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1. MUDANÇAS CLIMÁTICAS E SEGURANÇA SOCIOAMBIENTAL

1.2 SEGURANÇA SOCIOAMBIENTAL INTERNACIONAL

1.2.1 O Meio Ambiente como tema de segurança

1.2.1.1 Mudanças Climáticas e Segurança

Diante dos riscos e da vulnerabilidade socioambiental associados às mudanças climáticas, o tema, desde a década de 1970, tem sido cada vez mais analisado como uma questão de segurança, sobretudo em relação ao potencial de ocorrência de conflitos violentos.

É importante ressaltar que a maior parte dos autores é bastante cautelosa ao estabelecer relações entre mudanças climáticas e conflitos. Busby (2007) ressalta que, ainda que seja crescente o interesse frente ao tema, quase todas as soluções propostas enfatizam as políticas climáticas sem respostas específicas às ameaças de segurança.

A análise das mudanças climáticas sob a perspectiva da segurança é bastante delicada, porque facilmente conclusões precipitadas e superficiais podem dar origem a argumentações neomalthusianas e simplistas, de modo a desconsiderar inúmeros fatores que tornam o assunto de grande complexidade. Ainda que os impactos associados às alterações no sistema climático sejam motivo de grande preocupação, é preciso ter critérios e seriedade na avaliação de sua relação com a segurança, para evitar sensacionalismos.

Nordas e Gleditsch (2007) demonstram certa preocupação com o estabelecimento de cenários de segurança frente à relação mudança climática – conflito, haja vista que, da mesma forma que existe uma boa intenção no sentido de despertar a atenção mundial para com a questão, também podem levar a uma ênfase na segurança nacional, ou seja, ao predomínio da visão tradicional/realista de segurança em detrimento da valorização da segurança humana – especialmente no tocante aos grupos sociais mais vulneráveis.

É importante destacar que a perspectiva realista oferece instrumental teórico interessante para a análise da relação entre mudanças climáticas e segurança. O conceito de segurança, segundo tal escola de pensamento, é tradicionalmente abordado na perspectiva do Estado-nação. Como consequência disto, a análise de possíveis conflitos constitui elemento central. Ao longo deste trabalho, é possível verificar diversos impasses entre países, relativos à defesa de suas soberanias e demais interesses nacionais, em detrimento de uma ideia de segurança abrangente, voltada à defesa da vida. Contudo, apesar deste agente ser absolutamente importante, entende-se que a relação entre mudança climática e conflito deve ser abordada sob o ponto de vista multidimensional e multiescalar. É preciso avaliar, além dos efeitos diretos, as diversas implicações indiretas das transformações do sistema climático nos níveis local, regional, nacional e internacional, sob a ótica da segurança humana.

Para Barnett (2001), os processos físicos decorrentes dos impactos das mudanças climáticas podem minar a segurança nacional no nível interno, que dá legitimidade ao Estado.

Por exemplo, as consequências de eventos climáticos extremos podem, indiretamente, abalar a economia em diferentes níveis; afetar a saúde da população pela escassez de água potável, de alimentos e exposição a novos vetores de doenças; bem como agravar a desigualdade social. Entende-se que a ideia realista de segurança, voltada à defesa da soberania westfaliana, pode comprometer a soberania da interdependência e a soberania doméstica, conceitos definidos por Krasner (1999), que são abordados no próximo capítulo.

Nordas e Gleditsch (2007) condicionam a vulnerabilidade às mudanças climáticas a diferentes fatores, entre os quais o acesso a recursos, informação e tecnologia, bem como à estabilidade e efetividade das instituições. Ressaltam a necessidade de união dos modelos de mudança climática e dos modelos de conflito para o desenvolvimento de análises mais profundas voltadas à questão da segurança. Por outro lado, também chamam à atenção aos diferentes tipos de violência que podem ser esperados da mudança do clima (conflitos armados no nível nacional – geral ou em zonas de conflito; violências unilaterais como genocídio e politicídio; violência de grupos não estatais; violência não organizada; conflitos entre Estados; dentre outros).

