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Da coincidência entre o discurso acadêmico e o senso comum moçambicano acerca da família

CAPÍTULO 1. DA LITERATURA SOBRE A PRESENÇA INDIANA EM

1.4. Da coincidência entre o discurso acadêmico e o senso comum moçambicano acerca da família

Mantendo em perspectiva o estudo das representações de não-indianos sobre a família indiana hindu e as hipóteses sugeridas por Thomaz (2004) de que tais atribuições sustentam a alocação dos indianos no lugar estrutural de inimigos da nação, não posso deixar de observar

uma coincidência entre o discurso acadêmico e o discurso dos não indianos urbanos que diz respeito à família indiana (hindu) em Moçambique80.

Se de fato os indianos não se apresentam como particularmente importantes no conjunto das inquietações sobre processos contemporâneos em Moçambique, também há que se reconhecer que quando objeto de investigação, há um notável privilégio em investigar as relações dessas populações com o Estado moçambicano, seja o colonial, seja o pós-colonial. Também é digno de nota que alguns desses estudos fazem afirmações que partem de um ponto de vista externo às próprias representações hindus quando caracterizam a família hindu com base na relação que supõem que haja entre ela e o sistema de castas e o hinduísmo, ambos caracterizados como códigos de classificação rígidos e estáticos.

Chamo a atenção aqui para o fato da literatura sobre a presença indiana silenciar sobre ou reproduzir aspectos da idéia de que se trata de uma família conservadora e associada a uma instituição classificatória concebida como rígida. Se isso não alimenta, pelo menos corrobora a representação pejorativa que o senso comum de cidades do sul de Moçambique expressa sobre as populações de origem indiana.

Seguindo a perspectiva de Thomaz (2004) no que diz respeito às representações sobre os indianos – segundo a qual, a acusação que paira sobre a presença indiana em Moçambique localiza os indianos no lugar de um traidor da comunidade política em formação – é possível associar o pensamento que sustenta a perspectiva assumida pela literatura – seja no silêncio de estudos sobre a família, seja na reprodução de uma afirmação já reificada - a um pensamento defendido por Gilberto Freyre. Num artigo publicado, em 1963, no jornal moçambicano Notícias, no contexto da retomada do Estado da Índia Portuguesa pela União Indiana, o autor trata do “caráter anti-moderno das castas”. Sugiro que a coincidência entre o discurso de não- indianos e o silêncio ou reificação da literatura acadêmica sobre a família indiana em Moçambique são sustentados pela aceitação do pressuposto de que o sistema de castas é um sistema não-moderno e, portanto, tradicional, conservador, estático e permanente.

Segundo a perspectiva de Debert (1998), há uma função politizadora na pesquisa antropológica na medida em que ela exibe os pressupostos que guiam discursos científicos, supostamente neutros, sobre determinados fenômenos sociais. A autora apresenta essa reflexão

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No capítulo 5, no exame do debate sobre o suposto racismo dos indianos, busco identificar aspectos do que chamo de senso comum urbano.

a partir do estudo dos pressupostos que guiam as pesquisas sobre o envelhecimento nas sociedades contemporâneas. A reflexão de Debert é particularmente interessante aqui, pois trata-se da análise de um fenômeno que, tal como o que estou examinando, é concebido como um problema social. Na opinião de Debert, a crítica aos pressupostos que sustentam as pesquisas sobre envelhecimento se faz ainda mais importante na medida em que tal fenômeno é tomado como um problema social, ou seja:

como um problema que coloca em causa a reprodução da sociedade e do grupo nacional. Concebido como perigo, o envelhecimento (...) oferece a certos agentes a oportunidade de exercer uma magistratura meta-política em um domínio ainda pouco constituído politicamente (Debert, 1998: 26).

Debert lembra que o saber científico produz fatos normativos e que uma das tarefas da pesquisa antropológica é justamente a de politizar esses domínios supostamente neutros, evidenciando seus aspectos históricos, que deixam ver os agentes envolvidos na luta pelas definições, os tipos de arma e de estratégias que utilizam, bem como as representações dominantes na organização das práticas consideradas legítimas. A autora, em consonância com o raciocínio de Bourdieu (1985), afirma que, frente a um problema social, a tarefa da antropologia (ou da ciência social, de forma mais abrangente) é a de compreender a sua constituição, inquirindo sobre o “conjunto de representações que orientam as práticas destinadas a solucioná-lo. O trabalho do antropólogo envolve um rompimento com as definições dos fenômenos socialmente admitidas” (:21).

