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Turno Sigla do

locutor Transcrição

Observações sobre o enunciado verbal

Obs. sobre o enunciado não-verbal

1 Inv. vamos discutir as nossas bases. Fala em tom de brincadeira.

2 CF baaaseees! Dá risada.

3 Inv. só me deixa tomar um copo de café.

4 CF hum, hum.

5 Inv. você me permite tomar um copo de café?

6 CF essa, essa, essa. Fala com ansiedade.

7 Inv. você ficou brincando de computador aí até agora.

Inv. descontrai.

8

CF

não, essau! Computador, ó, ai, essa essau.

essa essau, pum pum pum. Ié, ó, essa essau.

Faz caretas e gestos de alguém bravo, para mostrar que não lhe permitiam o uso.

9 Inv. nesse sentido aí, eu concordo, porque ninguém merece ficar...

Falam

simultaneamente.

10 CF essa, ó, pum pum pum, bruuu. Põe a língua para fora ao dizer “bruuu”.

11 Inv. ...ficar escutando ladainha.

12 CF essau!

13 Inv. entendo, concordo plenamente com você.

14 CF ié, essa ó, tum, tum, tum, tum, 1, 2, 3...

Mostra os meses do calendário, um a um.

15 Inv. humm, é possível. CF quer pagar por um computador

parceladamente.

16 CF é?

17 Inv. é possível, sim, parcelado, né?

18 CF essa essau?

19 Inv. é possível, mas veja só...

Inv. olha para a pesquisa na tela do notebook.

20 CF essa, ó, essau, shiu, essau, tum tum tum.

Chama por Inv., dizendo, shiu.

21 Inv. um exemplo, vamos ver esse daqui. Inv. passa as imagens.

22 Inv. olha esse computador aqui... E o preço?

23 CF preç’ é...

24 Inv.

você pode parcelar em 12 parcelas... de quanto por mês? Olha o preço.

Mostra o preço no canto da propaganda.

25 Inv. está fácil, hein!

Referindo-se ao preço que ela não acredita.

26 CF éée!! Faz cara de negação.

Antes de qualquer consideração a respeito desse dado, ressalta-se que, se as falas de CF fossem analisadas de um ponto de vista exclusivamente gramatical ou por meio de um teste como faz o site de Cegoc e suas provas de expressão e compreensão oral, leitura e escrita, que avalia “aspetos como: perseveração, perda de elementos linguísticos, defeitos de evocação, alterações fonéticas e semânticas, reduções e problemas de articulação”26, CF seria posta definitivamente à margem de qualquer quadro de interlocução, pois não corresponderia às exigências desse teste, que são as seguintes:

Reúne 60 provas psicolinguísticas que avaliam, por exemplo, a nomeação de imagens, a discriminação auditiva, a repetição e a compreensão de palavras e de frases, a amplitude de memória, o conhecimento das letras/grafemas, a consciência fonológica, a leitura em voz alta e a escrita por ditado.

A PALPA-P27 pode ser utilizada para a avaliação da afasia, mas também para outras

perturbações que possam envolver, em maior ou menor grau, a linguagem (autismo, epilepsia, paralisia cerebral, síndrome de Down, dificuldades de aprendizagem,

26 Disponível em: http://www.cegoc.pt/teste/teste-para-o-exame-da-afasia/; acesso em 06/10/2015. 27 Provas de Avaliação da Linguagem e da Afasia em Português.

dislexia, hiperatividade e déficit de atenção, traumatismo crânioencefálico, tumor cerebral, acidente vascular cerebral, demência, entre outros).28

No entanto, descartando baterias de teste como essa, verifica-se que é justamente pela atividade de interlocução - por compartilhar com o outro enunciados que são motivados por questões pessoais e estruturados em uma situação discursiva, partilhada por ambos - que valores semânticos são agregados à fala de CF. A respeito desses dados, é interessante perceber como a fala de CF lembra o que descreve Pires sobre si mesmo em “De profundis” (1997). Pires não analisa apenas como seus familiares o viam, mas descreve seus sentimentos, reflete sobre o funcionamento da linguagem, sobre o uso que fazia de suas “novas palavras” e de como se relacionava com as pessoas e um mundo linguisticamente modificado. Nota-se bem como o “simosos” de Pires, citado anteriormente, muito se se parece com o “essau” de CF, visto que esses dois termos trazem uma pluralidade de uso e significados.

Pires (1997) mostra seu trabalho interno de rever e tentar reescrever semanticamente as palavras que conhece; nesse aspecto, seu texto e os dados de fala de CF se relacionam com as reflexões de Benveniste (1976). Observando os enunciados de CF, compostos pelas repetições de “essau essau” e outras estereotipias como “pum pum pum” e “Puta mãe de Deus”, percebe-se que

a instalação da “subjetividade” na linguagem cria na linguagem e, acreditamos, igualmente fora da linguagem, a categoria da pessoa. Tem além disso efeitos muito variados sobre a própria estrutura das línguas, quer seja na organização das

formas ou nas relações da significação (BENVENISTE, 1976, p. 290, grifo meu).

