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Concepção de “normalidade”

15 RG roupa branca e vermelha; dá presente; anda de rena.

16 CF ahh, é, bia, éé / éé / essau ta ta ta essau /

Com espanto! toca no papel em sua testa.

A partir de casos como o de CF, destaca-se a importância do trabalho desenvolvido no CCA e os valores da perspectiva da ND. Nota-se que o CCA se constitui com um lugar de narrar vidas. Como diz Sampaio (2010, p. 51), na comunidade do CCA, não se usa a língua como elemento que define modos de análise, usam-se práticas com a linguagem, em situações de comunicação que visam restaurar o sujeito como alguém ativo na sociedade.

[...] no CCA, o corpo patológico (que se diferencia do corpo social pelo que escapa à maior parte dos sujeitos) é inserido num contexto em que há regras, normas e espaço para a heterogeneidade, para as diferenças entre os sujeitos, seus modos de agir e de se colocar no mundo (SAMPAIO, 2006, p. 73).

Nesse sentido, analisar o uso que CF faz da língua a partir de suas intenções comunicativas, perceber como manipula sua subjetividade frente ao outro e como este

contribui para produção de seus enunciados, são processos que exigem mais do que uma prática clínica sobre o que é estranho na fala de CF. De fato, são necessários conhecimentos linguísticos que coloquem o sujeito como locutor na interlocução, a fim de observar ao que recorre e o que não usa da linguagem, o que reconhece e o que não reconhece da fala e da língua.

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5.2. AM: interlocução, a linguagem que manipulo

Patricia, descrita em “Chamada de volta à vida”, segundo capítulo de “O olhar da mente” (Sacks, 2010), era, de acordo com esse autor, uma mulher muito inteligente, dona de uma galeria de arte, pintora diletante. Mãe de três filhas, encontrava-se por volta dos sessenta anos. Seu marido havia morrido em 1989, vítima de um ataque cardíaco e ela, que no ano anterior havia sido submetida a uma cirurgia delicada, segundo suas filhas, recuperou-se bem, mas passou a apresentar um comportamento bastante peculiar, perdendo-se pelas ruas. Tristeza e melancolia tomavam conta de sua vida, prejudicando sua saúde. E, em janeiro de 1991, após passar dois dias sem atender ao telefone, suas filhas ligaram para a polícia e para o vizinho de Patricia, que a encontraram na cama, inconsciente. No hospital, ficou em coma por vinte horas. Sofreu uma grave hemorragia cerebral, um coágulo formou-se na parte esquerda de seu cérebro, em seu hemisfério dominante. Nesse estado, foi submetida a uma nova cirurgia e, depois de passar duas semanas em um quadro “vegetativo crônico”, mostrou seu primeiro sinal de lucidez, ao aceitar, fazendo sinal de sim com a cabeça, um pouco de coca- cola diet. No entanto, seu lado direto estava paralisado.

O parágrafo anterior relata acontecimentos semelhantes aos ocorridos com AM, 42 anos, um homem inteligente, médico veterinário, dono de uma clínica especialista em Neurologia e Ortopedia de quadrúpedes, apaixonado por esportes radicais e rock and roll. Tornou-se afásico em 2014, após sofrer um acidente de moto que afetou diversas áreas de seu cérebro, ocasionando principalmente uma lesão fronto-parietal em seu hemisfério esquerdo. AM teve ainda a asa esquerda do osso esfenóide quebrada, estrutura similar a asa de um morcego, que sustenta o cérebro atrás dos olhos, e, de acordo com sua tomografia, teve muitos

focos hemorrágicos em seu cérebro. Problemas que acometeram principalmente a transição corticossubcortical dos lobos frontais, parietais, pedúnculos cerebelares médios, corpo caloso e tronco encefálico. Lesões que trouxeram uma forte ataxia para seu braço direito e prejudicaram toda sua coordenação motora. AM, que adorava correr, via-se caminhando com a ajuda de um andador. Além disso, assim como Patricia, passou muitos dias em coma e, quando despertou, seu primeiro pedido foi comer tangerina, picanha e tomar cerveja, conforme contou seu melhor amigo e AM confirmou.

Conforme seu laudo médico, AM estava marcado por uma afasia amnésica que compromete a denominação ou o uso de substantivos (FREUD, 1977). Porém, contrariando seu laudo clínico, logo que despertou do coma, já dizia o nome do que queria consumir. Durante os dois meses que frequentou o CCA, na maioria das atividades das quais participou, notou-se que teve dificuldade com a organização de descrições orais e em manter um fio narrativo sobre o que pensava e queria relatar. A inconsistência de seus relatos se dava no que se referia às passagens do tempo, às épocas em que esteve mudando de cidade em sua adolescência. AM enfrentava problemas para contar o que fazia da vida durante essas mudanças, e também tinha dificuldades com a descrição das imagens que queria descrever. Assim, as características de sua fala despertaram o interesse desta pesquisa em observar como ele organizaria sua fala descritiva diante de fotografias ou ilustrações. Para tal observação, foram usadas, no dia 10 de julho de 2014, uma série de fotografias, destacadas na sequência deste trabalho.

AM, após seu acidente, embora tenha recebido um prognóstico médico bastante desanimador em relação às suas possibilidades de fala, durante o tempo em que esteve no CCA, teve sua fala analisada a partir de vídeos, fotografias, perguntas de caráter metalinguístico e demostrou que organizava bem seus enunciados. Apesar de ter sofrido lesão na região parietal de seu cérebro, o que, segundo Luria (1992, p. 151), pode originar uma afasia semântica, atividades orientadas pela ND responderam que alterações positivas em um cérebro tão lesionado podem ocorrer, tal como se perceberá nas produções orais de AM.

Quanto a um possível quadro de afasia semântica, em seu trabalho de acompanhamento de casos de afasia, Luria conta que

[...], na tentativa de levantar os sintomas associados a afasia semântica. Tanto nas pesquisas anteriores quanto em nossas próprias observações constatamos que os pacientes não tinham dificuldade em compreender o significado de idéias complexas, como "causalidade", "desenvolvimento", "cooperação". Também eram capazes de engajar-se em conversações abstratas. Mas as dificuldades apareciam

quando se deparavam com construções gramaticais complexas que codificavam relações lógicas (LURIA, 1992, p. 141).

Luria (1992, p. 141) ainda explica que sujeitos com afasia semântica têm problemas com relações lógico-espaciais em atividades que envolvem “acima” ou “à direita de”; mostram dificuldades com o uso de relações lineares, marcadas por termos como “antes” ou “depois”, além de “expressões como “o cachorro do mestre” ou “irmão do pai”. Por exemplo, um sujeito afirmou “É claro que eu sei o que são “PAI” e “IRMÃO”, mas não consigo imaginar o que os dois significam juntos” (LURIA, 1992, p. 141). A partir de análises como essas, de Luria, pensou-se que uma atividade com fotografias poderia contribuir para que se compreendesse como AM se comportaria em descrições de fotos e, se suas produções linguísticas, corresponderiam a uma das classificação de afasia mencionadas por Luria. AM, em sua chegada no CCA, aparentemente encontrava problemas com descrições que deveriam marcar o tempo e o espaço. E, na foto que se segue, há uma disposição de elementos que certamente permitiriam avaliar sua fala nesse sentido, espacial.

Figura 8: Pato sobre a água