De modo geral, ainda que a maior parte dos pesquisadores concorde que há relações válidas entre mudanças climáticas e conflitos violentos, os fatores relacionados ao meio ambiente não são os únicos determinantes. Observa-se na literatura existente que a relação, pelo menos até o presente momento, é menos direta e está mais vinculada à acentuação de vulnerabilidades socioambientais já existentes, como a pobreza e outras desigualdades sociais, disponibilidade de armas, tensão étnica, endividamento externo, resiliência institucional, legitimidade e capacidade de intervenção do Estado, conforme abordado por Claro (2012).

Um ponto bastante debatido referente à questão da segurança frente às mudanças climáticas refere-se à migração (RALEIGH; JORDAN; SALEHYAN, 2008). Verificam-se tensões decorrentes de migrações relacionadas a fatores climáticos que também se associam a outros de ordem sociocultural e econômica, por exemplo, a grupos étnicos rivais, à competição e à desconfiança (REUVENY, 2007). Em relação às migrações internacionais, Barnett (2001) afirma que o mais significativo não é o movimento de pessoas, mas sim a resposta política a esse movimento. Também coloca que há uma questão moral na abordagem do tema, haja vista que países responsáveis pela emissão de grandes quantidades de gases de efeito estufa, sobretudo os desenvolvidos, serão duramente criticados caso estabeleçam

políticas de migração mais rígidas para refugiados ambientais. De maneira geral, concorda-se com Barnett (2001, p.12, tradução nossa)24 na seguinte afirmação:

Segurança pode também servir como um conceito integrador que liga os níveis local (segurança humana), nacional (segurança nacional) e global (segurança internacional) das mudanças ambientais e resposta. Também integra a mitigação e adaptação, ambos essenciais para a segurança de riscos climáticos. Finalmente, a compreensão dos processos que tornam grupos inseguros - e as mudanças climáticas é um deles - traz à tona as questões de equidade e do funcionamento da economia política internacional. Além disso, embora não deva ser exagerada, a segurança elimina a possibilidade de revolução social violenta. Ele também traz despesas militares e seus impactos ambientais em consideração. A capacidade do discurso convencional da segurança nacional e da política para a mudança climática adequada é uma questão de como os riscos de segurança climática são compreendidos, e quem fala sobre eles.

Para verificar a relevância crescente desta temática, destaca-se que países como Estados Unidos e Alemanha desenvolvem uma série de estudos com vistas a avaliar tal relação e pensar em medidas adaptativas. Busby (2007), por exemplo, desenvolveu profunda análise sobre as ameaças ao governo dos Estados Unidos da América associadas às mudanças climáticas. Mostra preocupação, além da defesa do território frente ao “ataque” de outros Estados, com situações não intencionais que podem ameaçar a segurança nacional – por exemplo, a sobrecarga da capacidade de respostas de autoridades locais e mesmo do setor militar frente a desastres ambientais graves (inundação de áreas costeiras, por exemplo). Sua análise aborda aspectos bastante específicos, como danos a bases militares dentro e fora do país, o que aumentaria a vulnerabilidade nacional. O autor dá grande importância à possibilidade de ocorrência de conflitos interestatais, como a disputa pela soberania das águas do Ártico após o degelo, além de crises em países vizinhos que, devido a desastres humanitários, ampliariam os fluxos de refugiados e a falência do Estado estadunidense.

