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CAPÍTULO I: As idéias médicas acerca da reprodução humana assistida

1.4. Paradigma médico no contexto

Comumente, tem-se a reprodução humana assistida ou fecundação artificial como o

processo em que o gameta masculino adentra ao gameta feminino, fecundando-o por meios

não naturais e com a utilização de técnicas científicas.

Neste particular, constatam-se questionamentos sobre a propriedade em se utilizar a

expressão “fecundação sem sexualidade”, sendo este um dos pontos fundantes do presente

trabalho. Assim, importa descrever os ensinamentos de Giovanni Berlinger:

Práticas contraceptivas eram usadas há milênios e alguns dos meios ainda hoje comumente usados, como o preservativo masculino, originaram-se há alguns séculos atrás. Condom era um médico inglês do século XVIII que havia propagado o uso do intestino grosso de carneiro como segurança antiprocriativa e anti-infecciosa. Mas a possibilidade de exercer uma sexualidade sem reprodução, com métodos (quase) seguros e, mais recentemente, de promover a reprodução sem uma relação sexual completa entre macho e fêmea (é impróprio dizer “sem sexualidade”: espermatozóide e óvulo, gametas masculino e feminino se unem até in vitro), é aquisição das últimas décadas (BERLINGUER, 1991, p. 39). (Grifou-se)

A sexualidade, nos termos acima transcritos, além de ser resultante de um raciocínio

simplista sobre sua realização, é obviamente considerada como ocorrência caracterizadora da

existência de sexualidade na concepção, mesmo que concretizada por meios técnico-

científicos. No entanto, não se pode aplicar o mesmo raciocínio ao “exercício” da

sexualidade, sendo este o ato humano voluntário desvinculado de emprego de técnicas de

laboratório, ou seja, com o contato físico direto.

Conclui-se, assim, que o exercício da sexualidade decorrente de ato humano

voluntário, com o contato físico direto e sem o emprego de técnicas científicas, pode ser

expressão eventualmente cabível para justificar a ausência de “sexualidade” nas procriações

assistidas.

Neste enredo, as referências paradigmáticas que se revelam no contexto são

evidenciadas notadamente nos discursos obtidos em tempo contemporâneo e ulterior às suas

práticas materializadas. Significa dizer que as práticas médicas voltadas ao eixo-grosso da

pesquisa não tinham um ligação direta com o campo sócio-político, ou seja, os protagonistas

da categoria médica não estão vinculados, naquele momento, a qualquer tipo de limitação

administrativa, política ou legal referentes à continuidade de trabalhos em prol de avanços

científicos relacionados à reprodução humana.

relacionadas às técnicas de reprodução humana assistida já desenvolvidas, bem como às suas

formas de aplicação, depois de um período intenso de incessantes e sucessivas descobertas

relacionadas ao tema.

Como exemplo, em artigo publicado pela revista médica Estudos Goiânia, Denise

Teles Freire Campos, mencionando Jacques Testart, renomado biólogo francês, especialista

em procriação humana, faz as seguintes considerações:

Testart (1990) adverte que a perspectiva medidas das técnicas de reprodução humana apresenta outros interesses além daqueles do casal ou da mulher que sofre dificuldade de ter filhos. Tal autor aponta dois pontos muito importantes nas relações entre medicina, pesquisa e casais, no contexto da demande de um filho. Primeiro, Testart (1990) relembra que as técnicas deste campo consistem na aplicação, na espécie humana, de conhecimentos e procedimentos já utilizados em animais, Então é necessário reconhecer que o espaço de pesquisa propriamente dite é limitado, em razão da herança do campo animal, consiste na adaptação das técnicas à nossa espécie, levando em consideração as singularidades biológicas e, em determinadas circunstâncias, o devido respeito ético (CAMPOS, 2003, p. 153-164).

Outros pontos de críticas são levantados pela autora, quais sejam, o mito da medicina

onipotente, de onde o senso comum obtém a idéia de inexistência de obstáculos à ciência

médica e a respectiva perfeição das técnicas desenvolvidas, que acaba por gerar um

espetáculo relacionado a um tema em que dois grupos se confrontam: os médicos que,

entusiasmados com os avanços das técnicas científicas levam os casais a se submeterem a tais

procedimentos que ainda possam estar em fase de desenvolvimento e os próprios casais, que

lutam pela possibilidade dessa submissão às vezes incerta.

Vários são os exemplos de estudos direcionados ao âmbito da reprodução assistida

neste contexto. Uma infinidade de artigos manteve acesas as discussões sobre limites, críticas,

questões éticas e novos problemas acerca da temática.

Dentre os estudos referentes às novas tecnologias, Simone Novaes e Tânia Salem, em

1995, propõem uma interessante reflexão sobre o recurso às tecnologias reprodutivas e o

status do embrião.

