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A luz está pegando o carteado

Sigla do locutor Transcrição Observações sobre o enunciado verbal

Obs. sobre o enunciado não-verbal

1 Inv. se prepara, hein!

2 AM manda! Surge a foto projetada na lousa e ele diz:

3 AM a luz está pegando o carteado.

Põe-se a falar, assim que a imagem é projetada na parede.

4 Inv. e forma o quê?

5 AM um homem.

6 Inv.

um homem? como assim, mas o que aparece ali?

Toco meu nariz com o dedo, esperando que ele explicasse as formas da imagem.

7 AM o nariz, o queixo, o boné, o chapéu.

Corrige “boné” por “chapéu”.

8 Inv. você se esqueceu de alguma coisa?

9 AM o cigarro.

AM, como se vê no turno 3 de sua fala, combina uma série de palavras em um enunciado bem arranjado gramaticalmente. Porém, embora fale que a luz incida sobre os livros, não explica, tal como fora pedido pelo investigador no início dessa atividade com as fotos, qual imagem se forma na parede. AM pouco diz sobre a constituição geral da foto. Seu enunciado descritivo surge de modo elíptico (JAKOBSON, 1956/2003, p. 45), pois dizer “A luz está pegando o carteado” deixa a significação do enunciado a ser completada pelo que se vê na imagem. Assim, seu interlocutor o estimula a ser mais específico sobre essa foto, dizendo, no turno 4, “E forma o quê?”.

Nota-se que tanto se preocupou em dizer o que acontecia na produção da fotografia que mencionou apenas o “carteado” (os livros) que aparecem no primeiro plano da imagem. No entanto, é a partir desse “carteado” que vem o fato mais curioso a respeito de seus problemas de fala, pois, segundo Jakobson (1956/2003), um afásico desse tipo (com dificuldades de seleção) não pode passar de uma palavra para seus sinônimos. Já AM, ao ser questionado pelo investigador se a expressão “carteado” estava correta, afirma que sim e ainda a justifica. Começa a contar uma história de sua adolescência, de quando trabalhou na biblioteca de Jundiaí, local em que o termo “carteado” era usado para designar um monte de livros. Conforme explica AM, os funcionários diziam: “Vai lá, rapaz, busca o carteado!” Fato que ressalta pontos instigantes a respeito da linguagem na afasia. AM se revela menos afásico, quando descreve episódios de sua profissão, de sua vida antes do acidente do que quando

interrogado sobre algo representado. Além disso, nota-se aí a ocorrência de uma atividade metalinguística, que se dá naturalmente, imbuída, embebida no discurso.

A interlocução, portanto, funciona como um elo entre o velho, o que da fala está preservado, e o novo, os novos desafios linguísticos que se apresentam ao sujeito. Com base em Freud, Coudry (2008, p. 13) comenta que

geralmente o velho da língua corresponde ao conhecido, automatizado, irrefletido; o novo, diferentemente, aparece, muitas vezes, como indeterminado, desconhecido e também refletido. [...]. O reconhecimento do que é velho e novo se dá no tempo possibilitado pela linguagem, falada e lembrada (memória). É justamente na

mobilidade da barra que separa o velho do novo que incide a afasia.

De acordo com Jakobson (1956/2003, p. 56), é manipulando dois tipos de conexão, o de similaridade e o de contiguidade, que um sujeito revela seus gostos e suas preferências verbais. No caso de AM, vê-se que seu modo de se expressar, como no turno 8 do dado 9, dizendo “A ponta do osso / ali // vê / o osso da ponta da coluna...”, é tomada por termos relacionados à sua profissão, à veterinária, sustento de sua família e motivo de prazer para ele. Como qualquer outro, AM usa da língua o que dela conhece melhor e isso é percebido e intensificado pela presença do outro, que contribui para que detalhes importantes de sua fala se façam perceptíveis.

A esse respeito, destaca-se um episódio interessante de AM, em que, conversando com um investigador no CCA sobre o tempo que morou na Bahia, conta que o que mais gostava de lá eram as praias, o emprego de guia turístico, o colégio e o “shortinho” que usava. Nesse dia, meados de julho de 2014, o investigador o interrompe e lhe pergunta: “Shortinho?”, e AM faz gestos que desenhavam em seu corpo uma calça, camisa e gravata. Logo, o investigador lhe diz: “Ah, o uniforme?”, e AM confirma. O que se faz interessante nessa história é que o investigador diz a AM que aquele seu colégio deveria ser militar, por manter um uniforme com essas características, e ele diz que era exatamente por isso que gostava do colégio, afinal, seu pai atuava ativamente como militar do exército brasileiro.

Entende-se como a presença do outro desperta, principalmente na afasia, não apenas o

tesouro da língua que detém cada sujeito, mas revela e torna viva a linguagem e a vida. Além

disso, dizer “shortinho” no lugar de “uniforme” demonstra um caso de parafasia, o que para Freud (1891, p. 38) é entendido como “un transtorno del lenguaje en el cual la palabra

apropiada es reemplazada por otra menos apropiada, la cual, no obstante, conserva aún cierta relación con la palabra correcta.”

Conforme o que tem sido apresentado até aqui a seu respeito, compreende-se que AM, diferente do que foi citado em seu laudo médico sobre afasia amnésica, é capaz de recorrer ao léxico da língua, apesar de ter problemas na seleção, o que obviamente compromete suas tentativas de relatar o que presencia. No entanto, em outras situações, nas quais a foto não era o único recurso discursivo, participando do CCA, dividindo suas experiências com outros interlocutores, sua fala se mostrou mais articulada e consistente. Dessa forma, destaca-se uma sessão do CCA, na qual pesquisadores e afásicos assistiam a um vídeo de pouco mais de dois minutos de duração. Tratava-se de uma animação, chamada Snow business, do canal Simon's

cat, veiculado pelo Youtube, na qual se apresenta um gato cheio de curiosidade que sempre

apronta algo com seu dono ou se envolve em alguma enrascada.

Nesse episódio do Snow business, o gato brinca na neve, quando é surpreendido por um passarinho, que, do alto de um muro, atira-lhe bolas de neve. Já o gato, por sua vez, tenta encontrar meios de apanhar o atirador.

Figura 12: “Simon’s cat – Snow business”

A proposta dessa atividade consistia em perceber como os afásicos presentes contariam o que tinham visto do vídeo. Como suporte para essa atividade, um investigador cuidava da projeção de cada cena, promovendo pausas no vídeo para que visualizassem as imagens com calma. Assim, podiam refletir sobre o que queriam dizer e, então, contar ao outro o que achavam que iria acontecer nos trechos seguintes, os quais AM, frente às

perguntas de seus interlocutores, e animado por mostrar sua boa memória aos colegas, fazia com perfeição.