• Nenhum resultado encontrado

Dois fogos, duas unidades domésticas, uma Casa

CAPÍTULO 2. COZINHAR, ADORAR E FAZER NEGÓCIO: A CASA HINDU

2.1. As cozinhas das Casas

2.1.2. O fogo

2.1.2.1. Dois fogos, duas unidades domésticas, uma Casa

Irmãos homens ou pais e filhos homens casados são identificados como da mesma Casa,

a casa de pai, embora possam ou não coabitar. Nas cozinhas, a sogra é a idealizadora do

cardápio e define o tempero, enquanto a nora, a filha não casada e os empregados o executam. Unidades domésticas separadas atualizam tal hierarquia. Estando uma Casa dividida em duas unidades domésticas e tendo dois fogos, estes cozinham de acordo com a tradição da Casa do homem (pai ou sogro), definida pela mulher (mãe ou sogra).

Reconhece-se como da Casa Nikunj, o senhor Nikunj e sua esposa Nimisha. O filho Visarjan, sua esposa, Radha e as três filhas do casal. Também é da Casa a irmã solteira de Nikunj, Nayana. Eles possuem uma loja em um distrito no interior da Província de Inhambane.

82

Entre as Casas o fogão funciona como um indicador de status econômico. As cerimônias de nascimento, casamento e morte podem ser razões suficientes para que os responsáveis pela cerimônia façam uma reforma nas residências envolvidas, que pode ser uma simples renovação da pintura ou uma reformulação dos espaços da sala usada como cozinha, incluindo a troca de equipamentos, especialmente o fogão. O fogão de 6 bocas feito de aço inoxidável era, em 2003, o modelo mais moderno e indicador de sucesso econômico.

83

Os hindus em Inhambane estão submetidos ao calendário oficial do governo moçambicano. Mas, assim como os muçulmanos, têm reconhecido, como ponto facultativo, o dia apontado em seu calendário como dia de mudança de ano.

Durante a semana ficam ali o casal mais velho, a irmã de Nikunj e Visarjan. Na cidade de Inhambane ficam, durante a semana, Radha e as três crianças. Nos finais de semana, Visarjan vai para Inhambane e fica até segunda-feira. Seus pais e sua foibá (irmã do pai) muitas vezes o acompanham. Cada unidade doméstica configura um fogo, sem que seja possível definir fixamente as pessoas que se alimentam dele, pois o grupo varia de acordo com a movimentação entre as duas cidades. Muitas vezes, Nayana fica durante a semana ajudando a esposa do filho de seu irmão com as crianças em Inhambane. Outras vezes é Nimisha que fica em Inhambane com as crianças, e a nora fica com o marido na loja. Mas também acontece de ser Nikunj quem acompanha a nora e as crianças em Inhambane e ainda, às vezes, é Visarjan que vai ficar com a esposa e filhas.[Fig. 9] Apesar de haver duas unidades domésticas, os alimentos produzidos seguem a orientação dada por Nimisha, a partir de sua interpretação do calendário hindu e da forma que aprendeu com sua sogra a temperar os alimentos. Quando todas as mulheres da Casa Nikunj estão juntas para cozinhar, é Nimisha, casada com o irmão de Nayana, sogra de Radha, que define o que será cozinhado e o tempero. O almoço corriqueiro tem carril - uma espécie de refogado que pode ser de peixe, camarão, caranguejo, cabrito, frango ou só de vegetais, apas (uma espécie de pão), dal, uma sopa com feijão (mogni dal), salada de tomate, cebola e alface e arroz. Come-se inicialmente apas com carril e a salada, bebendo o dal. O almoço encerra-se com o arroz sendo banhado de dal e carril. E a boca é limpa com variari: uma seleta de grãos secos e temperados. Esta refeição básica é acrescida alternativamente de outros complementos: batata frita, pão de padaria, chutnei (algum fruto temperado com temperos picantes). A questão fundamental a definir nos pratos é se o carril terá ou não cabrito, frango, peixe, camarão, caranguejo ou lula. Este é o conteúdo fundamental a ser definido num cardápio, comer ou não alguma destas carnes é o tema central do debate sobre o cardápio, ainda que haja outros temas. Quando não há nenhum destes itens, é um dia de jejum84. A decisão de fazer carril de hortaliças

84

Com exceção de Senhor Vipret que um dia afirmou ter comido carne de vaca, mas antes de casar, condena-se esse consumo. A carne de porco parecia estar sendo introduzida recentemente, mas não havia receitas que a utilizassem. Ela era consumida em chouriço, ou seja, pedaço de tripa cheio de sangue e carne de porco com temperos. Onde fui convidada a comer, espontaneamente foi-me dito que introduziram esse alimento quando, em visita a Lisboa ou Londres, comeram a convite de patrícios. Também comentam que enquanto a carne de vaca não pode ser introduzida porque a vaca é a Casa dos deuses, a carne de porco não tem impedimento religioso, trata-se de uma questão de hábito. Não-hindus em Inhambane e Maputo com quem conversei sobre a pesquisa espantaram- se ao saber que os hindus comem algum tipo de carne, ou seja, de que não são exclusivamente vegetarianos. Algumas dessas pessoas tinham absoluta convicção de que os hindus em Moçambique eram vegetarianos. Já os hindus em Inhambane, quando conheceram um colega brasileiro vegetariano que me visitou, mostraram muita curiosidade e foram incansáveis em indagar sobre as razões para tal atitude. Já em Maputo, os indianos