Dentre as principais expressões relatadas nestes artigos, pode-se encontrar afirmativas

que reforçam as constatações de discursos que entrelaçavam as categorias medicas e jurídicas

no contexto, mormente a partir dos anos 80, como exemplo, o realizado por Tânia Salem:

Assim, as indicações para a fertilização in vitro - que na década de 80 se restringiam a casais inférteis - vêm se ampliando consideravelmente nos últimos anos. Mas esses eventuais benefícios não aplacam aqueles que vêem nessa manipulação um atentado contra a vida e a espécie humana, nem os que nela vislumbram os horrores de um “admirável mundo novo”. Discute-

se, em suma, se esses procedimentos exploratórios são eticamente aceitáveis ou não; e, em caso de uma resposta afirmativa, pergunta-se quais são seus limites (SALEM, 1997, p. 76).

Margarete Arilha, do Centro de pesquisas das doenças materno-infantis de Campinas - Cemicamp, no ano de 1996, depois de investigar casais antes, durante e depois de recorrerem à tecnologia da fertilização in vitro, propõe, por meio do Estudo Comparativo sobre as conseqüências da laqueadura na vida das mulheres: relatório técnico final., publicado em Janeiro de 1998, que o uso dessas tecnologias seja desestimulado e reivindicando como um direito que a infertilidade seja tratada preventivamente.

Lucila Scavone, em 1998, analisando a entrada das mulheres brasileiras no ciclo

dessas tecnologias (contraceptivas e conceptivas), concluiu que o uso de uma pode gerar a

necessidade de outra, no contexto da intensa medicalização.

As representações sociais sobre as práticas decorrentes de novas tecnologias

reprodutivas (fertilização in vitro e transferência do óvulo fertilizado para uma gestante

substituta) foram objeto de pesquisa (bibliográfica e de peças jornalísticas) realizada por

Naara Luna, publicada pela primeira vez no ano de 2002 para interpretar os significados

atribuídos à maternidade e à natureza (LUNA, 2005, p. 412).

Rosely Costa, em 2001 e 2002, comparou as representações sobre esterilidade e desejo

de ter filhos manifestadas por homens e mulheres que buscavam tratamento para a

esterilidade, indicando que esta “fere tanto a masculinidade quanto a feminilidade, ainda que

de maneiras distintas”, comparando-a as representações de paternidade (como plano de

futuro) e às de maternidade (realização de sonho) (GOMES COSTA, 2002, p. 339-356).

Nota-se que as áreas correlatas à medicina conclamam o refreamento às aplicações das

técnicas desenvolvidas, tendo em vista as constantes descobertas em curtos períodos, o que

poderia possibilitar realização de uma intervenção médica que, ao seu final, já poderia estar

ultrapassada ou, comprometida desde o início, colocando em risco vários fatores que

englobam o processo de assistência técnico-científica à procriação humana.

Importante ressaltar, neste sentido, que tais conclames não se restringiam somente às

áreas acadêmicas, científicas ou círculos profissionais restritos, como se pode constatar na

matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 20 de fevereiro de 2003, intitulado

“Médicos pedem cautela na reprodução assistida”, de autoria de Antonio Arruda, senão

vejamos:

lembrando a moda da cesárea no Brasil, o segundo país campeão em realização desse tipo de parto: há medico aplicando esses métodos a torto e a direito, os pacientes agradecem, pagam muito por isso, e a saúde da criança gerada pode sofrer conseqüências. Em resumo, profissionais da área alertam para a banalização das técnicas de fertilização in vitro e ICSI, conhecidas como de alta conexidade, por parte da mídia e de uma parcela dos médicos que trabalham com reprodução humana (ARRUDA, 2003, p. 7).

Porém, as críticas em relevo referem-se à aplicação de técnicas de reprodução assistida

e as eventuais conseqüências para a saúde dos usuários - os pais e, com maior ênfase, os

filhos resultantes dessa técnica -, alertando para a possibilidade de aumento dos casos de

infertilidade em gerações futuras. Este entendimento é expresso na mesma matéria pelo

coordenador do setor integrado de reprodução humana da Unifesp, Agnaldo Cedenho,

conforme se transcreve:

A infertilidade terá de mudar a sua classificação, porque ela passou a ser, ou potencialmente poder vir a ser, uma doença hereditária, por conta das técnicas de reprodução assistida, dos recursos tecnológicos de que dispomos (ARRUDA, 2003, p.8).

Analisando a amplitude da matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo - um

veículo de mídia de grande repercussão nacional -, pode-se inferir que as críticas relacionadas

às aplicações desenfreadas de técnicas de reprodução assistidas são das mais diversas formas

e também expostas à população em geral como um “alerta” pelos próprios profissionais da

categoria médica.

O que se depreende de tais informações é que a comunidade médica expressa, ao

tempo em que se desenvolvem constantemente as novas técnicas de reprodução assistida, que

há a necessidade de “cautela” para sua utilização. Justamente por se tratar de um tema de

interesse público e com dimensões sociais plausíveis, não pode ser somente considerada como

uma opção “pessoal”, como se depreende do contato inicial com a matéria veiculada. É um

fato de elevada repercussão que requer, por meio da intervenção dos poderes estatais, uma

regulamentação de maneira a conferir controle de sua utilização, visando atender aos anseios

demonstrados pela própria comunidade médica.