O autor ainda realiza uma série de proposições, como: 1) a priorização de políticas sem arrependimentos, ou seja, que façam sentido mesmo se as consequências das mudanças climáticas se mostrarem menos graves do que indicam, 2) a preferência por políticas que resolvam várias questões simultaneamente, e 3) o reconhecimento de que certo nível de mudanças climáticas será inevitável, de modo que é preciso apoiar medidas de redução de

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Do original: Security can also serve as an integrative concept which links local (human security), national (national security) and global (international security) levels of environmental change and response. It also integrates mitigation and adaptation as both are essential to security from climate risks. Finally, understanding processes that render groups insecure – and climate change is but one of these – brings to the fore issues of equity and the operation of the international political-economy. Further, although it should not be overstated, security addresses the possibility of violent social upheaval. It also brings military expenditure and its environmental impacts into consideration. The ability of conventional national security discourse and policy to appropriate climate change is a matter of how climate security risks are understood, and who talks about them (BARNETT, 2001, p.12).

riscos e de adaptação em seu território e no exterior (sistemas de alerta, códigos para construções, planos emergenciais de resposta, defesa da zona costeira, esquemas de evacuação e realocação, novas tecnologias de baixo carbono). Por fim, para que tudo isto aconteça, defende uma reforma institucional que dê mais espaço às questões climáticas e de segurança.

Em relação ao Brasil, a Política Nacional sobre Mudança do Clima (BRASIL, 2009) visa à promoção de ações de mitigação de gases de efeito estufa de maneira compatível com o desenvolvimento econômico-social, bem como à implementação de medidas de adaptação nas três esferas da Federação. Não há uma menção direta ao conceito de segurança, mas é possível entender que este é colocado sob a perspectiva da segurança humana, pela preocupação em buscar um planejamento que objetive reduzir emissões em diferentes setores econômicos e, ao mesmo tempo, diminuir a vulnerabilidade socioambiental perante os impactos potenciais das mudanças climáticas.

Por outro lado, verifica-se na prática que o foco está nas ações de mitigação, sobretudo em relação à redução do desmatamento na Amazônia, que responde por grande parte das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. Tal foco pode ser explicado, entre outros fatores, pela dificuldade de estabelecimento de cenários precisos dos impactos das mudanças climáticas nas escalas regional e local, como foi dito anteriormente.

A incorporação do tema no planejamento federal, estadual e municipal ainda é bastante incipiente, especialmente quanto à adaptação e, portanto, à segurança humana. Destaca-se, por exemplo, a histórica falta de atenção dada à criação de sistemas/planos emergenciais. Ao saber da probabilidade do aumento no número e intensidade de eventos extremos de precipitação e de seca por conta das mudanças climáticas, destaca-se a necessidade de uma reforma institucional que aborde o tema de maneira adequada. Além disso, é preciso refletir sobre os demais impactos socioambientais que podem ocorrer em território brasileiro e sua relação com a segurança humana, como inundações em áreas costeiras pela elevação do nível do mar, perda de biodiversidade e de produtividade agrícola, e aumento no número de doenças.

Sobre a migração, tema recorrente na relação entre mudanças climáticas e segurança, verifica-se que a preocupação centra-se na acentuação de vulnerabilidades socioambientais regionais e locais já existentes, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, cuja população pode sofrer com o aumento e intensidade de períodos de seca. Por outro lado, atualmente verificam-se grandes problemas em outras regiões em razão de eventos extremos de

precipitação e de seca no Sul e no Sudeste. Por sua vez, a questão de refugiados ambientais internacionais é pouco abordada, bem como a violência, em seus diferentes tipos.

Ainda que a abordagem da segurança frente às mudanças climáticas pelo governo brasileiro não seja tão explícita como a estadunidense, não se pode descartar o instrumental teórico realista para avaliar o posicionamento do país acerca da questão. Conforme abordado ao longo deste trabalho, o Brasil, assim como os demais agentes da ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas, pauta-se na defesa de sua soberania e território, pela proteção dos interesses nacionais. Busca garantir o chamado desenvolvimento sustentável, mas também a preservação de seus recursos naturais e o crescimento econômico. Entende-se que o fato de o Brasil não ter enfatizado a relação mudanças climáticas e impasses interestatais até o presente momento, ou seja, se pautado explicitamente no conceito clássico de segurança nacional estratégico-militar, se relaciona à posição de conforto relativo em que se encontra, em comparação com países altamente vulneráveis, e outros que já vivem situações críticas relacionadas a conflitos étnicos, xenofobia, escassez de recursos hídricos e de alimentos.

