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A CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O

3. A ORDEM AMBIENTAL INTERNACIONAL SOBRE O CLIMA

3.1 A CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O

As negociações multilaterais sobre mudanças climáticas inserem-se em uma ordem ambiental internacional ampla, cuja construção iniciou-se em fins do século XIX e ganhou impulso, sobretudo, a partir da década de 1970. Diante da conformação de uma sociedade de risco que, segundo Beck (1992), caracteriza-se pela modernização reflexiva, ou seja, por um processo de modernização que, ao mesmo tempo em que visa à produção social da riqueza conduz a problemas e conflitos relacionados à produção, definição e divisão dos riscos produzidos de maneira científico-técnica, faz-se necessária a regulação humana para além das fronteiras nacionais, haja vista que os problemas socioambientais se internacionalizam.

Diferentes temas socioambientais foram objeto de reuniões multilaterais e deram origem a convenções internacionais a partir do século XX. Ribeiro (2001b) realizou estudo detalhado de diferentes acordos que envolviam questões sobre a fauna e a flora, o mar, fluxos de resíduos perigosos e substâncias tóxicas, a qualidade do ar, entre outras.

Destaca-se primeiramente a realização, em 1972, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, conhecida também como Conferência de Estocolmo. Essa reunião foi chamada em função do aumento das preocupações relativas à poluição do ar e à chuva ácida, que configuravam situações que poderiam gerar conflitos internacionais (RIBEIRO, 2001b). Este evento entrou para a história como a primeira grande conferência da Organização das Nações Unidas voltada para o meio ambiente.

É importante ressaltar que, segundo Lago (2006), as preocupações ambientais, à época, ecoavam principalmente em alguns setores da sociedade civil dos países ricos do Ocidente, enquanto fora dos dois centros de poder do mundo bipolar – Estados Unidos e União Soviética – os questionamentos centravam-se na busca de soluções para sérios problemas econômicos e sociais. Além disso, grande número de países em desenvolvimento, como o Brasil, era governado por regimes autoritários que buscavam consolidar-se e destacar- se no poder por meio de políticas econômicas com forte impacto no meio ambiente e

sociedade. No caso brasileiro, destaca-se o período chamado de “milagre econômico” (1969- 1973), quando o país vivenciou um grande crescimento em sua economia, contudo associado ao endividamento externo, aumento da desigualdade social e quase inexistente preocupação ambiental real.

A Conferência de Estocolmo foi influenciada, entre outras obras, por um relatório produzido pelo Clube de Roma38 intitulado “Os Limites do Crescimento” que, por meio da apresentação de cenários traçados por modelos computacionais, apresentava forte conteúdo neomalthusiano sobre as razões da degradação ambiental verificada naquele contexto:

1. Estamos convencidos de que a realização das restrições quantitativas do ambiente mundial e das trágicas consequências de superação é essencial para o início de novas formas de pensar que levarão a uma revisão fundamental do comportamento humano e, por implicação, da sociedade atual em geral.

2. Convencemo-nos ainda que a pressão demográfica no mundo já atingiu um nível tão elevado, e é, aliás, tão desigualmente distribuída, que esta sozinha deve obrigar a humanidade a procurar um estado de equilíbrio em nosso planeta. [...]

9. Nós inequivocamente apoiamos a afirmação de que um freio imposto sobre as espirais de crescimento econômico e demográfico não deve conduzir a um congelamento do status quo do desenvolvimento econômico das nações do mundo. 10. Afirmamos finalmente que qualquer tentativa deliberada para chegar a um estado de

equilíbrio racional e duradouro por medidas planejadas, e não por acaso ou catástrofe, deve ser fundada sobre mudanças fundamentais nos valores e objetivos nos níveis individual, nacional e mundial (MEADOWS et al., 1972, p.190-196, tradução nossa). 39

Corrobora-se com Ribeiro (2001b) que, para alcançar tal “estado de equilíbrio”, este relatório, ao enfocar a relação entre crescimento populacional e as taxas de mortalidade, deixou de avaliar as verdadeiras motivações que levavam à produção de riqueza e à sua concentração, como a transferência de recursos para o pagamento de dívidas externas, lucros e

royalties. As soluções propostas visavam mudanças no modelo de desenvolvimento dos

países ricos, mas ressaltavam a importância de medidas abruptas nos países em

38Fundado em 1968, o Clube de Roma constitui uma associação informal de personalidades independentes da política, economia e ciência, que discutem preocupações comuns sobre o futuro da humanidade e do planeta. Visa identificar problemas cruciais; avaliar cenários alternativos; desenvolver e propor soluções aos desafios identificados; e comunicar sua produção aos tomadores de decisões. Mais informações em: <http://www.clubofrome.org/>.

