CAPÍTULO II: As idéias jurídicas sobre a “regularização” da reprodução humana assistida
2.3. A comissão elaboradora instituída para a formulação do Código Civil de 2002
A Comissão Elaboradora do Código Civil fora instituída em 23 de Maio de 1969, tendo
com supervisor o jurista Miguel Reale, tendo o também jurista Moreira Alves realizado a
função acumulada de Coordenador da Comissão de Estudos Legislativos, e responsável pela
elaboração da Parte Geral do Código Civil. Agostinho Alvim foi nomeado para elaborar o
texto referente ao Direito das Obrigações; Sílvio Marcondes, o elaborador da parte inovadora
denominada Direito de Empresa; Erbert Chamoun o encarregado da parte sobre Direito das
Coisas; Clóvis do Couto e Silva se dedicou ao desenvolvimento da legislação dobre Direito de
Família e Torquato Castro sobre Direito das Sucessões.
A primeira “versão” do Anteprojeto do Código Civil elaborado por esta comissão foi
apresentada ao Ministro da Justiça Alfredo Buzaid em 9 de novembro de 1970, e foi
publicado no Diário Oficial da União em 7 de agosto de 1972 e 18 de junho de 1974 (quase
seis anos depois de instituída a comissão), o qual foi submetido à análise do então Ministro da
Justiça Armando Falcão.
Por fim, o conteúdo definitivo do Anteprojeto foi apresentado ao Poder Legislativo em
16 de janeiro de 1975, após a revisão de todo seu conteúdo. Segundo seu supervisor Miguel
Reale, dado o caráter de experimental do trabalho legislativo em realização, o texto foi revisto
e republicado em junho de 1974 visando novas manifestações sócio-culturais de vários
diversos segmentos no País.
Como consequência, vários livros, artigos em revistas especializadas e jornais foram
publicados, bem como a realização de ciclos de conferências e seminários, em todo País, dos
quais participaram os membros da Comissão. Tais fatos renderam mais de 300 emendas de
conteúdo e de forma, para que se desse por concluído o Anteprojeto do Código Civil.
No entanto, por mais de 25 anos o anteprojeto referido tramitou perante o Poder
Legislativo, tendo recebido projetos de emendas, primeiramente, na Câmara dos Deputados, e
posteriormente, no Senado Federal, com retorno final a Câmara dos Deputados.
Na Câmara dos Deputados foram apresentadas 1.056 emendas, sendo que nem todas
foram aprovadas. Após a apresentação dos Relatórios Parciais pelos deputados então
nomeados para esta empreitada, o deputado Ernani Satyro foi o responsável pela elaboração
do Relatório Geral que recomendou sua aprovação pela Câmara.
Em 1984, no Senado Federal, foram apresentadas mais 366 emendas, merecendo
referência especial as de autoria do senador Nelson Carneiro, as quais serviriam de base para
as profundas alterações introduzidas pela Assembléia Nacional Constituinte na matéria de
Direito de Família, em 1988.
Concomitantemente, nesta Assembléia do Senado Federal se determinou a suspensão da
tramitação do Projeto de Código Civil, tendo em vista a perspectiva de relevantes mudanças
no ordenamento jurídico nacional, tendo em vista o prenúncio das modificações políticas que
o Brasil estava atravessando.
Retomados os trabalhos legislativos, foi nomeado novo Relator Geral o senador
Josaphat Marinho, que, ao apresentar o Parecer Final, logrou a aprovação do Projeto na
Câmara Alta. Retornou, então, o Projeto à Câmara dos Deputados, à vista das modificações
nele introduzidas pelo Senado Federal.
A apreciação final da matéria, em virtude da Resolução nº 1 do ano 2.000, a qual
reformou o Regimento Comum do Congresso Nacional, foi feita pelas Comissões de
Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Somente depois destes fatos é que o Projeto foi submetido à sanção do presidente
Fernando Henrique Cardoso, que o sancionou, promulgando a Lei de 10 de janeiro de 2.002,
que entrou em vigor em 11 de janeiro do mesmo ano.
Analisando o transcorrer dos fatos que compuseram a história da criação e elaboração
do Código Civil de 2002, interessa remeter ao início dos trabalhos com o intuito de adentrar
nos principais discursos extraídos neste âmbito.
Miguel Reale, ao apresentar o Anteprojeto, em documento dirigido ao Ministro da
Justiça com título “Exposição de Motivos”, afirma que a referida comissão:
...desenvolveram os estudos com base em reiteradas pesquisas próprias, mas também graças às preciosas sugestões e críticas que nos chegaram de todos os quadrantes do País, a obra ora apresentada transcende a pessoa de seus autores, o que me permite apreciá-la com a indispensável objetividade. (...)
