• Nenhum resultado encontrado

Turno

Sigla do

locutor Transcrição Observações sobre o enunciado verbal

Obs. sobre o enunciado não- verbal

1 Inv. 1 semana que vem não tem, né, grupo?

2 Inv. 2 é feriado, né?!

3 CF não! / pai, nosso senhor convosco.

Em tom de oração para dizer que se tratava de um feriado santo.

Sobre essa fala de CF, verifica-se que “são as formas que se adequam aos usos e não o inverso” (MARCHUSCHI, 2001, p. 16). A intenção funda o uso da língua e não a morfologia ou a gramática, embora estas sejam importantes para o seu funcionamento. Língua e texto devem ser vistos como um conjunto de práticas sociais e é por meio destas que se nota como CF organiza o uso que faz da língua, como se vê no turno 3 do dado 3, em que se vale de uma oração - outro desses resquícios de palavras da língua que estão gravados em sua memória e automatizados em suas articulações motoras - para dizer aos investigadores 1 e 2 que, na

sexta-feira do 5 de junho de 2015, não haveria reunião no CCA por conta do feriado santo de Corpus Christi.

CF, portanto, na ausência de palavras in praesentia (JAKOBSON, 1956/2003), de

contexto verbal, apropriou-se da forma canônica que é a oração, fazendo uma mescla entre

Pai Nosso e Ave Maria, e a adequou a seu benefício, à interlocução. Além do mais, é nesse momento que se verifica a presença de um dado-achado29, que ilumina o caso de CF e explicita possibilidades de abordagem de sua afasia. Como diz Coudry (2008, p. 20-21), “o dado-achado funciona como uma espécie de pista privilegiada para o investigador descobrir caminhos trilhados pelo sujeito que fazem compreender suas dificuldades e as saídas encontradas”.

Percebe-se como CF dribla seu problema em selecionar (JAKOBSON, 1956/2003) as palavras que gostaria, já que tem um enunciado que funciona como referência do discurso religioso pronto em sua mente. E, sobre uma afasia de seleção, esse autor diz que problemas para escolher a palavra desejada surgem quando se solicita a um sujeito afásico que fale o nome de um determinado objeto. No caso de CF, porém, não lhe é pedido que diga uma palavra específica. CF participa, inscreve-se naturalmente no discurso; embora afásica, recolhe o que encontra da língua e infunde sua subjetividade nas palavras, os recipientes para sua subjetividade.

Além disso, apenas observar que CF e os demais sujeitos analisados por esta pesquisa manipulem a língua não é algo que baste para ND. Há o objetivo de fazer com que seus problemas de fala sejam “refeitos” e para isso é preciso que sejam mostradas a CF, por exemplo, quais as relações existentes entre seus “erros” e “acertos” de fala, escrita e leitura. Vivencia-se um processo de reestabelecer as relações existentes entre esses sistemas linguísticos, tal como sucedido em certa ocasião no CCA, durante o mês de setembro de 2015. Nesse dia, CF e o investigador que a acompanhava leram, utilizando o tablet que CF comprou para si, uma página da bíblia. Mas antes mesmo de ser começada a leitura, CF havia encontrado, no alto da tela do aparelho, a palavra livro e, a seu gosto, começou a escrevê-la. O investigador decidiu, então, cobrir a palavra exibida no tablet, para que CF não a copiasse; e repetiu “livro”, em voz alta. CF, então, escreveu “levro”. Se analisada sua produção por um viés que analisa a presença da oralidade na escrita, esse dado parece mostrar que “[...] nous

29 O dado-achado, de acordo com Coudry (1996), resulta da relação recíproca entre teoria e dado, sendo uma

indicação de um processo em andamento, que resulta sempre da interação, estando os interlocutores frente a frente ou não. Só é reconhecido com tal à luz de um quadro teórico que orienta o olhar do investigador. A análise do dado-achado tem um duplo papel: ajudar a entender o aprendizado em curso e, ao mesmo tempo, impulsionar o refinamento/teórico. (COUDRY; FREIRE, 2005, p. 19).

prenons acte d'une écriture qui n'est pas absence de voix […]” (MAINGUENEAU, 1992,

119). E essa voz que não está ausente na escrita de CF parece também avisá-la de que, em sua variedade de fala, a letra “e” normalmente tem som de “i”, o que a leva a escrever “levro”, como fazem as crianças que falam essa variedade. Nessa escritura de CF, o uso de “e” ou “i” em “livro” “mostra, ainda, que há um vai e vem entre fala, leitura e escrita mesmo em um estado afásico tão grave” (COUDRY, 2012, p. 59).

