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CAPÍTULO II: As idéias jurídicas sobre a “regularização” da reprodução humana assistida

2.2. A receptividade dos anseios sociais

No que se refere ao atendimento aos anseios sociais existentes no contexto, tema este

que representa um dos pontos fundantes do trabalho, há que se ressaltarem as características

principais dos campos analisados, iniciando-se pela praxis política do ato de “legislar” no

contexto abordado.

Neste viés, o poder jurídico institucionalizado – aquele que cria, edita e revoga normas

para a manutenção do Estado de Direito – possuem as configurações que remontam à idéia de

prevalência da postura conservadora frente a quaisquer inovações sociais ou científicas.

Assim, tratando-se de poderes concedidos às autoridades legislativas do período em

foco, importante é analisar o “peso” desse poder, segundo a perspectiva de Abraham Kaplan e

Harold Lasswell:

... o peso do poder é o grau de participação na tomada de decisões. (...) A participação no processo decisório, como critério para definir o poder, é em si manifestação dessa idéia do poder de indivíduos e grupos, (...) salvo para ficar bem a atenção direcionada ao poder institucionalizado (KAPLAN; LASSWELL, 1979, p.138).

Verifica-se, destarte, que o “peso” do poder detido pela categoria jurídica é, sem

dúvida, fator determinante para engendrar posturas nas quais investem em novos caminhos, os

quais buscam colher no seio da sociedade as reais perspectivas a serem empregadas no

momento regulação do corpo social, ou, estagnarem-se perante acontecimentos científicos

inovadores que ressoam sobre o campo sócio-político nacional.

A afirmação deste poder resulta do exercício do mesmo, ao tempo em que a

participação no processo decisório do que “é” e “não é” suscetível de ser considerado legítimo

para sua inclusão no ordenamento jurídico, passa a ser, então, o critério principal para a

definição deste poder, e, conseqüentemente, a real manifestação da idéia do poder deste grupo

e sua relação com o poder institucionalizado.

Pode-se entender, assim, o poder jurídico como poder institucionalizado, onde

indivíduos e grupos que participam do processo decisório detêm também os meios de

definição dos critérios para a manifestação deste poder, podendo, assim, controlar cada

contingência de modo a planificar sua atuação sem comprometer o mantenimento sobre o

controle deste “campo”, o que, por fim, pode caracterizar, em outras palavras, uma postura

pautada no conservadorismo.

Tratando sobre o tema, Boaventura de Sousa Santos, Maria Manuel Leitão e João

Pedroso são elucidativos ao analisarem a atuação dos Tribunais nas sociedades

contemporâneas, permitindo assim eleger o termo “Tribunal” como o órgão representante da

estrutura legislativa do país, na medida em que formam os mecanismos de aplicação e

efetivação das normas vigentes. Segundo os autores acima referidos:

(...) em quase todas as situações do passado os tribunais se destacam pelo conservadorismo, pelo tratamento discriminatório da agenda política progressista ou dos agentes políticos progressistas, pela sua incapacidade para acompanhar os processos mais inovadores de transformação social, econômica e política, muitas vezes sufragados pela maioria da população (SANTOS; MARQUES; PEDROSO, 1996).

Assim, arraigada é a idéia de manterem-se as bases e princípios já legitimadas e

prevalecentes na sociedade enquanto nenhum fenômeno social de grande relevância ocorra.

Para sua ocorrência, somente na hipótese de necessidade de respostas emergenciais a

acontecimentos políticos excepcionais, ou em transformações de ordem sócio-políticas

profundas e aceleradas.

Neste particular, interessante descrever a alínea “o” das Diretrizes Fundamentais para

a elaboração do Código Civil, publicada em 10 de junho de 1975 pelo então presidente da

República Ernesto Geisel, no qual se propuseram os elaboradores, entre outros deveres:

o) Consultar entidades públicas e privadas, representativas dos diversos círculos de atividades e interesses, objeto da disciplina normativa, a fim de que o Anteprojeto, além de se apoiar nos entendimentos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais, tanto nacionais como alienígenas, refletisse os anseios legítimos da experiência social brasileira, em função de nossas peculiares circunstâncias.

Nota-se que a partir das diretrizes fundamentais para elaboração do Código Civil, o

comando político – teoricamente - foi no sentido de alcançar os anseios sociais por meio de

consultas a entidades públicas e privadas e às representações de várias áreas e interesses,

visando aliar aos regramentos e técnicas de elaboração de normas (entendimentos legislativos,

doutrinários e jurisprudenciais “nacionais e estrangeiros”) de modo a refletir tais anseios

colhidos na experiência social brasileira.

Porém, alguns detalhes importam serem analisados detidamente. Neste sentido,

questiona-se: o que poderia caracterizar um anseio “legítimo” da experiência social brasileira?

Analisando-se a palavra “legítimo”, é possível entender várias formas de interpretação para a

finalidade em que foi empregada.

O adjetivo legítimo pode ser entendido como algo que está “em conformidade com a

lei”, ou seja, o que é legal nos termos da lei vigente; o que está fundado no direito, na razão

ou na justiça; que tem origem na lei, ou que está protegido por ela; o que é autêntico, genuíno,

lídimo; o que é lógico, procedente, concludente.

