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Turno Sigla do locutor

Transcrição

Observações sobre o enunciado verbal

Obs. sobre o enunciado não-verbal

1 Inv. 1 cena por cena quem consegue contar?

2 AM bola de neve.

3 Inv. 2 quem faz a bola de neve?

4 AM o passarinho e/ joga no gato.

7 Inv. 2 o que aconteceu?

8 CF pulou. Faz gestos de uma bola que pinga no chão.

9 Inv. 2 p que aconteceu? passarinho jo... Prompting para jogou.

10 CF ...rinho // jogou!

11 Inv. 2 o que o passarinho fez?

12 AM ele fez uma bola e jogou no gato.

Pausa para assistir ao vídeo e confirmar a todos se era isso o que acontecia.

13 Inv. 1 e a próxima cena?

14 AM acho que ele vai sair do buraco.

15 Inv. 1 e fazer o quê?

16 AM ele disfarça e vai na bola gigante. Pausa para assistir ao vídeo.

17 Inv. 2 próxima cena?

18 AM

o gato sobe no... no... tronco e/ e/ por cima do muro ele vê o passarinho.

Todos riem com a cena.

19 Inv. 1 é isso? Pausa para assistir ao vídeo.

20 Inv. 2 e na próxima o que acontece?

21 AM ele vai bater e o passarinho vai descer?

22 Inv. 2 e o que mais?

23 AM e o passarinho escapa e sobe no telhado.

24 Inv. 2 é isso? Pausa para assistir ao vídeo.

25 AM daí ele escapa // e ele voa.

Chama atenção nesse dado a maneira com que AM consegue recuperar as cenas às quais tinha assistido, sua relação com os constituintes do vídeo se dá de modo bem mais fluído do que em relação às fotografias. Além disso, ressalta-se que o esforço para relembrar as cenas e recontá-las aos outros é algo considerável. O recontar da progressão de um vídeo é uma atividade que exige construções gramaticais bastante complexas, não apenas pela necessidade de recuperar as ações das personagens, mas por serem necessárias palavras que recriem e deem sequência à narrativa. Como diz Freire (2005, p. 166), “[...] recordar para

contar ao outro suas memórias não depende de um conhecimento prévio dos recursos expressivos da língua, mas sim de operações de construção de sentidos dessas expressões na situação dialógica, de um e outro interlocutor.”

No início da transcrição, turno 2, quando AM deve começar a comentar o vídeo, diz apenas “Bola de neve”, ou seja, novamente enunciados nominais, com as mesmas características daqueles que usou para descrever as fotografias. A bola de neve é um elemento importante da animação, porém, dita dessa maneira, traz pouco movimento, pouca carga semântica ao fio narrativo de sua fala. E os deslizamentos de sentidos presentes em “Bola de neve” não explicam o vídeo.

Logo, é nesse ponto que se percebe, mais uma vez, a importância da interlocução para a estruturação da fala na afasia; é a partir da pergunta feita pelo investigador, “Quem faz a bola de neve?”, que AM parece retomar internamente a presença das personagens e encadear sua descrição, respondendo à pergunta: “O passarinho e/ joga no gato”. E esse trabalho descritivo prossegue, auxiliado por três elementos sobre os quais AM se sustenta: 1) o vídeo assistido previamente; 2) as cenas que são recuperadas com pausas; 3) o outro, que lhe interroga, que o ajuda a completar e a organizar sua fala. Esta que já se mostra distante das características de uma afasia semântica, já que AM usa com convicção construções lógico- espaciais, como se vê no turno 18: “O gato sobe no... no... tronco e/ e/ por cima do muro ele vê o passarinho”.

Ainda que tenha uma cena do vídeo pausada como apoio, AM conta muito bem o que acontece a cada a etapa, descrevendo elementos-chave para o desenrolar do vídeo. Fato que esclarece, para esta pesquisa, a teoria de Luria (1970) a respeito do cérebro como órgão funcional complexo. Se tomado como ponto de partida seu exemplo das áreas envolvidas em um único movimento voluntário, certamente os três blocos do cérebro de AM, superando suas regiões lesionadas (fronto-parietal do hemisfério esquerdo, regiões cerebelares), são acionados e trabalham para que ele possa ter atenção para assistir ao vídeo, memorizar cenas, planejar o que pretende dizer e, então, recontar trechos da animação.

Encontra-se, nesse dado, uma excelente apresentação das funções executivas do lobo frontal, pesquisadas por Goldberg (2015). Nota-se bem que, em seu trabalho de contar as cenas do vídeo, AM tem estabelecidas metas sobre o que quer contar e concebe planos de ação necessários para estruturar o seu dizer. Além disso, seleciona e organiza termos necessários para complementar o que diz e, quando não o pode fazê-lo, embasa-se na fala do

outro. AM, inclusive, percebe claramente se obteve êxito ou o fracasso em suas falas, se disse

o que condizia com as cenas às quais havia assistido.

