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O Liberalismo Político: interdependência e governança

2. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

2.2 REGIME E ORDEM INTERNACIONAL

2.2.2 Teorias das Relações Internacionais e mudanças climáticas

2.2.2.2 O Liberalismo Político: interdependência e governança

Diferente do realismo, a tradição liberal enxerga a sociedade anárquica como menos ameaçadora. Para os liberais, existe uma sociedade global em funcionamento paralelo aos Estados e que estabelece parte do contexto para eles. Segundo Nye (2002), entendem que a visão realista é insuficiente para a análise do contexto atual, marcado pela globalização – comércio mundial, intercâmbio de pessoas, existência de instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), entre outros elementos que caracterizam o aumento da interdependência.

Para Nye (2002), a cooperação em assuntos internacionais se verifica na realidade, mesmo que a estrutura anárquica do sistema internacional tenda a desencorajá-la e que a ética, neste nível de análise, desempenhe um papel menor que na política interna. Isto se deve, segundo ele, ao débil consenso acerca de valores, ao fato de Estados não serem indivíduos e assim, estarem sujeitos a um julgamento diferente, e à complexidade da causalidade (maior em comparação a assuntos internos).

Soares (2003) também analisa a cooperação dos Estados sob a ótica da interdependência. Segundo o autor, a mesma é entendida como:

[...] uma situação existencial em que as unidades políticas se encontram de tal maneira implicadas umas nas outras que a própria existência delas pressupõe a existência de outras, numa situação de um relacionamento de extrema relevância recíproca para todos os componentes do conjunto (SOARES, 2003, p.600).

Para ele, a interdependência sempre constituiu um postulado do Direito Internacional, mas a consciência da mesma, bem como suas implicações no desenvolvimento das relações internacionais, só se tornou possível recentemente. Aos conteúdos tradicionais do Direito, acrescentou-se um significativo conjunto de normas de conteúdo positivo, impositivas de dever de cooperação entre os agentes e com pautas cada vez mais extensas de comportamento aos Estados (SOARES, 2003, p.603).

Para Keohane (1984), um dos grandes nomes do neoliberalismo político, a cooperação pode, sob algumas condições, se desenvolver na base da complementaridade de interesses. Ou seja, ele toma a existência de interesses mútuos como algo dado e examina as condições sob as quais levarão à cooperação. Contudo, afirma que, ainda que as metas procuradas por meio da cooperação possam ser julgadas desejáveis a princípio, o processo pode levar a efeitos perversos, mesmo para países não totalmente representados no processo de decisão. Destaca que, em alguns casos, a cooperação pode ser pior que a inação. Contudo, se for efetiva, certamente será de grande valia:

Sob condições de interdependência, alguma cooperação é uma condição necessária para alcançar os níveis ideais de bem-estar; mas não é suficiente, e mais cooperação pode não ser necessariamente melhor do que menos. Apesar de que seria ingênuo acreditar que a cooperação crescente entre qualquer grupo de Estados, para quaisquer fins, será necessariamente promover valores humanos na política mundial, parece claro que a coordenação mais eficaz da política entre governos muitas vezes ajudaria (KEOHANE, 1984, p.11, tradução nossa37).

É importante frisar que, de acordo com Keohane (1984), ainda que a coordenação das políticas internacionais se mostre extremamente benéfica em um mundo cada vez mais interdependente, a cooperação é bastante difícil de ser organizada. Ele também ressalta a importância da distinção entre os conceitos de harmonia e de cooperação. A harmonia implica uma situação na qual os agentes automaticamente facilitam a obtenção das metas dos demais,

37 Do original: Under conditions of interdependence, some cooperation is a necessary condition for achieving

optimal levels of welfare; but is not sufficient, and more cooperation may not necessarily be better than less. Although it would be naïve to believe that increased cooperation, among any group of States for whatever purposes, will be necessarily foster humane values in world politics, it seems clear that more effective coordination of policy among governments would often help (KEOHANE, 1984, p.11).

o que pressupõe que não existam externalidades negativas, de modo que a cooperação é desnecessária. Por sua vez, a cooperação requer que as ações dos indivíduos isolados ou organizações (que não estejam em harmonia prévia) sejam trazidas em conformidade com a dos demais por meio do processo de negociação (KEOHANE, 1984).

Soares (2003, p.601) destaca, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente, o fenômeno da mudança do clima como um dos “... ambientes que são regulados na sua inteireza, mesmo que dividido em partes situadas cada qual num território de um determinado Estado, vizinho ou não de outros, onde as outras partes se situam”.