39Do original: 1.We are convinced that realization of the quantitative restraints of the world environment and of the tragic consequences of an overshoot is essential to the initiation of new forms of thinking that will lead to a fundamental revision of human behavior and, by implication, of the entire fabric of present-day society. 2. We are further convinced that demographic pressure in the world has already attained such a high level, and is moreover so unequally distributed, that this alone must compel mankind to seek a state of equilibrium on our planet. […] 9. We unequivocally support the contention that a brake imposed on world demographic and economic growth spirals must not lead to a freezing of the status quo of economic development of the world's nations. 10. We affirm finally that any deliberate attempt to reach a rational and enduring state of equilibrium by planned measures, rather than by chance or catastrophe, must ultimately be founded on a basic change of values and goals at individual, national, and world levels (MEADOWS et al., 1972, p.190-196).

desenvolvimento, como políticas demográficas e de contenção do crescimento econômico. Segundo Lago (2006), as temáticas propostas para este evento, ao ganharem legitimidade internacional, passaram a ser abordadas cada vez menos do ponto de vista científico e mais no contexto político e econômico. Durante o encontro, caracterizou-se um embate entre os “zeristas” e os “desenvolvimentistas”, ou seja, entre os defensores de medidas drásticas para alcançar o suposto estado de equilíbrio, e os que se opunham a tais ações – os países da periferia do sistema. Os países periféricos recusaram-se a aceitar qualquer acordo com base nas conclusões apresentadas pelo Clube de Roma. Marcovitch (2006, p.39) colocou que, durante o evento, o general Costa Cavalcanti, representante do Brasil na Conferência, chegou a afirmar que um país subdesenvolvido “... não podia dar-se ao luxo de investir dinheiro na limpeza do meio ambiente”.

De fato, no relatório do Brasil à Conferência de Estocolmo, José Costa Cavalcanti – então Ministro do Interior e chefe da delegação brasileira – explicitou os interesses nacionais para tal evento (CAVALCANTI, 1972). Segundo ele, era preciso manter uma atitude de atenção e cautela para evitar que “fatores externos” interferissem negativamente no processo de desenvolvimento do país. Este relatório deixava claro que o Brasil não tinha interesse em discutir a temática ambiental como questão específica, sobretudo no nível internacional:

[...] pensava-se em arguir com a ponderação de ordem formal e metodológica de que, como somatório de um grande número de disciplinas e atividades, a temática do “meio ambiente” não se presta a uma regulamentação jurídica, que pode desenvolver-se de qualquer forma com maior vantagem em bases setoriais. A falta de experiência seria outro fator contrário à codificação internacional no domínio do meio ambiente. Tais argumentos, já utilizados pela Delegação do Brasil no Comitê Preparatório da Conferência e na própria Assembleia Geral, deveriam ser, pois, se necessário, reiterados em Estocolmo, com o objetivo de afastar a possibilidade do endosso formal a projetos de Convenção (CAVALCANTI, 1972, p.8, grifo do autor).

A atuação da delegação brasileira na Conferência de Estocolmo foi norteada pelas seguintes premissas: a) evitar qualquer medida que limitasse, com formulações jurídicas ou outras, o direito soberano do país de explorar seus recursos segundo seus interesses e prioridades; b) impedir o estabelecimento de padrões universais de produção que obstruíssem seu desenvolvimento econômico com exigências estabelecidas a partir de critérios equalizadores de custos; e c) evitar incentivos à adoção de padrões de consumo que se convertessem em obstáculos às exportações dos países em desenvolvimento, ou seja, uma alternativa ecológica às barreiras alfandegárias existentes (CAVALCANTI, 1972).

