terceiro arranjo é o de uma Casa com duas lojas e duas unidades domésticas em distritos distintos da Província. Também nestes casos é menos comum que se envie pessoas para fora da Província de Inhambane, pois isso diminui o número de pessoas para dar conta do trabalho nesta estrutura. Há ainda o arranjo de uma unidade doméstica e duas lojas, que acontece, geralmente, como fase preparatória de uma separação. Os irmãos que se separam, antes de fazê-lo, procuram ter um negócio próprio e apenas depois que se mostram relativamente firmes é que tentam ter sua própria unidade doméstica. Outra situação é quando há duas unidades domésticas e uma loja que resulta de famílias que tiveram mais moradores atualmente dispersos, o que acontece com a Casa Locknath. O filho mais velho saiu com a esposa no final dos anos 80 para uma unidade doméstica separada, depois de já ter aberto uma loja distinta da do pai. Anos depois, o pai faleceu e os irmãos mais novos resolveram fechar a loja do pai e tentar negócio em Maxixe e Londres, para onde foram, deixando em Inhambane a casa de pai com a viúva e a esposa de um dos filhos. Assim, o filho mais velho mantém sua loja e unidade doméstica separada e é a partir dela que sustenta sua mãe.

Há um cálculo que conduz as estratégias econômicas das Casas. O cálculo leva em consideração as pessoas com quem se pode contar para efetivar uma ação produtora de ganhos econômicos, as necessidades da Casa vinculadas ao seu ciclo de reprodução e as oportunidades de negócios que se apresentam. A descrição dos negócios que envolvem as famílias hindus exibe os conteúdos do que se considera negócio, que dão visibilidade ao entrelaçamento entre Casa e loja, embora não se restrinjam a esse espaço. Vê-se também que negócios das lojas se

fazem com uma rede informal aliada à loja hindu por meio da identificação de famílias não- hindus.