Enfatiza-se que as mudanças climáticas são tratadas como questão de sobrevivência em diversos países do mundo, como os países insulares e/ou menos desenvolvidos que, diante de sua grande vulnerabilidade socioambiental, abordam o tema como prioridade nacional. É fundamental avaliar se as mudanças climáticas são abordadas como a real ameaça ou se tal ameaça é atribuída às políticas que visam lidar com este desafio.

Concorda-se com Elliot (1998) na afirmação de que o discurso de segurança pautado no militarismo é inapropriado e antitético, por engendrar respostas políticas inadequadas para lidar com os impactos das “ameaças” ambientais, mesmo na perspectiva do conflito. Além disso, segundo a autora, o discurso e as instituições tradicionais de segurança se ancoram em um conjunto de práticas que, na realidade, contribuem para a continuidade da degradação ambiental. Ao fim, defende a adoção de abordagens não tradicionais que não procurem identificar o “inimigo” e que não vejam a questão da segurança apenas na perspectiva estatal, de conflito, de segurança militar e territorial.

Diante do exposto, define-se o conceito de segurança socioambiental internacional como a busca pela garantia da manutenção dos processos fundamentais à conservação ambiental e de todas as formas de vida, em especial a humana. Parte de uma governança multiescalar eficaz no trato dos problemas socioambientais globais, que tenha o Estado como um agente fundamental, mas representativo das demandas de uma sociedade que participa

ativa e democraticamente da tomada de decisões. Sob esta ótica, temas realistas sobre segurança e meio ambiente, como os ligados à migração e disputas, são abordados como reflexos das verdadeiras causas do problema, intrínsecas ao modelo de desenvolvimento, que precisam ser repensadas conjuntamente para que, de fato, se possa almejar um estado real de segurança (ainda que esta possibilidade seja bastante questionável no paradigma atual). Para tal, faz-se necessária uma transformação nas estruturas/instituições voltadas à questão da segurança, de maneira a evitar a militarização e promover a securitização, em favor da segurança humana, sem fronteiras.

Segundo Leff (2003, p.19), a problemática ambiental, mais que uma crise ecológica, envolve “... um questionamento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epistemologia com as quais a civilização ocidental compreendeu o ser, os entes e as coisas; da ciência e da razão tecnológica com as quais a natureza foi dominada e o mundo moderno modernizado”. Corrobora-se com o autor ao afirmar que tal crise é induzida pelas concepções metafísica, filosófica, ética, científica e tecnológica do mundo e, diante disso, a busca por soluções não pode se dar somente a partir da gestão racional da natureza e do risco, mas também do questionamento deste projeto epistemológico que:

[...] buscou a uniformidade e a homogeneidade; esse projeto que anuncia um futuro comum, negando o limite, o tempo, a história; a diferença, a diversidade, a outridade. A crise ambiental é um questionamento sobre a natureza da natureza e do ser no mundo, da linha do tempo e a entropia como leis da matéria e da vida [...] (LEFF, 2003, p.19-20).

Nos capítulos seguintes, é possível constatar que, ainda que a maior parte dos discursos nacionais na ordem ambiental internacional sobre mudanças climáticas exalte a valorização da segurança humana, na prática a perspectiva realista de segurança – em maior ou menor grau – tem prevalecido e influenciado sobremaneira as negociações multilaterais sobre o tema, em detrimento da securitização dos riscos. Tal abordagem não somente mostra- se insuficiente para enfrentar os imensos desafios apontados pela ciência, como também contribui para a ampliação da insegurança, haja vista que cada país busca garantir seus interesses nacionais frente a uma questão que inevitavelmente requer cooperação. Diante de tal contexto, a busca pela segurança socioambiental internacional mostra-se absolutamente necessária.