Por outro lado, o Ministro destacou o interesse do governo brasileiro em receber compensações financeiras e econômicas em relação a medidas que tivessem efeitos negativos

na comercialização das exportações brasileiras ou prejudicassem seu desenvolvimento, bem como na transferência de tecnologias desvencilhada do sistema de patentes e de royalties.

Verificou-se, portanto, que neste período o Brasil assumia uma posição essencialmente conservadora, marcada pelo realismo político ao defender sua soberania westfaliana conforme definida por Krasner (1999), no que se referia à gestão de seus recursos e escolha de modelo de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que passou a identificar possíveis ganhos advindos da cooperação multilateral ambiental, como a transferência de recursos financeiros e tecnológicos.

Apesar dos impasses, este evento produziu resultados importantes para a criação da ordem ambiental internacional. Mais que a aprovação de uma declaração com princípios e um plano de ação para o meio ambiente humano com mais de uma centena de recomendações acordadas pelos países, os principais resultados da Conferência de Estocolmo foram a promoção do tema do meio ambiente no plano internacional e o aumento da participação social nas questões ambientais, bem como a criação do PNUMA e institucionalização do tema em diferentes países.

No Brasil, criou-se a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA) em 1973, vinculada ao Ministério do Interior, em parte porque os financiadores internacionais passariam a exigir um órgão nacional de avaliação ambiental. O governo brasileiro deu um passo significativo na abordagem integrada da questão ambiental, mas é importante destacar que, à época, não pretendia tornar tal instituição importante dentro da estrutura governamental. Mello (2006) destacou a falta de espaço político-administrativo e a insuficiência de recursos que marcaram a trajetória da SEMA, extinta em 1989 com a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

Guimarães (1992) também retratou a abordagem da questão ambiental durante a ditadura brasileira. Segundo ele, devido à consolidação de uma aliança entre a tecnoburocracia estatal e privada e os interesses hegemônicos industriais naquele período, a temática ambiental foi neutralizada e subordinada à economia. Na realidade, qualquer mobilização social que objetivasse uma política efetiva sobre a preservação do meio ambiente e a conservação dos recursos naturais era vista com suspeita. Este autor denominou a estratégia adotada pelo governo militar de “conservadorismo dinâmico”, por aceitar o discurso da preservação ambiental como o fez em Estocolmo, contudo lançando tal discurso em uma caixa burocrática na estrutura governamental com o cuidado de “... não dotar esse novo órgão com os recursos humanos e materiais adequados. Apenas o suficiente para dar a

impressão de que se está fazendo algo importante e para que sirvam como bodes expiatórios quando não se tomem as medidas realmente necessárias” (GUIMARÃES, 1992, p.66).

Mesmo com muitas dificuldades, a SEMA contribuiu para a popularização da questão ambiental e de sua institucionalização em diferentes níveis governamentais e certamente resultou dos debates travados na Conferência de Estocolmo. Concorda-se com Maurice Strong, Secretário-Geral desta Conferência, ao ressaltar, passados trinta anos do encontro na Suécia, que aquele encontro de cúpula foi fundamental para o estabelecimento do quadro das negociações multilaterais sobre o meio ambiente e, além disso, trouxe os países em desenvolvimento para uma participação plena e influente no processo negociador (STRONG, 2003).

A partir da reunião de Estocolmo (1972), o movimento ambientalista, em suas diferentes vertentes, cresceu significativamente. Isto se deveu, em grande parte, pela degradação intensificada pelo deslocamento dos riscos socioambientais para países mais pobres. Nesse processo, inúmeras indústrias obsoletas, poluidoras e energo-intensivas migraram para países em desenvolvimento – atraídas por legislações ambientais pouco rígidas ou inexistentes, incentivos fiscais, mão-de-obra batata, entre outros fatores. Contudo, apesar da transferência de ônus socioambiental pelos países desenvolvidos, começaram a surgir problemas que ultrapassavam as fronteiras na escala regional e assumiam um caráter global, como o buraco na camada de ozônio, a poluição marítima e as mudanças climáticas.