E é por essa perspectiva que se observa a subjetividade, a posição de CF no discurso e as relações de significação de sua fala, que impressiona e até assusta os que a ouvem. Porém, apesar do distanciamento que sua fala causa em não iniciados em estudos de afasia, acredita- se que em sua linguagem há muito a ser explorado e reestruturado. Afinal, de acordo com estudos desta linha de pesquisa, não se pode “conceber a linguagem apartada de seu funcionamento e do sujeito que a enuncia” (COUDRY, 2008, p. 4). E é por meio da interlocução que se observa a organização do léxico de CF e se analisam as relações de sentido entre o que há de preservado em sua fala e o que há da língua para ser retomado - o velho e o novo – discutido por Coudry (2008), com base em Freud. Já o investigador, diante de um quadro como esse de CF, deve procurar em todo esse emaranhado de “essa essau”

28 Disponível em: http://www.cegoc.pt/teste/provas-de-avaliacao-da-linguagem-e-da-afasia-em-portugues/;

como se dá o funcionamento de sua linguagem, para que se procedam tentativas de compreendê-la e sustentar a interlocução. De acordo com os dados de fala de CF, entende-se que, de fato,

[...] a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do

receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro

(BAKHTIN, 1929/2006, p. 135).

Por exemplo, no turno 14, interessada em saber se podia parcelar a compra de um computador, CF dizia: “Ié, essau ó, tum, tum, tum, tum, 1, 2, 3...”, enquanto apontava para o calendário e, a cada “tum” que pronunciava, marcava um mês do ano com a ponta do dedo, a fim de expressar uma sequência temporal. Segundo Freud (1891, p. 101) e como percebido em atividades no CCA, afásicos buscam uma série de palavras para chegar ao ponto que desejam; é comum um afásico dizer “sábado”, “domingo” e ir galgando dias até chegar na data pretendida, como não afásicos também o fazem. Além disso, a comunicação de CF só ocorre porque ela é reconhecida pelo investigador como falante da língua, que recorre a diferentes suportes, objetos como um calendário, para compor sua fala.

Nesse turno 10, CF diz os nomes dos meses por meio de estereotipias que constituem sua fala, mas mantém a subjetividade do que enuncia. Por outro lado, se dado a ela um “prompting” para que inicie a pronúncia de cada mês, CF os dirá a plenos pulmões, mas dificilmente o fará novamente, se sozinha. Como comenta Fedosse (2000, p. 112), “o prompting fonético favorece a operação de contiguidade, ou seja, à medida que ele (re)põe o contexto, ele favorece a combinação das unidades linguísticas, possibilitando assim a produção oral de CF”. Frente a isso, faz-se importante a retomada da leitura e escrita, pois acredita-se que a escrita contribua para que sejam marcadas as sensações da língua em seu corpo; como diz Freud (1891, p. 89-90), “aprendemos a escribir reproduciendo las imágenes

visuales de las letras con la ayuda de las impressiones cinestésicas recibidas de la mano [...] hasta que obtenemos figuras idénticas o similares”. Com o plano de reestruturar as

representações entre imagens visuais e sons das palavra para CF, esse trabalho de escrita funcionaria também como um ordenador de processos articulatórios, ordenador da inervação de seu aparelho de fala a partir da relação letra(imagem)/som, visto que a imagem mental da letra seria um combustível neurológico para o motor/articulatório da fala. Afinal, como diz

Coudry em “Afasia como tradução” (2008), é a compreensão de que, embora afásicos, ainda prevalece nesses sujeitos o gérmen da fala, isto é, a linguagem. Esta que

[...] não é um dado ou resultado; mas um trabalho que ‘dá forma’ ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do ‘vivido’, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como sistema de referências em que aquele se torna significativo (FRANCHI, 1977, p. 22).

Ouvindo os enunciados de CF e analisando sua interação com o outro, prova-se que “[...] a língua não é uma estrutura, uma superfície plana, um objeto perfeito cujo funcionamento poderia ser calculado independentemente dos fatores que o afetariam apenas em determinadas condições” (POSSENTI, 1995, p. 20), mas algo que assume formas e significados a partir de seus falantes e do ambiente que os sustenta. Preceitos estes caros à ND desenvolvida na UNICAMP. Conforme diz Benveniste (1976, grifo nosso) em seu prefácio, “[...], o que se destaca é o papel da significação e da cultura; estudam-se aí [aqui neste trabalho] os métodos da reconstrução semântica [...]”; reconstrução que cuida da palavra falada, lida ou escrita. Reestruturação que, como se identifica no próximo dado, é estabelecida pela mediação do outro e as necessidades que este demanda a CF, ao discurso, o qual se apresenta como situação de uso da fala completamente diferente de uma prova ou teste, que esperam por uma resposta precisa e única por parte do sujeito.