De maneira geral, concorda-se com os diferentes aspectos da teoria da interdependência apresentados acima, ao valorizar a interdependência entre os Estados e a necessidade da promoção da cooperação com base na complementaridade de interesses. Verifica-se que esta teoria se relaciona, de maneira bastante interessante, ao conceito de governança, abordado por Rosenau (2000). Este autor destaca o florescimento de vínculos globais de interdependência – por exemplo, a poluição ambiental – como uma das dinâmicas centralizadoras e descentralizadoras que têm contribuído para minar as constituições nacionais e os tratados, haja vista que acabam por deslocar os centros de autoridade. Segundo ele, mesmo que os governos ainda detenham sua soberania, certas funções da governança estão sendo executadas mediante atividades que não têm origem nos governos, como visto anteriormente.

Rosenau (2000) distingue governança e governo. O conceito de governo pressupõe uma autoridade formal e o poder de polícia para garantir a implementação de políticas a serem instituídas. Por sua vez, o conceito de governança indica atividades apoiadas em objetivos comuns, derivadas ou não de responsabilidades legais e formais, que não dependem necessariamente do poder de polícia para serem aceitas. Ou seja, é mais amplo que o primeiro:

[...] abrange instituições internacionais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas (ROSENAU, 2000, p.15-16).

Rosenau (2000) entende que os regimes internacionais podem ser descritos como formas de governança sem governo, haja vista que funcionam sem autoridade central. Seus agentes governamentais e não-governamentais concordam que a cooperação em nome de interesses compartilhados justifica a aceitação de princípios, normas, regras e procedimentos em conjunto.

Moreira (2015) destaca que, se a preocupação dos neorrealistas envolve os ganhos relativos, os neoliberais priorizam ganhos absolutos, já que cada governo irá perseguir seus próprios interesses, mas procura barganhar elementos que possam beneficiar todas as partes do acordo – ainda que não necessariamente de maneira igualitária – a partir da criação das instituições que conformam a ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas, que podem contribuir para a diminuição das incertezas sobre o futuro e criar maior estabilidade. Segundo Nye (2002), as instituições proporcionam sentimento de continuidade, oportunidade de reciprocidade, garantia do fluxo de informações e formas de resolução de conflitos. O autor destaca:

Por que razão as instituições internacionais são importantes? Porque estabelecem um enquadramento no qual as expectativas são moldadas. Elas levam as pessoas a acreditar que não vai existir conflito. Alongam a sombra do futuro e reduzem a intensidade do dilema de segurança. As instituições reduzem as consequências da anarquia, que os realistas tomam como certas (NYE, 2002, p.55).

Ao analisar as tradições realista e liberal da Teoria das Relações Internacionais, verifica-se que ambas oferecem instrumental teórico à análise da ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas. Ao mesmo tempo em que se destaca a crescente interdependência entre os Estados e a necessidade do estabelecimento de uma governança em relação a este tema complexo – que inevitavelmente remete à cooperação e se materializa na criação de instituições resultantes da complementaridade de interesses, conforme colocado pelo liberalismo político, também se verifica, no desenvolvimento do processo negociador, que os Estados nacionais buscam salvaguardar seus interesses perante os demais em favor da preservação da segurança, do território e da soberania nacional e, para tal, articulam-se com o objetivo de ampliar seu poder de influência para que suas demandas específicas sejam contempladas nos acordos finais.

Diante do que foi exposto, constata-se, em virtude da internacionalização de diferentes problemas ambientais, um processo de deslocamento das decisões para além do nível nacional, como pode ser verificado na incorporação crescente da temática das mudanças climáticas na agenda ambiental multilateral.

Neste trabalho, defende-se o multilateralismo no trato da questão, não somente como um princípio organizacional, mas enquanto ideologia, conforme definido por Caporaso (1992). Entende-se que as mudanças climáticas, conhecida sua complexidade, somente podem ser pensadas no nível internacional multilateral.

Também se corrobora com as afirmações de Cox (1992) sobre a compatibilidade (e identidade) do que denomina multilateralismo político e multilateralismo econômico, haja vista que na ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas, as decisões e ações visam garantir a segurança e a manutenção do sistema capitalista, ainda que sobre bases mais “sustentáveis”. Os mecanismos de mercado criados em seu âmbito constituem grandes exemplos desta compatibilidade (no âmbito dos discursos), como pode ser visto no terceiro capítulo. O reconhecimento de outras dimensões além da econômica e da política, conforme destacado por este autor, se mostra fundamental à abordagem das mudanças climáticas, dadas suas possíveis implicações. Por outro lado, também se concorda com ele ao afirmar que o multilateralismo refere-se tanto à institucionalização da ordem estabelecida, como também à interação para a transformação da ordem existente.