A partir destas definições, o que se pode inferir é que somente os anseios que

estivessem em conformidade com a lei é que seriam plausíveis de reconhecimento e

legitimação perante os órgãos emanadores do Poder Publico, e, seguindo-se este raciocínio, é

possível afirmar a existência de coerência neste aspecto, pois não se pode reconhecer como

legal algo que viole uma lei vigente; anseios fundados no direito, na razão ou na justiça seria

exatamente o momento de aplicação do elemento subjetivo do legislador, ou seja, aquele em

que o legislador elege o que é e o que não é legítimo, mesmo que exista constatação expressa

de anseios sociais sobre determinado tema.

Em suma, decorre que o fato de não terem sidos eleitos como “legítimos” os anseios

existentes no tocante às inovações e novos contornos científicos relacionados à procriação

humana, não pode significar que estes não tenham sido relevados para o processo de criação e

manutenção do ordenamento jurídico em desenvolvimento.

Quando sopesados em relação ao que se tinha por ideal e real no contexto, e colocados

à prova em um processo de identificação da necessidade de fazer constar sua regulamentação

no documento legislativo, o legislador não dotou este tema como legítimo por razões diversas,

e que ultrapassam as reais possibilidades de constatação das razões havidas para tal exclusão,

pois tal façanha demandaria adentrar no plano das intencionalidades dos agentes protagonistas

deste processo de formação legislativa, e, como mencionado alhures, não cabe a este trabalho

recorrer a este mecanismo.

Porém, não legitimar um anseio o qual é patentemente veiculado por um campo

científico, e ainda, notadamente exposto em todos os meios de comunicação, de forma a levar

a conhecimento público os constantes avanços da ciência aplicável a tal anseio faz com que se

deduza uma estratégia política de refreamento inverso, onde o que está evidente e dedutível

faz-se parecer obscuro e contraditório, de modo a justificar uma postura conservadora e, por

vezes, retrógrada. Neste particular, oportuno é transcrever o entendimento de Alberto Silva

Franco:

Como bem acentuou Habermas, da medida em que a ciência e técnica penetram nos âmbitos institucionais, começam a desmoronar-se velhas legitimações. Um aparelhamento institucional e legal de ótica conservadora e de modos de pensar e sentir ancorados no passado são incapazes de propiciar a adaptação do Direito ao estado atual das coisas. Essa defasagem engendra posições dissonantes entre o Direito e a sociedade, quando não um vazio legal. Num mundo que se move entre normas, que se cimentou numa ordem normativa de comportamentos sociais e cívicos, ressente-se quando novas condutas se desenvolvem a sua margem (FRANCO, 2003).

Neste sentido, em pesquisa verticalizada sobre a evolução histórica do Direito no

Brasil, Antônio Carlos Wolkmer expressa o panorama da evolução do Direito Público

nacional, em palavras que merecem serem transcritas:

A conclusão que se pode extrair da evolução do Direito Público, caracterizado, nessa reflexão, basicamente pelas principais constituições do Brasil, é que ele foi marcado ideologicamente por uma doutrina de nítido perfil liberal-conservador, calcada numa lógica de ação atravessada por temas muito relevantes para as elites hegemônicas, tais como a conciliação e o reformismo. O processo histórico nacional evidencia que as instâncias do Direito Público jamais foram resultantes de uma sociedade democrática e de uma cidadania participativa, pois a evolução destas foi fragmentada, ambígua e individualista, além de permanecerem sujeitas a constantes rupturas, escamoteamentos e desvios institucionais.

Em suma, a falta de tradição verdadeiramente democrática nos liames do que se convencionou chamar de “liberalismo burguês” fez com que inexistisse - na evolução das instituições do país - a consolidação e constância de um constitucionalismo de base popular-burguês, pois, tanto o político quanto o social foram sempre construções momentâneas e inacabadas das oligarquias agrárias. Como já se assinalou em outro contexto, o constitucionalismo brasileiro nunca deixou de ser o contínuo produto da “conciliação- compromisso” entre o patrimonial ismo autoritário modernizante e o liberalismo burguês conservador (WOLKMER, 2000, p. 116).

No entanto, o que se pode deduzir a partir do raciocínio acima delineado é que,

durante o processo de legitimação de anseios, no qual se pauta na subjetividade do agente, da

mesma forma que um anseio não é legitimado por razões diversas, outros podem ser eleitos da

mesma forma, ou seja, existem anseios que poderiam ser legitimados, bastando existirem

inclinações pessoais do legislador para que a matéria seja discutida ou proposta entre seus

pares, e, conseqüentemente, a fundamentação seja realizada acerca do tema em tela,

independente de seu resultado. Isto não ocorreu quando da elaboração do Código Civil de

2002.

Porém, dada a racionalização do conteúdo ideológico impregnado na conduta destes

agentes, visualiza-se que a prática utilizada tem por objeto atender à “justificativa de não

atender”, e não a “justificativa por ter atendido. Significa dizer que os direcionamentos

tomados por estes agentes no sentido de abordar temas inovadores, encontram-se

obstaculizados pela não incursão no universo de conhecimento a ser explorado para a

realização da regulação de pontos que intentam contra o social. As atenções, neste momento,

são voltadas para as justificativas de uma postura omissa, a qual não tem como intenção

submergir-se no conhecimento técnico acerca do tema para que se possa tomar conhecimento

real das principais conseqüências práticas relacionadas.

Como base nestas assertivas, tem-se que, havendo pontos que ainda não se

consolidaram na prática social, estes não seria passível de recepcionamento no ordenamento

jurídico, como se poderá constatar a seguir.

2.3. A comissão elaboradora instituída para a formulação do Código Civil