Preferimos, os integrantes da Comissão, agir em sintonia com a comunidade brasileira, corrigindo e completando os Anteprojetos anteriores, publicados no Diário Oficial da União, respectivamente, de 7 de agosto de 1972 e 18 de junho de 1974, por uma razão essencial de probidade científica, a qual se identifica com o natural propósito de bem servir ao povo.
Interessante ressaltar, neste particular, que as “Diretrizes Fundamentais” para
elaboração do Código Civil, continham referências expressas quanto à necessidade de
adequação aos anseios sociais existentes, bem como no que se refere à forma de captação
destes anseios, conforme se constata na alínea “o” das diretrizes fundamentais para elaboração
do Código Civil, acima transcrita.
Assim, podem-se extrair destes detalhes é que o discurso jurídico do contexto,
notadamente aqueles prolatados pelos agentes protagonistas que se encontravam inseridos no
universo de criação da nova legislação, dão conta de que a recepção dos anseios sociais seria -
ou deveria ser - a base para formulação e a essência do novo Código Civil.
O que reafirma a teorização do discurso apresentado pelos agentes também pode ser
identificado na alínea “f” do mesmo documento em que se apresentam as diretrizes de
formulação do documento legislativo, senão vejamos:
f) Atualizar, todavia, o Código vigente, não só para superar os pressupostos individualistas que condicionaram a sua elaboração, mas também para dotá- lo de institutos novos, reclamados pela sociedade atual, nos domínios das atividades empresárias e nos demais setores da vida privada.
Da sistematização de trechos das afirmações contidas na alínea supracitada, pode-se
extrair, em palavras próprias e simplificadas, o seguinte discurso: “é objetivo desta comissão
atualizar o Código vigente para, além de superar os pressupostos individualistas que
condicionaram este Código, dotá-lo de institutos novos reclamados pela sociedade atual em
todos os setores da vida privada.”
Porém, apesar de tal discurso estar estampado no documento que evidencia o âmago
da proposta teórica da comissão elaboradora, notadamente quando aliadas às alíneas “f” e “o”
destas Diretrizes Fundamentais, há uma via tangente que permite a classificação de matérias
passíveis de aceitação para debates e eventual inclusão no Código elaborado, qual seja, a
alínea “i” do mesmo documento, senão vejamos:
i) Não dar guarida no Código senão aos institutos e soluções normativas já dotados de certa sedimentação e estabilidade, deixando para a legislação aditiva a disciplina de questões ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de mutações sociais em curso, ou na dependência de mais claras colocações doutrinárias, ou ainda quando fossem previsíveis alterações sucessivas para adaptações da lei à experiência social e econômica.
Percebe-se que além de “legítimo”, as questões que ainda fossem “objeto de fortes
dúvidas e contrastes em virtude de mutações sociais em curso ou na dependência de mais
claras colocações doutrinárias, ou ainda quando fossem previsíveis alterações sucessivas para
adaptações da lei à experiência social”, não seriam matérias suscetíveis de análise.
Neste sentido, segundo o entendimento de José de Oliveira Ascensão, é justificável a
existência de temas que não se encontrem suficientemente “maduros” para uma intervenção
do Estado, visando sua regulamentação por meio do ordenamento jurídico:
Nem tudo o que não é punido é lícito. Pode a lei não ter querido chegar (ainda) à sanção penal, sem que isso impeça que a conduta não penalizada se deva tomar como ilícita. Nem tudo o que não é proibido é lícito. O fato de não haver uma proibição específica não significa que a ilicitude não resulte dos princípios gerais da ordem jurídica. Nem tudo o que não é ilícito é eticamente fundado. Pode o Direito manter ainda certa prática no domínio geral do tolerado, não obstante a repulsa ética, apenas por não considerar o
tema suficientemente maduro para uma intervenção (ASCENSÃO, 1994, p. 69).
Ao analisar os ensinamentos acima descritos, pode-se, à primeira vista, questionar-se
acerca da aplicação do raciocínio, uma vez que o autor trata sobre normas de natureza
“penal”. Porém, o que resta implícito é que o Direito, ao “manter ainda certa prática no
domínio geral do tolerado. (...) apenas por não considerar o tema suficientemente maduro
para uma intervenção”, acaba permitindo que fiquem a cargo de “princípios gerais da ordem
jurídica” a resolução de questões que se encontram patentemente amadurecidas, seja pelos
discursos havidos, seja pela prática constatada.
Esta postura por parte da comissão elaboradora reforça a característica de “cautela”
dos operadores do Direito quando do acompanhamento das inovações sociais, e neste
particular, Boaventura de Sousa Santos, como transcrito alhures, a postura dos detentores do
capital jurídico sempre se destacou pelo conservadorismo e pelo tratamento discriminatório
da agenda política progressista e dos agentes que a compunham enfatiza, demonstrando-se
totalmente incapazes de acompanharem os fenômenos inovadores que trazem, como
conseqüência, a transformação social. O mesmo autor realiza reflexão cabível para a hipótese
levantada:
Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn o atraso das ciências sociais é dado pelo carácter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais, essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por toda a comunidade científica, conjunto esse que designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente toda a espessura do conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais (SANTOS, 2002, p. 21).
