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2. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

2.1 CRISE AMBIENTAL, COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E

Entende-se que a interação entre Estados nunca foi tão intensa quanto no atual período. Santos (2008) o denomina “meio técnico-científico-informacional” que, segundo o autor, se diferencia de formas anteriores do meio geográfico (meio natural e meio técnico) pela lógica global que se impõe a todos os territórios e a cada território, pela existência de uma razão global e uma razão local que se superpõem em cada lugar e, dialeticamente, se associam e se contrariam, de modo que “... o lugar defronta o mundo, mas, também, o confronta graças à sua própria ordem” (SANTOS, 2008, p.332). Para o autor:

Ao longo da história, passamos de uma autonomia relativa entre subespaços a uma interdependência crescente; de uma interação local entre sociedade regional e natureza a uma espécie de socialização capitalista territorialmente ampliada; de circuitos com âmbito local apenas rompidos por alguns poucos produtos e pouquíssimos produtores, à existência predominante de circuitos mais amplos. O aprofundamento da divisão do trabalho impõe formas novas e mais elaboradas de cooperação e de controle, à escala do mundo, onde é central o papel dos sistemas de engenharia concebidos para assegurar uma maior fluidez dos fatores hegemônicos e uma maior regulação dos processos produtivos, por intermédio das finanças e da especulação (SANTOS, 2008, p.254-255).

A crescente internacionalização das relações de produção envolve o aumento dos fluxos de mercadorias, informações e pessoas. Também conduz à internacionalização dos problemas socioambientais, que se tornam cada vez mais complexos, à medida que os impactos associam-se a uma multiplicidade de fatores e agentes que extrapolam as fronteiras nacionais, como visto no capítulo anterior. As decisões, inevitavelmente, sofrem um deslocamento para além do nível nacional, e evidenciam a necessidade de regulação da ação humana na escala geográfica internacional.

A problemática das mudanças climáticas tem conduzido os Estados Nacionais a incorporá-la cada vez mais na agenda ambiental multilateral. Concorda-se com Caporaso (1992) ao destacar a importância da ação multilateral coordenada:

O mundo, estamos constantemente a dizer-nos, é cada vez mais elaborado em conjunto. [...] O que torna um problema internacional é que, muitas vezes, o mesmo não pode ser tratado de maneira eficaz dentro da arena nacional. Custos e benefícios extravasam para a arena externa. Estes efeitos externos são frequentemente tão grandes que os objetivos domésticos não podem ser realizados sem a ação multilateral coordenada (CAPORASO, 1992, p.599, tradução nossa)25.

25 Do original: The world, we constantly tell ourselves, is increasingly drawn together. […] What makes a problem international is that often it cannot be dealt with effectively within the national arena. Costs and benefits spill into the external arena. These external effects are frequently so great that domestic goals cannot be accomplished without coordinated multilateral action (CAPORASO, 1992, p.599).

É preciso ressaltar que as relações multilaterais foram definidas de maneiras distintas por diferentes autores. Keohane (1990, p.731, tradução nossa)26 define o conceito de multilateralismo como: “... a prática da coordenação de políticas nacionais em grupos de três ou mais Estados, através de acordos ad hoc ou por meio de instituições”. Para Ruggie (1992), o termo multilateral constitui um adjetivo que modifica o substantivo “instituição” a partir de uma dimensão qualitativa. Define multilateralismo como uma forma institucional que coordena as relações entre três ou mais Estados com base em princípios generalizados de conduta para uma classe de ações, sem considerar os interesses particulares das partes ou as exigências estratégicas que possam existir em uma situação específica.

Já para Caporaso (1992), o fato de o substantivo “multilateralismo” vir na forma de

um “ismo” expressa uma crença ou ideologia, e conforma um princípio organizador profundo

da vida internacional. Segundo ele, é caracterizado por três propriedades que devem ser tratadas como um conjunto coerente: a) a indivisibilidade, ou seja, o alcance (geográfico e funcional) sobre os custos e benefícios que são distribuídos no tocante a uma ação iniciada dentro ou entre as unidades que o compõem; b) princípios generalizados de conduta, que em geral referem-se às normas para relacionamento entre as partes, ao invés de diferenciar as relações caso a caso (preferências individuais, situacionais e particularistas); e, por fim, c) o princípio da reciprocidade difusa, que se refere ao ajuste para uma visão de longo prazo sobre benefícios que podem advir da resolução conjunta de muitos problemas (em vez de todo tempo uma questão específica).

Segundo este autor, é importante estabelecer as diferenças entre o termo “multilateral”, que pode se referir a um princípio organizacional, organização ou mesmo uma atividade simples que envolva a cooperação entre muitos países; e o termo “multilateralismo”, que envolve a ideologia de que as atividades devem ser pensadas de maneira universal, tanto no que tange à questão existencial quanto à normativa.