Tendo em vista essa perspectiva sobre a pesquisa antropológica, sugiro que as representações veiculadas - ou silenciadas - pelos estudos sobre a presença indiana em Moçambique no que diz respeito à família hindu se alimentam, são favorecidas e favorecem o contexto sóciopolítico em que são enunciadas e no qual as populações de origem indiana são supostamente um “corpo à parte”. Os capítulos seguintes, através da descrição da dinâmica da família hindu em Inhambane, vão de encontro à descrição do caráter conservador e estático da família indiana hindu e ainda mostram os limites de uma perspectiva que supõe que a família hindu é o resultado da obediência às regras estabelecidas por um certo sistema de castas e pelo hinduísmo. Antes, porém, é necessário indicar que, para além do contexto moçambicano, outros fatores – localizados no nível teórico e metodológico – participam da constituição da categoria família e, em especial, da categoria família indiana hindu como lócus da permanência.

Há uma vasta literatura que analisa o fato da categoria família ser considerada desinteressante para o estudo de processos contemporâneos (Viveiros de Castro, 1995; Bestard, 1998; Goody, 1998; Collard, 2000; Ouellette et Dandurand, 2000 e Barry, 2000). Na opinião de Bestard (1998), a marginalidade do parentesco em relação aos aspectos privados da sociedade moderna e seu papel central nas sociedades tradicionais são um índice dos limites da conceitualização do social no pensamento moderno. Na opinião do autor, a família e o parentesco são preteridos na análise de processo sociais na modernidade, cujos principais objetos de investigação estão no campo da política e da organização do Estado, nas esferas públicas e na economia. Goody (1998) observa que a organização familiar hindu é tomada no senso comum intelectual como o aspecto que trava a modernidade das empresas capitalistas desprovidas de interesses dinásticos. Os dois autores exibem o conteúdo equivocado destas suposições e é com esta reflexão que concluo o capítulo, buscando situar os pressuposto que guiam a descrição da família hindu em Moçambique.

Bestard destaca que o fato das relações de parentesco referirem-se a uma experiência imediata que está na base da experiência e da visão de mundo dos cientistas sociais torna ainda mais difícil a análise do fenômeno81. Na opinião deste autor, a linguagem supostamente técnica dos estudos de parentesco não deixa de evidenciar os pressupostos culturais do pesquisador. Ao examinar a história da família européia, ele nota que os estudos tenderam a insistir nas idéias de persistência e continuidade, deixando de lado os aspectos que mostram a mudança das formas familiares, o que está relacionado ao fato de relegarem a família ao terreno da homogeneidade, da continuidade e da intemporalidade, enquanto a inovação, variação, mudança e diversidade são situadas nas esferas da economia, da política e da cultura: “Las relaciones de parentesco se han convertido así en el soporte de una identidad continuada sobre la que ha sido posible construir los diferentes cambios historicos” (1998: 22).

Berstard e Goody resgatam os estudos sobre família na Europa, os quais já admitem que a família nuclear não é modelo exclusivo da sociedade moderna. Goody mostra que os laços de parentesco são freqüentemente essenciais às atividades de natureza capitalista, tanto na Índia (onde nota que o crescimento do domínio burocrático não declina a UHF (Hindu Undivided

Family), quanto na Europa (onde, apesar das sociedades das ações, o capital dinástico continua

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Também em estudos sobre família no Brasil, Fonseca (1995) e Durham (2004) apresentam reflexões semelhantes, identificando na família um lócus privilegiado de naturalização.

a ser fundante e estruturante na formação de capital). Segundo Goody: “a família permanece intensamente envolvida no funcionamento do comércio e dos negócios, onde quer que estas atividades estejam dependentes da iniciativa privada”(1998: 279).

Para Goody, que questiona o Oriente que o Ocidente criou, as redes alargadas de parentesco não obstaram a modernidade econômica. Num estudo em que revê elementos que compõem as diferenças entre a racionalidade econômica européia e a racionalidade econômica asiática e a organização familiar européia e a organização familiar asiática, Goody defende que estas diferenças servem para a teoria ocidental justificar a recente superioridade econômica do Ocidente sobre a sociedade asiática. Goody diz que estas diferenças são assentadas numa idéia de “traços culturais profundos” e baseadas em pesquisas que ignoram que a suposta superioridade econômica ocidental é apenas um momento de um processo que, pensado em sua longa duração, inclui tanto o passado de dominação do Oriente pelo Ocidente, quanto os emergentes sucessos capitalistas no Japão e na China:

como referimos em diversas ocasiões, as causas das diferenças de evolução dessas sociedades foram atribuídas pela maior parte dos investigadores a toda uma série de factores definidos como exclusivamente ocidentais: a racionalidade (ou pelo menos uma racionalidade específica), o individualismo, o espírito de iniciativa empresarial e até mesmo um certo tipo de estrutura familiar, cuja ausência terá penalizado o Oriente. O tema da família é paradigmático: quando a economia japonesa conheceu seu arranque, os investigadores ocidentais tiveram de adaptar os seus argumentos de forma a poderem introduzir o novo participante nos seus discursos. O problema é que mal essa adaptação ficou concluída, e descobertas que estavam as analogias entre as famílias européias e japonesas, por oposição às famílias chinesas, a própria China deu início ao seu arranque! Tiveram então de orientar as suas esperanças para uma versão confucionista do capitalismo, estreitamente ligada ao horizonte familiar (como era o caso do Japão). Também a Índia está prestes a fazer o mesmo: ter-se-á então de fazer novo ajustamento de forma a entrar em linha de conta com o hinduísmo e com a comunidade familiar hindu? (Goody, 1998: 334).

Goody (1998), partindo também de uma reflexão que critica a suposição de que há uma oposição entre modernidade e família, critica a conclusão de Weber de que a importância das castas na Índia teria inibido o capitalismo. Segundo Goody, para Weber o capitalismo seria uma organização burocrática, livre de determinações nepotistas, sustentado no valor individualista da iniciativa empresarial. Na opinião de Goody, vários estudos que seguiram a tradição weberiana, afirmam que a UHF é o oposto do sistema familiar europeu, nuclear, industrial e moderno.

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Ao destacar a semelhança entre os discursos do senso comum e os discursos acadêmicos, pretendo evidenciar o contexto de vulnerabilidade a que os indianos estão colocados em Moçambique, sublinhando que se esse contexto favorece que os estudos sobre a presença indiana busquem traços explicadores de determinadas posições ocupadas por esse grupo na sociedade moçambicana. É também na literatura mais abrangente sobre a categoria família e sobre o sistema de castas e o hinduísmo que é possível identificar o contexto que constrange a postura analítica que opõe família e modernidade (ou ainda a classificação do sistema de castas e a relação entre antropologia e história). Ou seja, se é possível dizer que a literatura que estuda a presença indiana em Moçambique ignora a literatura crítica sobre o hinduismo e o sistema de castas - e é isto que permite que ela faça afirmações sobre tais instituições e a família indiana essencializando um símbolo identitario -, também é preciso levar em conta que os estudos sobre relações familiares já, classicamente, não são considerados adequados e nem forneceram as categorias centrais para o estudo de fenômenos considerados modernos, ainda que os estudos sobre família indiana tendam a tomá-la como exemplo da oposição tradicional versus moderno.

O que a tese que segue apresenta, é uma discussão que evidencia que a vinculação da família indiana hindu ao sistema de castas está informada (e participa dele, favorecendo-o) pelo contexto de acusação que paira sobre as populações de origem indiana em Moçambique e se sustenta numa atitude analítica que: a) ignora o aspecto histórico tanto do sistema de castas quanto do hinduísmo (Weber, 1987); b) ignora as problematizações teóricas que suspeitam da associação entre estas duas instituições (sistema de castas e hinduísmo) (Bastos, 2001); c) ignora os debates que interrogam sobre se o sistema de castas é a fundamental instituição indiana (Srinivas, 1970); d) ignora os debates que interrogam sobre a possibilidade de encontrar as instituições, supostamente indianas, fora do território indiano (Dumont, 1992 e Bastos, 2001) e e) ignora as críticas que foram feitas ao olhar ocidentalizado sobre o sistema de castas e o hinduísmo, em especial a crítica de Dumont à atitude explicativa que supõe o sistema de castas como um sistema que classifica sem colocar em relação (Dumont, 1992).

No contexto teórico-metodológico, o objetivo da tese é criticar os estudos sobre a presença indiana em Moçambique que supõem a família como uma instituição desinteressante para a compreensão de processos contemporâneos e, com esse suposto abrem mão de pesquisar

(indagar) a seu respeito, reproduzindo uma visão estereotipada, que se reproduz no senso comum. No contexto político, o objetivo da tese é historicizar (ou criticar) os termos do debate em que a família indiana – e especial a hindu – é tomada como uma instituição que reproduz um caráter, o caráter racista que é suposta pelo hinduísmo e sistema de castas.

Capítulo 2. Cozinhar, adorar e fazer negócio: a Casa hindu em