Além disso, no que se refere à gravidade de lesões como as de AM, na região frontal do cérebro, é interessante recuperar o que comenta Freire (2005, p. 127); essa autora comenta que pesquisas contemporâneas (e contrárias aos estudos de Luria) indicam que esse tipo de lesão (frontal) traz também problemas de memória33. Fato que não se comprova no caso de AM. Este que, no momento de sua anamnese, acompanhado de seu melhor amigo e sogro, contou muitas de suas mudanças de cidade, trazendo cenas e diálogos do passado, embora narrasse episódios sem uma data precisa no tempo. Para Luria, e isso se vê no caso de AM, lesões no lobo frontal não produzem interferências na memória,

[...] mas podem influir na “atividade mnemônica complexa como um todo” [Luria, op. cit., p. 183]: “(...) a capacidade de criar motivos estáveis de recordação e de manter o esforço ativo requerido pela recordação voluntária, por um lado, e a capacidade de passar de um grupo de traços para outro, por outro, resultando daí que o processo significantemente prejudicado é o de recordação e de reprodução de materiais” [Luria, 1981, p. 183] (FREIRE, 2005, p. 127).

Desse modo, de acordo com essas considerações, percebe-se que não é a recordação que está prejudicada no caso de AM, mas a reprodução dessa recordação; afinal, como se vê também nessa última transcrição, dado 11, ele necessita das perguntas de seu interlocutor para iniciar sua descrição do vídeo e também para manter esse trabalho de contar ao outro.

Quanto à região afetada, fronto-parietal esquerda, além do que já fora comentado da obra de Luria (1992), relacionam-se ao frontal funções que se comparam às de um “diretor de uma orquestra” ou ainda às de um “general” (GOLDBERG, 2015). O frontal permite ao homem planejar suas ações não apenas com base em suas experiências anteriores, como faz AM diante do vídeo, mas projetar em seus enunciados elementos futuros, como se verá em suas respostas a respeito de sua profissão, de sua clínica veterinária. Segundo Goldberg (2015, p. 40), uma característica do frontal, por sinal, é “olhar adiante” e, nesse sentido, é impressionante acompanhar como AM estrutura sua fala, organiza o seu dizer frente ao outro, a seu interlocutor, como se verifica nos turnos 14, 16 e 18 da última transcrição.

Nesse aspecto, em que se valoriza a importância da presença do outro, Brandão (2012, p. 8), em “Introdução à análise do discurso”, comenta que, ao se tomar a linguagem como uma interação social, na qual o outro tem papel importante na constituição dos significados,

33 É importante recuperar o fato de que AM sofreu uma fratura no osso esfenóide, responsável por sustentar o

cérebro atrás dos olhos, área próxima à região interna do cérebro, onde estão tálamo, hipotálamo, hipocampo; este último, conforme explica Goldberg (2015), relaciona-se às funções da memória, à memória verbal.

vê-se que cada enunciado faz parte de um campo maior, em que estão intrínsecas, diz essa autora, as relações entre o que é linguístico e o que é de caráter social. E é exatamente assim que se percebem os dados de AM, sobretudo o dado 14, a seguir, em que os significados de sua fala, motivada pelo outro, se mostram fortemente marcados por seus percursos em sociedade.

Para que seja explicitado essa relação de interlocução entre afásicos e não afásicos para o estudo da (re)estruturação da fala na afasia, demonstra-se, nos dados seguintes, como se sai AM em perguntas nas quais a organização dos enunciados passa por atividades metalinguísticas. Tais atividades, metalinguísticas, põem em suspensão “a linguagem para torná-la um objeto de observação, descrição e representação: é preciso tomar uma certa distância em relação à atividade lingüística para construir esse sistema nocional e sua metalinguagem representativa.” (COUDRY, 1986/88, p. 14).

Acredita-se que atividades baseadas nessa característica da linguagem sirvam apenas para entender certos problemas da fala de cada sujeito, visto que o trabalho da metalinguagem é um dos modos em que a afasia mais se manifesta34. Além disso, por meio dessas atividades, reafirma-se que não é por entrevistas ou pedidos de nomeação que se encontram caminhos para compreender o que da linguagem está alterado, mas, sim, pela linguagem em uso, pelo discurso. Como teoriza a ND, uma forma de trabalho discursiva permite à “[...] práxis clínica, orientada por essa base teórica, [...] (re)conhecer a condição de afásico. Que situações essa pessoa enfrenta em seu dia a dia, ao se ver impedido de exercer plenamente sua linguagem?” (FREIRE, 2005, 132).

No dado a seguir, tinha-se o objetivo único de analisar como AM se sairia em uma bateria de perguntas metalinguísticas, e, assim, foi pedido a ele que respondesse às seguintes perguntas: “Televisão. Para que ela serve? Por que assistimos TV?”. Esperava-se, com essa atividade, analisar como AM organizaria seu enunciado em momentos em que o investigador não contribuiria com sua fala. Além disso, não havia uma cena dialógica que jogasse a seu favor. AM foi simplesmente questionado pelo investigador; e o resultado, por se tratar de um sujeito bem articulado, foi bastante interessante.

34 Anotações de aula da Profa. Coudry.