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Turno Sigla do locutor

Transcrição Observações sobre o enunciado verbal

Observações sobre o enunciado não-verbal

1 Inv. 1 farmácia, em qual situação recorremos a ela?

2 AM vou fazer.

3 Inv. 1 você vai estudar?

4 AM é.

5 Inv. 2 você não quer mais ser veterinário?

6

AM

não, não é que não quero // vou abrir uma farmácia.

7 Inv. 2 mas já vai abrir ou vai estudar primeiro?

8 AM vou estudar, quando estiver na metade : daí / eu abro.

9 Inv. 2 mas uma farmácia de medicamentos pra cachorro, gato?

10 AM humano.

11 Inv. 2 você está indo no seu consultório?

12 AM tô nada / tá fechado.

13 Inv. 2 você não consegue nem atender? // assim?

14 AM

não // é // tipo / lá ligam / aí a secretária fala que eu to afastado por um tempo // porque // o mecânico não tá lá.

15 Inv. 1 e quando uma pessoa vai à farmácia?

16 AM quando tô doente.

17 Inv. 2 e só quando está doente?

18 AM quando é pa’ paga’ a conta.

Confirma-se nesse dado o quanto essas atividades metalinguísticas revelam que “[...] a afasia submete o sujeito afásico a não dizer algo e a dizer/mostrar/fazer outra coisa em seu lugar; outras palavras ocupam o lugar da palavra pretendida, [...] um dizer sem inibição que ocupa o dito pretendido. Um deslocamento com substituição (FREUD, 1901/1969)” (COUDRY, 2008, p. 32).

Deslocamento que se vê na fala de AM, no turno 2. Ao primeiro olhar sobre sua fala, pensa-se que AM não tratou diretamente do que lhe perguntaram. Porém, o que ele realiza é uma reordenação do assunto em questão, pois quer interagir, quer falar de si. AM, já tendo participado de outas atividades nesse formato, quando questionado, “Farmácia, em qual situação recorremos a ela?”, respondeu: “Vou fazer”, a fim de contar sobre seus planos de ingressar em um curso de Farmácia. Seu enunciado, assim como visto em outros dados até aqui, traz um verbo semanticamente preenchido, em que os sentidos de “Vou fazer” deslizam sobre o que fora dito, sobre Farmácia. O conhecimento compartilhado pelos integrantes do

discurso sobre os termos “Farmácia” e “vou fazer” é manipulado por AM. Ademais, é a partir disso que ele encontra abertura para falar de sua necessidade de trabalhar, de abrir um negócio no qual suas limitações motoras não sejam um empecilho para o desenvolvimento de suas atividades.

E, quando os interlocutores mostram-se atentos à fala de AM e este deve, então, prosseguir seus enunciados, no turno 14, ressaltam-se suas dificuldades em dar contiguidade à sua fala. Dificuldades que aparecem por questões articulatórias e também porque precisa refletir, selecionar, organizar o que quer dizer:“Não // é // tipo / lá ligam / aí a secretária fala que eu to afastado por um tempo // porque // o mecânico não tá lá”.

Nota-se que AM seleciona o termo “mecânico” para se referir a si próprio, sendo ele veterinário. O que se tem aí pode ser também considerado como uma questão de parafasia (FREUD, 1891) ou, como pesquisada por Jakobson (1956/2003), uma similaridade semântica, visto que se tem a passagem de sentido de “mecânico” para “veterinário”, profissionais que consultam e consertam engrenagens. No caso de AM, neurologista e ortopedista veterinário, entende-se perfeitamente como aquele que conserta as peças de um corpo. Além disso, vê-se em suas falas que ele “mostra que sabe o que tem que ser dito, que tem dificuldades para dizer o que é preciso dizer e que com esse trajeto - que passa pela linguagem do investigador – é capaz de dizer, mediante uma atividade epilinguística que expressa sua subjetividade” (COUDRY, 2012a, p. 28).

