CAPÍTULO IV: O Código Civil de 2002 como extrato dos discursos jurídicos
4.2. O Direito de Família na atualidade
Comumente se afirma que o Direito é o conjunto de normas e princípios legais que
regulam o funcionamento da sociedade e o comportamento de seus membros intervindo nas
relações entre eles. A abrangência da expressão sociedade, no entanto, tem um sentido
dinâmico e apresenta muitas particularidades, seja de aspecto amplo (ex: a totalidade da
população brasileira), seja de aspectos restritos, constituídas de pequeno número de pessoas.
O direito deve tutelar a funcionalidade da sociedade em geral, como também o de cada
categoria de sociedade. Constitui-se no objeto de análise uma espécie de sociedade restrita,
qual seja, a sociedade familiar enquanto entidade institucionalizada. Em princípio, trata-se de
sociedade constituída a partir da comunhão entre marido e mulher, ampliando-se com o
surgimento dos filhos, constituindo a família no sentido restrito ou família nuclear.
A consangüinidade pode ser definida como o liame resultante da descendência
biológica, ou seja, de ascendente para descendente, enquanto que a afinidade é constituída
entre pessoas estranhas – sem vínculos de consangüinidade - que se ligam à sociedade
familiar através do casamento, como ocorrem com os cônjuges.
Seguindo-se as principais referências ideológicas ocidentais, notam-se importantes
fatores que aderiram à idéia de família enquanto objeto suscetível de normatização pelo
Estado, como o de ser uma sociedade intrínseca ao ser humano e, por isso, preexistente ao
direito que a regulamenta, e por ser ela considerada, durante muito tempo, fundada no
casamento, sendo estes os dois elementos da sociedade familiar, sob o prisma jurídico.
Por estas razões, cumpriria ao Estado - por meio da aplicação do Direito - protegê-la,
uma vez que, segundo a concepção moderna dos institutos de direito ligado ao âmbito
familiar, a desagregação da família, ou seja, a desvinculação de seus membros, certamente
seria a causa da desestruturação das bases do Estado e do Direito que o regulamentasse.
No entanto, há que se considerar que a família, ao contrário da idéia de ser uma
sociedade natural, formada por pessoas físicas, unidas por consangüinidade ou por afinidade,
é uma construção social.
E foi a partir de considerações deste teor que, ao final do século XX, o então Código
Civil vigente, o qual tem sua origem contextual que remonta ao limiar do século XIX,
apresenta-se impróprio para as novas realidades que se apresentam na sociedade brasileira.
Com publicação e vigência ocorrida a partir de 1916, aquele Código Civil, da mesma
forma se fez referência primaz da legislação civil nacional com críticas ferrenhas desde seu
nascimento, assim como o Código Civil de 2002.
As críticas constatadas revelam que os legisladores são apontados como
excessivamente conservadores e até por vezes retrógrados por não demonstrarem a postura
esperada pela sociedade do contexto, qual seja, uma ligação com a atualidade e com a
realidade nacional e os influxos com os fatores intencionais que emergiam naquele período.
Neste sentido, Antonio Carlos Wolkmer tece considerações que transmitem as idéias
que circundavam as opiniões formadas em relação ao Código Civil de 1916:
Sem desconsiderar o valor e avanço do processo de codificação em relação ao anacronismo da legislação portuguesa até então dominante, o Código Civil reproduz em muito as condições sócio-econômicas do final do século XIX. As características do novo Código estavam mais próximas de um perfil conservador do que inovador, em razão da ênfase muito maior atribuída ao patrimônio privado do que realmente às pessoas, admitindo um pátrio poder rigoroso, que foi diminuído posteriormente com a gradativa concessão de outros direitos à esposa
.
(...)
Certamente o Direito Civil brasileiro, tendo suas raízes no velho Direito metropolitano, que o Império transformou, e, em parte, materializou, seria pouco eficaz e fracassaria em inúmeras questões essenciais. Além desse demasiado apego dos juristas pátrios ao passado, escondido sob o manto de uma retórica artificial e de conhecimentos abstratos, esses não elevaram em conta as necessidades reais e nem sempre conseguiram visualizar corretamente a diversidade e a particularidade das condições brasileiras. (...) Tem-se, assim, em muitos setores institucionais, um direito vazio e inoperante, favorecendo uma ausência de regulamentação jurídica para muitas situações específicas (WOLKMER, 2000, p. 120-22).
E enfatiza:
Enfim, em que pese as profundas e céleres mudanças vivenciadas pela sociedade brasileira do século XX, basta o exame atento das fontes históricas, da evolução e da aplicação dos dispositivos do Código Civil engedrado no ideário da segunda metade do século XIX e ainda em plena vigência, para se ter com muita clareza um perfil ideológico e o grau de comprometimento do Direito Privado como um todo. De fato, sua filosofia tem reproduzido até hoje, de um lado, os princípios do individualismo burguês da moderna cultura jurídica européia; de outro, o legado colonial de práticas institucionais burocrático-patrimonialistas que apenas tem favorecido a garantia e a proteção de bens patrimoniais, deixando de contemplas e resolver os conflitos sociais de massa. Os limites, o artificialismo e a pouca funcionalidade desse sistema de legalidade formalista e conservador propiciam as condições favoráveis a seqüência de confrontos intermináveis e os horizontes de ruptura com os procedimentos da justiça oficial e estatal. Daí a premência de se definir novo quadro de auto-regulamentação emanado da e pela própria sociedade (WOLKMER, 2000, p. 125).