Verifica-se uma vasta literatura que aborda as mudanças climáticas a partir da perspectiva normativa, expressa principalmente pelo conceito de regime internacional. Porém, neste trabalho, prefere-se a utilização do conceito ordem ambiental conforme definido por Rosenau (2000) e, precisamente, o de ordem ambiental internacional expresso por Ribeiro (2001b) para a análise das mudanças climáticas, pois se entende que tal conceito engloba os aspectos normativos que envolvem a questão (princípios, normas, regras e procedimento), mas não se restringe a eles, ou seja, também abrange elementos como os posicionamentos e estratégias realizadas por seus agentes, as assimetrias de poder e a capacidade de influência das delegações. Em relação a este último fator, concorda-se com Agnew e Corbridge (1995) sobre a importância das características geográficas na definição de ordem internacional, que remete ao conceito de território.

O conceito de território é de fundamental importância na análise das negociações sobre mudanças climáticas, já que: a) as responsabilidades dos países em relação às emissões de GEEs são diferenciadas em virtude de fatores que envolvem elementos territoriais, como a disponibilidade de determinados recursos energéticos, de grandes áreas florestadas e certas atividades econômicas; b) desempenha papel proeminente na configuração das assimetrias de poder entre os Estados; e c) relaciona-se às demandas específicas de cada país nas negociações, já que os posicionamentos nacionais refletem problemáticas domésticas que envolvem fatores territoriais.

Corrobora-se com Ratzel ([1898-1899], 1983) ao afirmar que a política parte da geografia e, com Gottman (1975) ao explicitar a relação entre espaço e política. Ao mesmo tempo, constata-se a importância do poder como elemento central na definição do território, ainda que as demais dimensões, além da política, sejam absolutamente relevantes, conforme

colocado por Souza (2009). E, ainda que o Estado seja o agente analisado neste trabalho (neste caso, o brasileiro), reafirma-se o caráter relacional do território e a multidimensionalidade do poder, de acordo com o apresentado por Raffestin (1993), Becker (1988, 2005, 2009) e Haesbaert (2004). Em concordância com últimos dois autores, ressalta- se a importância da compreensão do território enquanto redes para apreender sua fluidez, interconexão e temporalidade, com vistas a evitar uma análise pautada puramente no enraizamento e na delimitação.

Além do território, o conceito de soberania mostra-se de grande pertinência à discussão realizada, já que os Estados, nas negociações multilaterais sobre o clima, buscam a todo o momento preservarem suas soberanias westfalianas, conforme definido por Krasner (1999), ao desconfiarem de possíveis interferências de outros Estados sobre seus territórios, população e recursos – tríada abordada por Raffestin (1993). Ao mesmo tempo, reafirma-se a importância da soberania da interdependência, conforme ressaltado por Ribeiro (2012), ao mesmo tempo em que se reconhece a fragilidade da cooperação multilateral diante da anarquia do sistema internacional de Estados, como apontado por Keohane (1984).

Por fim, verifica-se que tanto a teoria realista e a liberal das Relações Internacionais dispõem de elementos interessantes à análise desenvolvida. Ideias realistas, como o interesse em termos de poder, o equilíbrio de poder e sobre o caráter dos documentos produzidos, desenvolvidas por Morgenthau ([1948], 2003), são essenciais à compreensão da ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas, bem como as análises realistas defensivas realizadas por Waltz (2004) sobre a busca constante dos Estados para se defender dos demais (muitas vezes a partir de instituições) – dada a anarquia do sistema internacional e a insuficiência de políticas para restringir a ação dos países. Por outro lado, reafirmam-se ideias liberais, como a necessidade da promoção da cooperação com base na complementaridade de interesses (KEOHANE, 1984) e da busca pela governança conforme exposta por Rosenau (2000), ainda que sua efetividade dependa da forma de condução do processo.

Deste modo, corrobora-se com Nye (2002) ao afirmar que o sistema internacional atual caracteriza-se por uma mistura de continuidades e de mudanças, o que torna impossível a obtenção de uma explicação única, fácil e sintética. Segundo o autor, os liberais tendem a ver os realistas como cínicos fascinados pelo passado e cegos para as transformações do mundo. Os realistas, por sua vez, definem os liberais como sonhadores utópicos. Neste trabalho, entende-se que tanto a perspectiva realista/pessimista quanto o olhar liberal/otimista devem ser considerados na análise do momento atual, com vistas à identificação de possibilidades e limitações nas negociações multilaterais sobre mudanças climáticas.