A partir de dados como esse, dado 14, percebeu-se que AM, quando dialoga sobre assuntos relacionados à sua profissão, se sai muito melhor. Sua desenvoltura para falar parece estar relacionada à existência de uma matriz de fala preservada em sua linguagem, como se houvesse em sua mente um layout do que e de como deve responder as questões ligadas ao seu trabalho. Afinal, sua profissão dá a ele um lugar e um léxico que não se apaga. Sem embargo, identificou-se que é a relação com o outro que o motiva e indica os rumos e a qualidade de seus enunciados. A partir de seus dados, compreende-se que a estruturação da fala passa, sobretudo, pela singularidade do sujeito, na qual ele angaria recursos e tem mais chances de adquirir autonomia sobre o que quer dizer. Frente ao outro, assim como muitos afásicos, AM faz o ajuste do que quer dizer e de como quer dizer. Além disso, é pelo outro que se encontram motivos para dizer.

5.3. BM: a fala que eu (não) controlo

BM tem 27 anos e nível superior incompleto no curso de Administração de Empresas. Quando fala de si, descreve-se como um sujeito reservado, apaixonado por música, especialmente rock. Tem um sorriso que vem fácil, que inclusive figurou em comercial de televisão para uma franquia de restaurantes, no qual surge expressivo e animado. São qualidades que não mudaram, apesar de há três anos ter sofrido um AVEi, Acidente Vascular Encefálico Isquêmico, que afetou a região têmporo-parietal esquerda de seu cérebro. Conforme laudo médico, BM, após o acidente, permaneceu alguns dias em coma e, quando despertou, como ele mesmo relata, só podia dizer “mi mi mi”. Eram essas, então, as “palavras” que controlava.

Em relação às características e sintomas de sua lesão - como dito no decorrer deste capítulo, segundo textos de Luria (1987, 1992) – citam-se problemas que trazem ao sujeito dificuldades para organizar sua fala, para compreender o que lhe é dito, coordenar funções espaciais ou ainda ter problemas com leitura e escrita. E é justamente sobre a escrita um dos pontos sobre o qual BM trabalha, no CCA, acompanhado por uma professora35. Ele espera um dia terminar seu curso universitário e ainda estudar Psicologia, curso pelo qual tem fascinação.

Sobre aspectos relacionados ao foco de uma lesão como a de BM, Luria esclarece que

[...], um sujeito no qual as zonas parieto-temporais do córtex do hemisfério esquerdo encontram-se em um estado patológico, ao responder a essa pergunta [onde se encontra?], colocará em manifesto uma alteração da seletividade dos processos verbais. Essas alterações são semelhantes a alguns fenômenos [...] como o da “ponta da língua” ou as dificuldades que experimenta um sujeito que tenta recordar um sobrenome pouco freqüente e mal fixado. [...] (LURIA, 1987, p. 90).

Quanto a esses sintomas arrolados por Luria, acarretados pela afasia, verifica-se que BM, normalmente, tem problemas para iniciar seu turno de fala. Às vezes, quando interrogado sobre algo, olha para o alto, fecha os olhos, usa os dedos para contar ou sequenciar as palavras e, depois de alguns segundos, se expressa. Porém, e é isso o que é interessante de acordo com a perspectiva teórica da ND, não se avalia a condição de fala de um sujeito apenas por algumas perguntas ou por alguns momentos nos quais não se saiu bem. Por exemplo, BM poderia ser considerado com um afásico verbal (FREUD, 1891, p. 91), no entanto, em atividades no CCA, apresenta-se bem menos afásico do que a classificação das afasias

encerra. Como se verá em seus dados de fala, a afasia é um mal intermitente, ora suprime, ora libera processos relacionados à fala e, como dito por Coudry, ninguém é afásico o tempo todo. No dado a seguir, foi apresentado aos sujeitos uma foto de Cazuza, músico que faleceu em julho de 1990 e é nacionalmente conhecido por suas composições e por ter sido, para muitos, um jovem que se impunha contra regras sociais. O objetivo da apresentação dessa foto era perceber, “avaliar”, como BM estruturaria seus enunciados a partir da imagem de Cazuza. E, para esta foto, produziu o seguinte enunciado:

Figura 13: Cazuza