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CAPÍTULO 1. DA LITERATURA SOBRE A PRESENÇA INDIANA EM

1.2. A caracterização da família hindu nos estudos sobre a presença indiana em Moçambique

1.2.2. A família hindu e a família muçulmana

Outro contexto em que a família hindu é caracterizada é o de alguns estudos que buscam mostrar a diferença entre muçulmanos e hindus. Há um consenso, notado na documentação portuguesa do período entre o século XVI e o XVIII, segundo o qual os muçulmanos, por suas pretensões proselitistas, se miscigenam e os hindus, em função de suas regras de casta, não. Aqueles estudos corroboram tal afirmação e ainda buscam identificar no hinduísmo as regras para o suposto comportamento dos hindus.

Os hindus são concebidos como totalmente condicionados às regras religiosas, enquanto os muçulmanos são pensados como livres de condicionantes religiosos. Rita-Ferreira (1985), abordando a relação entre a coroa portuguesa e a presença indiana, explica que aquela demonstra e cria mais empecilhos aos muçulmanos do que aos hindus. Essa situação se deveria ao fato de que os muçulmanos, ao contrário dos hindus, teriam pretensões proselitistas. O autor argumenta que uma das formas de proselitismo muçulmano é a prática de casamento com mulheres classificadas como nativas e o reconhecimento dos filhos “mistos”. Os portugueses preocupavam-se com a possibilidade de que a população “nativa” se mestiçasse com os muçulmanos e não com os cristãos. Do ponto de vista da coroa portuguesa, “os rígidos preceitos religiosos hindus” condicionavam as práticas econômicas e familiares desses, enquanto os muçulmanos teriam maior “liberdade religiosa”, tanto para economia, quanto para as relações familiares: “ao contrário dos baneanes, os maometanos cruzaram-se livremente com mulheres africanas, reconhecendo os filhos mestiços e integrando-os na família poligâmica” (Rita-Ferreira, 1985: 636).

Zamparoni (2000), ao caracterizar a presença indiana em Moçambique no início do século XX, também opõe os traços de liberdade da organização muçulmana à rigidez da organização hindu. O autor afirma, com relação aos muçulmanos, que eles seriam “livres de

paralisantes normas e regras de castas e seguindo uma religião que permite a poliginia” (:213) mantém-se menos isolados, fazendo proselitismo e casando e / ou vivendo em concubinagem com mulheres locais. Já em relação aos “baneanes hindus”, o autor faz a seguinte descrição: “submetidos a minucioso comportamento imposto por regras, os “baneanes” não podiam casar- se senão com pessoas “puras”, de mesma origem e nível em tal hierarquia” (:213).

Zamparoni considera que os hindus não tinham mais do que relações comerciais com as populações locais. E que quando havia relação conjugal ou de filiação esta se dava como resultado do interesse de ampliar as alianças econômicas. Usando parte do depoimento de Raul Honwana, o autor mostra que os hindus- diferente dos muçulmanos – tinham filhos com mulheres a quem não reconheciam direitos de nomeação e herança no momento em que terminavam os interesses comerciais destes em Moçambique, o que os levava de volta para Índia sem deixar apoio a sua mulher e filhos.

Deixando o texto de Zamparoni e indo até a autobiografia de R. Honwana (1985) percebe-se que o destino de sua mãe, que havia sido lobolada por um indiano, não foi o abandono65. Também os filhos que resultaram deste casamento, e que são os meios irmãos mais velhos de R. Honwnana, não ficaram sem pai. Tal atitude é ilustrativa da conduta de alguns estudos sobre a presença indiana em Moçambique que concebem que as regras de separação do sistema de castas impediria que os hindus mantivesses relações de aliança com não hindus. Resumo a descrição de Honwana sobre o lobolo de sua mãe:

Vulande Hunguana foi lobolada por um indiano de nome Harichande Tricamo. Ele era um mercador abastado, tinha machileiros e carregadores e negociava essencialmente em Gaza. Por várias vezes se deslocou com minha mãe a Mandlakazi, à corte de Gungunhana, para fazer negócio. Minha mãe contou que Harichande armazenava o seu dinheiro em garrafões que depois enterrava. Naquele tempo, os mercadores indianos raramente traziam consigo as suas mulheres quando vinham negociar em África, acabando por deposar aqui raparigas locais. Minha mãe teve com Harichande uma filha a minha irmã mais velha, Habiba. Em dada altura Harichande foi para Índia e nunca mais regressou. A Habiba cresceu em Lourenço Marques em casa dos seus tios, irmãos de seu

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Junod (1996) considera o lobolo uma espécie de compensação, ao grupo que doa uma mulher, com a finalidade de garantir o equilíbrio entre os diferentes grupos que compõem um clã.: “o primeiro grupo adquire novo membro e o segundo sente-se diminuído e reclama alguma coisa que lhe permita reconstituir-se por sua vez, pela aquisição doutra mulher. Somente esta concepção colectivista explica todos os fatos” (:257). Levi-Strauss (1982) discorda que o lobolo possa ser explicado como dote, uma vez que ele nem acompanha a noiva, nem é seu pagamento, pois a mulher não é objeto de apropiração: “que é então o lobola Na África do Sul consiste sobretudo em gado, e para os Banto, “o gado é o intermediário essencial de todas as relações rituais entre os grupos humanos” (:508). Para um estudo contemporâneo sobre o lobolo no meio urbano: Granjo: 2004.

pai (...) Após a ida do Harichande para Índia, minha mãe foi “herdada” pelo seu irmão Prossotamo Tricamo. Isto era permitido pelas leis do lobolo; a mulher continuava na mesma família (...) minha mãe teve mais duas filhas com Prossotamo... (R. Honwana, 1985: 24)

O testemunho de R. Honwana confirma a noção de que depois de um tempo o indiano voltava para Índia. Mas, sem contrariar as “leis do lobolo”, sua mãe ficou na família do marido na qualidade de mulher do irmão com quem teve mais dois filhos. Não há menção de que os filhos ou a esposa tenham sido abandonados por não serem reconhecidos da família66.Mas Zamparoni ignorou esta parte do testemunho seguindo em consonância com o suposto de que em sendo hindus estão submetidos à regras que incondicionalmente acatam.

Como forma de descrever a organização familiar e ainda para justificar as relações diversas que o Estado colonial manteve com os diferentes sub-grupos internos à categoria indiano é que se destaca o caráter de rigidez da organização da família indiana hindu em Moçambique. Enquanto as “paralizantes e rígidas” normas do hinduísmo prescreveriam o comportamento familiar desse grupo e de certa forma o defenderia das ganas do poder colonial, “a liberdade” dos preceitos do islamismo o colocaria em oposição às pretensões portuguesas católicas.