Na sessão que originou esse dado, CF, após “levro”, quis escrever “bíblia”, mas escolheu “r” para o lugar de “l”. Tal ocorrência poderia ser facilmente encarada com um erro de ortografia, porém, o que realmente acontecia só foi percebido após CF repetir, para seu interlocutor, em voz alta e forte, a palavra “bíbria”. Curioso é que esse modo de pronúncia é feita por muitos falantes do português paulista e que, embora tenha usado “r” em vez de “l”, esse dado revela que “não se trata, evidentemente, de alguém que não sabe escrever. Trata-se de outra opção de escrita [...].” (POSSENTI, 2005, p. 30), baseada na fala.

Nesse sentido, outra hipótese parece estar de acordo com o que analisa Camara Jr., em “Estrutura da língua portuguesa” (1982, p. 28), obra na qual se verifica que essa “troca” de “r” por “l” é, na verdade, uma questão de rotacismo. Camara Jr. comenta que “nos grupos de líquida como segundo elemento consonântico, há nos dialetos sociais populares o rotacismo do /l/, que o muda em /r/”, tal qual se nota na fala de CF: “bíbria”. Outro autor, Bagno, em “Nada na língua é por acaso” (2007, p. 145), acredita que, atualmente, o rotacismo em “encontro consonantal é característico das variedades estigmatizadas de todo o Brasil”. Além disso, o que se nota nesse processo fonológico apresentado por CF é, sem dúvida, que não se trata de um problema de articulação referente a /l/, não se trata de um problema de afasia, mas, talvez, de um conforto articulatório que traz /r/ no lugar de /l/.

Sobre o fato de CF ter escrito tão prontamente a palavra “bíbria”, imagina-se que esta forma de escrita se mantenha com uma representação determinada/concreta em sua mente. “Bíbria” estaria representada em sua linguagem como se fosse um objeto (FREUD, 1891) ou uma fotografia inalterável. Afinal, mesmo depois de ter visto a grafia correta, “bíblia”, CF insistia em dizer a palavra pronunciando /r/, como se isso estivesse automatizado em sua fala. Por outro lado, no trabalho de reformulação da escrita de CF, de reescrita da palavra “bíbria”, nota-se presente o papel da interlocução. Afinal,

investigador e sujeito comentam sobre o que fazem com a linguagem. Há um contínuo trabalho reflexivo de ambas as partes no sentido de compreender porque se faz uma ou outra atividade com a linguagem; porque se diz como se diz; porque se

escreve do modo que se escreve, porque se lembra do modo que se lembra (FREIRE, 2005, p. 166).

Há uma relação de “troca” e de “ajuste” dos enunciados entre afásico e não afásico; e essa relação se mostra intensa também quando discutiam sobre igreja e corrupção. CF deveria ler para o investigador que a acompanhava a palavra “Fiéis”, assim mesmo, no plural, mas leu em voz alta “Fiel”. Minutos depois, tenta novamente e diz “Fiel-s” [esse], marcando a pronúncia do nome da letra “s” e, quando devia ler para todo o grupo, sob a tensão de ler em público, o investigador faz, para ajudá-la, novamente a leitura de “Fiéis” e ela, por sua vez, disse “Fiel-us”, como se tentasse aproximar o plural irregular dessa palavra ao regular da língua portuguesa, que é terminado em –os. Esse dado, como explica Coudry (2012), mostra onde a afasia incide, como ela afeta, nesse caso, a morfologia da língua. Além disso, esse dado traz à tona a representação da língua que está preservada em CF, que vê a palavra não apenas como um todo mórfico e fonológico, mas segmentado. Nota-se que, em “Fiéis”, houve duas representações distintas, uma para o singular e outra para o plural, mas seu aparelho motor de fala não encontrou os movimentos específicos para pronunciar, inicialmente, “Fiéis”30. Assim, CF recorre a outros níveis linguísticos31, passa da palavra para a produção isolada do fonema /s/, para o nome da letra “s”, sempre tendo como base a fala de seu interlocutor e as repetições que este faz da palavra.