Assim, seria justificável a hipótese em que as questões elencadas como dependentes
de melhor consolidação nos campos científicos a qual estejam vinculadas, não fossem
matérias a serem desenvolvidas no momento de elaboração, caso tais matérias não fossem
suscetíveis de aprofundamento reflexivo sobre os pontos decorrentes de sua não inclusão.
Significa dizer que há situações em que a análise sobre um determinado tema pode ser
realizado a contrapelo, ou seja, avaliar-se o quê a ausência de disciplina pode causar, mesmo
não havendo consolidação plena sobre a matéria tratada. Ainda, há situações em que o melhor
aprofundamento oferece ao analisador deduzir ou vislumbrar situações com potencialidade de
ocorrência - e que requerem, por suas peculiaridades, tratamento legislativo -, sem que isto
necessite ter se concretizado como fato social. Porém, intrigante é a constatação do fragmento
do discurso contido na alínea “m” das diretrizes referidas:
m) Acolher os modelos jurídicos validamente elaborados pela jurisprudência construtiva de nossos tribunais, mas fixar normas para superar certas situações conflitivas, que de longa data comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica.
Merece melhor atenção o trecho “fixar normas para superar certas situações
conflitivas, que de longa data comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica”.
Neste particular, parece contraditória a postura da comissão elaboradora, onde, ao mesmo
tempo em que se coloca como conservadora em relação a questões que ainda detinham “fortes
dúvidas e contrastes” propõe-se a superar “situações conflitivas, que de longa data
comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica.” Seria, ao final dos anos 90, a
reprodução humana assistida uma “questão com fortes dúvidas e contrastes” ou uma “situação
conflitiva”?
Um ponto inegável é que a matéria, além de suscitar fortes dúvidas e contrastes,
gerava uma situação conflitiva de longa data - considerando a cronologia dos fatos que
demonstram a evolução das técnicas de reprodução assistida -, e que, conseqüentemente, já
comprometiam a unidade e a coerência do ordenamento jurídico naquele período, ante a
ocorrência e constatação de possibilidades e fatos que se insurgem contra a lacuna no
ordenamento jurídico no que se refere ao tema.
Neste sentido, a postura do “antever” os desdobramentos do campo científico e suas
correlações e conseqüências ao social tornam-se um ponto falível na postura adotada pela
comissão elaboradora do Código Civil.
Tais afirmativas encontram-se baseadas no seguinte raciocínio: a primeira vista, tem-
se como primeira referência o contexto da década de 70 como ambiente principal para
elaboração do Código Civil. De fato, todas as dúvidas, contrastes e situações conflitivas
encontravam-se contemporâneas aos principais eventos e descobertas científicas relacionadas
à reprodução humana assistida neste momento histórico. Porém, há que se lembrar que a
tramitação do Anteprojeto do Código Civil perante o Poder Legislativo - período em que
sofreu alterações de todas as ordens - não se restringiu tão somente à década de 70, mas sim,
até os limiares do século 21, ou melhor, até sua publicação, em 2002.
tratado, Alberto Silva Franco lança as seguintes críticas:
Mas como está o Direito reagindo? Desconcertantemente, com uma postura de indiferença e de auto-suficiência. Os avanços detectados no campo da reprodução assistida e da engenharia genética parecem, à primeira vista, que não lhe dizem respeito. Cuida-se de matéria estritamente científica, que não apresenta escala de repercussão social justificadora de uma intervenção. Eventuais distorções ou excessos devem permanecer na esfera da ética médica ou da ética das instituições científicas.
Não há porque produzir normas ou regulações de fatos que não possuam uma dimensão social abrangente. Numa hipótese, em concreto, que venha tangenciar, eventualmente, a área jurídica, poderia ter sua solução equacionada por um juiz, com o instrumental legal de que dispõe. Por outro lado, o Direito mantém-se aprisionado ao dogma da eficiência de seu equipamento conceitual: toda e qualquer mudança no mundo da realidade, qualquer que seja o setor, será absorvida, sem precipitações, na teia jurídica. Nada mais incorreto.
Obstinar-se em não ver, fechar os olhos, enterrar a cabeça na areia são posicionamentos que não acarretam nem o desaparecimento das inumeráveis questões provocadas pela reprodução assistida ou pela engenharia genética, nem servem para paralisar as descobertas científicas que já se extravasam para enfoques que põem em risco a própria espécie humana. Além disso, a inseminação artificial, a fecundação in vitro e a engenharia genética versam sobre problemas que afetam, direta e imediatamente, os próprios fundamentos da sociedade atual - e os conceitos construídos pelo Direito se revelam de todo ultrapassados (FRANCO, 2003).