ou não está a cargo de Nimisha, a maior autoridade na cozinha. Ela decidirá, com base na

tradição ou sistema da Casa. A tradição ou sistema indica os dias grandes, dias festivos

relacionados à prática de adoração de algum deus. Nestes dias, o prato preparado tem apenas hortaliças porque ele é oferecido aos deuses, que não comem carne, e porque é uma forma de sacrificar-se, de abrir mão de algo que se aprecia. Faz parte da tradição de uma Casa sua interpretação do calendário hindu e as Casas reconhecem e aceitam que cada Casa tenha uma interpretação própria.

Definido por Nimisha, o prato pode ser executado por ela, mas será preferencialmente executado por sua nora, Radha, que terá o apoio de Nayana, a irmã solteira do marido de Nimisha. Todas estas mulheres terão no empregado ou empregada o apoio para atividades como matar, limpar e picar o animal que será cozido, descascar vegetais e lavar a louça85. Os empregados não usam o fogão. São Nimisha, Radha e Nayana que cozinham os alimentos e apenas Nimisha os tempera. Depois do almoço, essas três mulheres definem o que será feito com o que sobrou de alimento pronto e servem o prato do empregado (a). Chamam o empregado para que tire a mesa e comece a lavar a louça. O fogão é limpo por Radha ou Nayana.

Durante a semana, quando as duas unidades domésticas estão com seus fogões ligados e alimentando dois grupos diferentes de pessoas, também é Nimisha que define o cardápio. No interior da Província, geralmente, ela e a irmã de seu marido cozinham para seu marido e filho. Em Inhambane, Radha cozinha para si e para as filhas, de acordo com o cardápio de sua sogra. São duas unidades domésticas, dois fogos e uma Casa.

identificados como lohanas de origem em Fudan, território de Diu, identificam-se como vegetarianos. S. Bastos

(2000:105) observa que os migrantes hindus lohanas da diáspora Diu-Moçambique-Lisboa, em Lisboa, consideram que os hindus de Diu (diveshas) são inferiores pois consomem carne e bebem álcool. O dicionário Houaiss define jejum, como: “privação parcial ou total de qualquer alimento, mais raramente até de água, por vontade própria ou não, durante um certo tempo; abstinência de alimentos como forma de penitência durante um determinado tempo, que varia de acordo com as religiões ou seitas; prática na religião católica que consiste em fazer apenas uma refeição diária da qual não consta carne, durante certos períodos fixados pelo calendário litúrgico”.

85

Nas residências urbanas de Inhambane e de Maputo é mais comum haver um empregado doméstico e não empregada doméstica, como é o mais comum no Brasil. Zamparoni (1999) analisa essa situação identificando nas relações de trabalho que predominaram no período inicial do colonialismo português (de 1891 em diante) as razões para tal configuração. Nas Casas hindus a maior parte dos empregados domésticos, ou seja, os que não trabalham nas lojas, são homens. Alguns moram em dependências das residências ou ficam ali durante a semana e vão para o mato no final de semana. O pagamento pode variar entre 20 mil meticais (são necessários 23 mil meticais para comprar um dólar) e cem mil meticais, por um trabalho doméstico de rotina o que pode incluir, sábado e domingo e cujas tarefas incluem todo o serviço de limpeza e manutenção das residências, fazer as compras na rua e carregá- las, a busca e entrega de encomendas e recados, o auxílio na loja.

Uma situação semelhante acontece na Casa Bradu, integrada pela viúva Abany, que habita com um filho solteiro em outro distrito no interior da Província de Inhambane – distrito do interior da Província de Inhambane -, onde também possuem uma loja. Em Inhambane, seu filho casado, Girilal, esposa e as filhas, constituem outra unidade doméstica e possuem uma loja. Diferente de Nikunj, que tem uma loja, a viúva de Bradu tem duas lojas e duas unidades domésticas, dois fogos e uma Casa. Sendo uma Casa, é Abany que define o cardápio e os temperos e é Aadhi, sua nora, quem executa e limpa o fogão.

Esses são exemplos que mostram mecanismos que permitem manter associados os que se reconhecem como descendentes de um mesmo homem. Uma Casa não coincide necessariamente com as unidades domésticas, com a unidade de comensalidade e nem mesmo de co-territorialidade. A Casa Trabesh, em Inhambane, tem duas unidades domésticas onde moram, respectivamente, os irmãos, Shrimate e Rakesh, suas esposas e filhos. Cada unidade doméstica tem seu próprio fogo. O cardápio é definido pela mãe dos irmãos, que mora em Diu há 4 anos [Fig. 10]. Olhando do ponto de vista das relações sociais estabelecidas nas cozinhas, uma Casa é constituída pelo consenso com relação ao cardápio e este consenso é nomeado pela sogra. A sogra é a pessoa que nomeia a tradição e quando a sogra não coabita – ou mesmo nunca coabitou, e ainda mora em outro país – é em nome do que a sogra diz – ou supostamente diria – que o calendário se efetivará.