Para Benveniste (1976, p. 131), “a função discriminadora do fonema tem por fundamento a sua inclusão numa unidade particular, que, pelo fato de incluir o fonema, depende de um nível superior”, nesse caso, a palavra; tal como se dá a situação de CF, que, às voltas com a pronúncia da palavra “Fiéis”, recorre ao fonema para tentar alcançar o plural, como não o atinge, volta a seu nível superior: “Fiel”, “o signo”, como diz Benveniste. No entanto, há que se ressaltar que casos assim, em que as estruturas fonológicas e mórficas da língua não são demarcadas, não ocorrem apenas em sujeitos afásicos; muitas vezes, falantes da língua portuguesa não diferenciam pela escrita ou pela fala se o plural correto de abajur é “abajurs” ou “abajures”, de anzol é “anzóis” ou “anzoles”, de troféu é “troféus” ou “troféis”; afinal, como é comum em muitas regiões do Brasil, muitas pessoas, sobretudo os menos escolarizados, pouco usam o plural em todos os constituintes do enunciado. Desse modo, quando é preciso escrever corretamente, recorrem às mesmas saídas usadas por CF:

30 [...] para Freud não lemos palavras, mas lemos sentidos. (COUDRY, 2012a, p. 57).

31 Na linguagem normal, a palavra é ao mesmo tempo parte integrante de um contexto superior, a frase, e por si

mesma um contexto de constituintes menores, os morfemas (unidades mínimas dotadas de significação) e os fonemas. (JAKOBSON, 1956/2003, p. 52).

pronunciar a palavra em voz alta ou enfatizar níveis específicos da palavra para se chegar a uma hipótese de fala ou de escrita.

Esta pesquisa, ao analisar a fala e alguns pontos da escrita desse sujeito, investiga quais recursos CF usa para lograr escrever ou falar, mostrando que, além de suas estereotipias, usa também palavras da língua. Essas considerações de análise, tal como explica Benveniste (1976), vão em direção à forma ou ao sentido de conceitos linguísticos, que se encontram deteriorados na afasia. Por exemplo, CF, em leitura do trecho “Amigos se cumprimentam”, disse “A-migos se ’um-pri-mido”. Há um deslize de uma palavra para a outra, certamente pelo fato de que ambas palavras, “cumprimentam” e “comprimido”, começam com o mesmo som, o que impulsiona a fala de CF.

De acordo com Freud (1891), esse deslize na articulação e produção dos sons de uma palavra, que ocorre de uma palavra para a outra, pode ser entendido como uma forma de parafasia. Segundo Freud, e isso mostra o quão à frente estavam suas análises, sobretudo se percebermos sua influência na perspectiva da ND,

la parafasia observada en los pacientes afásicos no difiere del uso errado y de la distorsión de las palabras que las personas normales pueden observar en sí mismas en estados de fatiga o de división de la atención, o bajo el influjo de emociones perturbadoras […]. (FREUD, 1891, p. 29-30).

Além disso, em um caso como esse de CF, que diz “A-migos se ’um-pri-mido” no lugar de “Amigos se cumprimentam”, para Freud (1891, p. 38), essa fala nada mais seria que um indício de um caso de parafasia. Para esse autor, palavras que têm sons semelhantes podem ser usadas - de forma equivocada - por outras, assim como algumas sons também podem ser substituídas no ato de fala, tal qual acontece com CF. Segundo Freud (1891, p. 38),

Es tentador diferenciar entre diversos tipos de parafasia de acuerdo con la parte del aparato del lenguaje en el cual tuvo lugar el error. Se habla también de parafasia cuando dos palabras que el hablante pretendía pronunciar se funden en una formación distorsionada […].

Já para Luria (1992, p. 149-150), uma situação como essa pode ser vista como comprovação de que nem todos os níveis referentes à construção de ações do aparelho articulatório estão afetados. Para esse autor, é comum em sujeitos cérebro-lesados que movimentos básicos e instintivos, da língua e dos lábios, continuem preservados, como se dá no caso de CF, que repete de maneira quase automática palavras ditas pelos outros, tal como

se nota nas duas primeiras falas a seguir. CF repete, nesse caso, a última palavra dita pelo investigador.