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CAPÍTULO IV: O Código Civil de 2002 como extrato dos discursos jurídicos

4.1. O Direito de Família e suas principais referências histórico-sociais

Conforme se constata nos trajetos históricos percorridos e demonstrados pela

historiografia especializada, pode se afirmar que a família preexistiu ao Estado, uma vez que

não existem evidências que revelem o surgimento de uma sociedade organizada sem que se

denote a presença da família instituída, seja na antigüidade oriental ou na antigüidade clássica

(Grécia e Roma).

Nos primeiros agrupamentos humanos que ganharam contornos familiares, os quais

visavam à proteção contra quaisquer ameaças externas, a segurança alcançada por um grupo

organizado passou a deter muito mais importância do que a própria consangüinidade entre

seus membros.

O Estado, ao exercer a função de proteger os grupos familiares, concede à família o

caráter de unidade institucionalizada, a qual começa a se fortalecer, pois o parentesco somente

passou a ser observado nas famílias gregas e romanas, identificando-se com o culto aos

antepassados, o que muito contribuiu para a agregação ao redor do pater.

Tanto na Grécia quanto em Roma existiam as religiões, onde cada agrupamento

possuía seus próprios deuses, representados pelos ancestrais mortos, e sua própria liturgia,

determinada pelo chefe que também era o chefe religioso, ou seja, a figura do pater detinha o

poder familiar e religioso neste modelo de família. Na hipótese de ausência de descendentes, a

família não poderia perpetuar a sua existência, pois o culto aos antepassados se extinguiria

com esta ausência e, segundo as suas crenças, acarretaria uma espécie de condenação eterna

àquela família sem descendentes, bem como aos seus antepassados.

Na Grécia, a família era representada pelo grupo ligado ao ancestral comum,

somando-se os cônjuges e enteados, genros, noras e cunhados, o que caracteriza a polis

familiar reconhecida por alguns estudiosos.

Em Roma, coexistiam a gens, sendo o chefe o pater gentis, e a família era composta

pela mulher, filhos, netos e bisnetos, e pelos bens, sujeito ao poder do pater familias, qual

seja, o ascendente comum a todos com mais idade no grupo.

O Estado Romano não realizava uma interferência direta no âmbito da família, pois tal

responsabilidade cabia tão somente ao seu pater, que exercia uma espécie de jurisdição

paralela, a qual era autorizada pela própria ordem jurídica, à medida que se partia da idéia da

família como sua representação celular.

É neste contexto que a família se institui como unidade política, jurídica, econômica e

religiosa, e a união entre homem e mulher passa a ter maior importância ao âmbito jurídico.

Neste sentido, foi na Roma antiga que a família foi organizada dentro de padronizações

apresentadas pelo Estado e, visando protegê-la, deu-se origem um conjunto de normas que

faziam da família uma sociedade caracteristicamente patriarcal, com a criação de normas que

se referiam ao âmbito familiar, sem, contudo, construir um “Direito de Família”

correspondente à noção moderna de legislação específica e direcionada ao âmbito familiar,

mas sim, um complexo de regulações voltadas a prever vários tipos de famílias existentes no

período.

Numa abordagem técnica e restrita, afirma-se na doutrina que a família era um

conjunto de pessoas livres que se encontravam momentaneamente sob o poder do mesmo

pater, que detinha, de forma preponderante, o poder e a posição do pai, chefe da comunhão

doméstica.

O pátrio poder, ou, patria potestas, tinha caráter evidentemente unitário, conforme se

pode observar da própria expressão, sendo exercido apenas pelo pai, podendo ser exercido

sobre os netos.

Ressalte-se que o conceito da família acima exposto refere-se a pessoas “livres”, ou

seja, era aplicado apenas aos cidadãos romanos, aos quirites. Na sociedade romana, os

poderes do “pater famílias” eram numerosos e amplos. A título de exemplificação, vejam-se

os três principais poderes existentes naquele período:

1. jus vitae ac necis - direito de vida e morte - o pater familias tinha o poder/liberdade

para matar os seus dependentes, quais sejam, filhos, netos e até mesmo a sua esposa, caso

postergassem as obrigações reverenciais tuteladas pela lei; 2. jus exponendi (direito de

abandonar) – de acordo com o seu próprio julgamento, o pater famílias poderia, ao invés de

matar, lançar seu filho ao total abandono, ainda que fosse menor impúbere, ensejando a

possibilidade de ser este recolhido por outra família através de adoção ou por órgãos do

próprio Estado de Roma; 3. jus noxae dandi (direito de dar prejuízo) - se um dos dependentes

cometesse algum ato que proporcionasse danos a outrem, o pater familias poderia dar o

próprio causador do dano, na condição de escravo, à vítima, transformando seu dependente

em moeda de pagamento.

Quando o pater familias falecia, o pátrio poder não era transmitido para a mãe; o filho

mais velho tornava-se o pater famílias, adquirindo o pátrio poder sobre seus filhos, uma vez

que estes eram anteriormente sujeitos ao avô.

As filhas somente assumiam o pátrio poder na hipótese de deixar de existir homens na

família, ante a existência de vedação legal às mulheres de o exercerem por ato voluntário da

família.

A partir da Idade Média, com o reconhecimento do cristianismo como religião oficial

dos povos considerados civilizados, o culto familiar deslocou-se para as igrejas vinculadas ao

cristianismo, o que resultou no fim da figura do pater familiar, transferindo à Igreja o

sacerdócio da família.

Neste determinado momento histórico, as funções da família perante o Estado

restringiam-se à produção de bens necessários à sua própria sobrevivência, como exemplos,

alimentos, roupas e armas.

Porém, com o advento da Revolução Industrial, a produção independente de itens de

sobrevivência familiar não atendia mais aos novos contornos sociais do contexto. É neste

momento que a família passa a exercer a função econômica perante o Estado, ganhando

importância frente aos novos ditames sociais. Por fim, outra função emergente neste contexto

e que apresenta forte ligação com a religião e, paralelamente, a este novo contexto social, é a

procriação. A idéia de prole numerosa é propagada como sinônimo de prosperidade e pleno

alcance dos desígnios sacramentais, e, logo, um casal eventualmente sem filhos tinham uma

posição inferior perante a sociedade.

Atualmente, a família não possui tantas funções como no período de transição da

Idade Média para a Moderna, pois, como exemplos, a liberdade de culto aos familiares – o

que desautoriza o pater de escolher o culto a ser realizado pelos seus descendentes; a defesa

“pelo Estado” de qualquer pessoa contra as ameaças externas ao seu grupo familiar (e, óbvio,

até dentro dele) proíbe a autodefesa; o Estado tem o dever de prestar assistência à família, e

não somente fazer com que esta exerça suas funções sem um retorno garantidor da sua

sobrevivência; o dever de amparo aos idosos; o planejamento familiar, diferentemente da

prática social de prole numerosa do século XIX.

Feitas estas considerações, convém partir-se para uma análise hodierna da família e do

direito que a ampara, lançando-se mão de conceitos e visualizando os principais institutos que

formam esta disciplina.