O que permite esta afirmativa é o fato de estar patente a conotação eugenista na

intenção do interlocutor do trecho citado anteriormente, pois nota-se uma preocupação com as

“gerações futuras” oriundas desse tipo de reprodução, as quais são consideradas

potencialmente suscetíveis a portarem uma “doença hereditária”, qual seja, a infertilidade.

de reprodução assistida e de maneira preocupante: a estigmatização de uma nova linhagem de

seres humanos. Assim, sendo a preocupação primaz de uma parcela da categoria médica o

aumento de pessoas inférteis, os estudos de Paulo Franco Taitson e de Oswaldo Bueno

Amorim Filho indicam que pouco se sabe sobre a incidência de infertilidade e a distribuição

de homens e mulheres inférteis na população brasileira:

Assim, apesar de utilizar sólidas bases teóricas, metodológicas e técnicas, este projeto, de aprofundamento do conhecimento nesta área, por seu pioneirismo no Brasil, tem um caráter que é, antes de tudo, exploratório (TAITSON; AMORIM FILHO, 2002, p. 26-27).

Pode-se questionar, destarte, no seguinte sentido: a aplicação dessas técnicas poderia

ser regulamentada no sentido de evitar (proibir) que os seres humanos oriundos de sua

aplicação não possam ser portadores de infertilidade? Por outro lado, é possível permitir, via

legislativa, que tais aplicações possam ser utilizadas livremente, mesmo com este “risco”

alertado pelos médicos, nos quais os seres humanos possam ter vida mesmo com a

possibilidade de nascerem com a mesma característica hereditária - a infertilidade - de seus

ancestrais diretos? Tais questões se refugiam no âmbito ético, alcançando dimensões que

excedem a simples aplicação de regras quantitativas e qualitativas quando direcionada à vida

de seres humanos.

São decorrentes de tais questionamentos várias concepções paralelas, como exemplos,

as que envolvem os gêneros aliados à reprodução. A busca pela fertilidade passa a representar

a tônica usual entre os particulares, sem necessariamente representar uma alteração na ordem

dos fatos antes considerados comuns.

Neste sentido, Rosely Gomes Costa, em pesquisa direcionada às discussões entre

reprodução e gênero, e ainda, sobre paternidade e maternidade a partir da análise das

representações masculinas da paternidade sob a perspectiva da reprodução assistida, questiona

se “seria a paternidade concebida pelos homens como fundamental para a masculinidade”.

Acrescenta a indagação se “seria um desejo e um evento naturais em suas vidas.” Em resposta

a tais questionamentos, a autora afirma:

A análise das entrevistas apontou mediações em relação à primeira questão. A paternidade mostrou-se concebida como fundamental para uma determinada masculinidade, a dos casados, uma vez que a dos solteiros pode fundamentar-se na sua falta de responsabilidades, liberdade sexual e acesso a várias mulheres. Assim, o casamento (heterossexual e monogâmico) recria a noção de masculinidade ao incorporar a paternidade, com suas conseqüentes responsabilidades.

Assim, as tecnologias reprodutivas abrem mais possibilidades para as atribuições de maternidade e paternidade, mas sem que estas deixem de ser consideradas, como argumenta Strathern em relação ao parentesco, um fato da sociedade enraizado em fatos da natureza (GOMES COSTA, Rosely, 2002, p. 339-356).

Destarte, deduz-se que a influência social das técnicas de reprodução assistida possui

representação sociais com amplitude significativa, de tal forma que se têm como

conseqüências as novas perspectivas de gênero, estas recriadas a partir do advento daquela e

que repercutem direta e indiretamente em vários âmbitos do coletivo e do particular, sendo,

por esta razão, matéria de grande relevância e amplamente debatida pela categoria médica.

Seguindo-se as referências contextuais sobre as idéias emanadas da categoria médica

sobre reprodução assistida em seus diversos segmentos, percebe-se que a dimensão dos

problemas decorrentes dos avanços científicos de maneira desordenada/desenfreada são

pontos críticos nos quais se pautam vários expoentes e protagonistas, os quais, visando relatar

os pontos em que há necessidade de maior aprofundamento e reflexões em questões éticas,

sociais e que, conseqüentemente, requerem, de maneira explícita, a intervenção de instituições

reguladoras do social para moldar os contornos seguros para a prática e aplicação de tais

avanços.

As implicações éticas e sociais passam a ser evidenciadas a partir do discurso destes

agentes, os quais demonstram preocupação com fatores que estão diretamente ligados aos

elementos que constituem os contornos da sociedade e do Estado, como exemplo, no que se

refere à família como instituição nuclear, tema este a ser desenvolvido em outro ponto deste

trabalho.

1.5. Trajetória histórica dos avanços médicos-científicos e reprodução