Cox (1992), por sua vez, distingue o multilateralismo econômico, que se refere à estrutura da economia mundial propícia à expansão do capital na escala geográfica mundial, e o multilateralismo político, que envolve os arranjos institucionalizados criados para a cooperação interestatal sobre problemas comuns. O autor ressalta que, para alguns, há compatibilidade (e mesmo identidade) entre os aspectos econômicos e sociais do multilateralismo, já que o multilateralismo político teria por objetivo principal a segurança e

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Do original: “... the practice of co-ordinating national policies in groups of three or more states, through ad

manutenção do multilateralismo econômico, ou seja, o crescimento da economia mundial capitalista. Por outro lado, outros entendem que existe uma contradição inerente a tais aspectos, de forma que o multilateralismo político buscaria, na verdade, corrigir as inequidades resultantes da economia mundial, a partir da criação de instituições multilaterais reguladoras.

Contudo, Cox (1992) afirma que a ideia simplista de uma ordem mundial formada por um sistema de Estados e uma economia capitalista mostra-se inadequada para englobar todas as forças que influenciam em mudanças estruturais na atualidade. Para ele, é preciso:

[...] incluir forças econômicas e sociais, mais ou menos institucionalizadas, que ultrapassam as fronteiras do Estado - as forças da produção internacional e finança global que operam com grande autonomia fora da regulação estatal, e outras forças envolvidas com a ecologia, paz, gênero, etnias, direitos humanos, a defesa dos despossuídos e do avanço das vantagens que também agem de forma independente dos Estados. Multilateralismo tem que ser considerado do ponto de vista de sua capacidade de representar as forças que operam no mundo, a nível local, bem como a nível global (COX, 1992, p.162-163, tradução nossa)27.

Para o autor, a problemática do multilateralismo envolve fatores como: tipos de entidades envolvidas nas relações multilaterais; tipo de sistemas que conectam tais entidades; condições específicas dos sistemas que dão significado contextual aos termos multilateral e multilateralismo; e o tipo de conhecimento apropriado ao entendimento do fenômeno do multilateralismo. Cox (1992) coloca que este conceito pode ser examinado a partir de dois pontos de vista: da institucionalização e regulação da ordem estabelecida, e como lócus da interação para a transformação da ordem existente, ainda que seja, na prática, ambos.

Neste trabalho, afirma-se que a análise do multilateralismo, em concordância com Cox (1992), deve abranger várias dimensões (política, econômica, social-cultural e ambiental) e considerar as relações estabelecidas em distintas escalas geográficas, por diferentes agentes. Corrobora-se com Caporaso (1992) ao destacar o caráter ideológico do conceito, que se aproxima da ideia de governança, ao mesmo tempo em que se mostra estratégico a partir dos interesses de tais agentes.

O multilateralismo também apresenta uma perspectiva construtivista/normativa, em virtude das práticas e normas criadas que ampliam a agenda internacional por meio de

27 Do original: […] include economic and social forces, more or less institutionalized, that cut across state

boundaries – forces of international production and global finance that operate with great autonomy outside of state regulation, and other forces concerned with ecology, peace, gender, ethnicities, human rights, the defense of the dispossessed and the advancement of the advantaged that also act independently of states. Multilateralism has to be considered from the standpoint of its ability to represent the forces at work in the world at the local level as well as at the global level (COX, 1992, p.162-163).

acordos sobre diferentes temas, como os relativos ao meio ambiente. Sob este olhar, as relações multilaterais que se afastam do aspecto normativo, ou seja, de regulações formais entre os agentes, são motivo de preocupação, por conta dos riscos e incertezas associados a decisões e ações não padronizadas.

Portanto, o multilateralismo é entendido como ideologia e estratégia, materializado em práticas e normas que abrangem distintos agentes sociais. Busca regular a ação humana, especialmente no tocante a assuntos cujas decisões necessariamente implicam no deslocamento do centro de decisão para além do nível nacional.

Este entendimento do conceito de multilateralismo mostra-se pertinente à análise das mudanças climáticas, haja vista sua complexidade. Primeiramente, do ponto de vista técnico, existem grandes disparidades entre os níveis de emissão de GEEs entre os países (históricas e socioespaciais). Além disso, a dinâmica da atmosfera não foi totalmente compreendida (tempo de vida dos gases na atmosfera, efeito dos aerossóis, dentre outros fatores). Do ponto de vista econômico e socioambiental, os impactos são diferenciados, levando alguns países a situações de maior vulnerabilidade, enquanto outros poucos podem beneficiar-se. Deste modo, em uma economia globalizada que produz poluentes que não podem ser controlados na esfera nacional, o diálogo multilateral é primordial. Em concordância com Powell (2003), as ações ou inações de cada parte, neste caso dos Estados nacionais, afetam o bem estar de todos os demais, de modo que nenhum deles pode enfrentar o problema de forma isolada. Por outro lado, ainda que o multilateralismo seja visto como fundamental, não necessariamente conduz a bons resultados, o que vai depender da forma como se realiza o processo, como se aborda ao longo de todo o trabalho.

Mesmo diante deste contexto difícil verifica-se, como nunca antes na história, o aumento da regulação das ações humanas na esfera internacional, no sentido de promover uma maior cooperação entre os Estados Nacionais sobre mudanças climáticas, a partir da criação de diferentes princípios e normas, bem como do estabelecimento de certas práticas, que, ao longo do tempo, contribuíram para a configuração de uma ordem internacional sobre o tema.