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A conformidade a fins da natureza: o novo para a manutenção do mesmo

CAPÍTULO I: O DEBATE ONTOLÓGICO-METAFÍSICO NA PASSAGEM DO SÉCULO XVIII PARA O

2. Kant como ponto de partida para a discussão Metafísica no final do século XVIII e início do século

2.6. A conformidade a fins da natureza: o novo para a manutenção do mesmo

Os juízos determinantes que Kant aponta nas suas duas primeiras Críticas já nascem em crise. O contexto de investigações estéticas e mesmo o universo de explicação causal da natureza já se encontram em tamanha desordem e dúvida que o estandarte de uma razão imperativa parece não corresponder às demandas explicativas dos fenômenos. Não obstante, ainda que em meio ao debate estético alemão e britânico, ainda que envolto nas reconsiderações teleológicas da natureza enquanto organismo, Kant fundamenta uma Crítica da Razão que, há esse tempo, pretende responder sistematicamente a toda dificuldade Metafísica da Filosofia. Não significa dizer que ele ignorava o problema posto por seu tempo, bem como as contradições fundamentais entre sua proposta e as considerações acerca do gosto e da natureza. Antes de mais, era preciso mostrar e demonstrar a centralidade da razão e dos juízos determinantes que se sobrepunham a toda consideração do mundo enquanto fenômeno. Com efeito, ainda que esta centralidade seja fundamental para a consolidação de uma nova ciência Metafísica, agora Crítica, resta que os problemas colocados pelo gosto e pela consideração de uma finalidade natural permaneciam insolúveis mediante esta ferramenta analítica. Kant adverte que: “Uma Crítica da razão pura, isto é, de nossa faculdade de julgar segundo princípios a priori, estaria incompleta se a faculdade do juízo, que por si enquanto faculdade de entendimento também a reivindica, não fosse tratada como uma de sua parte especial.” (KANT, 1995, p. 12). A Crítica da Faculdade de Julgar, a terceira Crítica kantiana, pretende, portanto, elucidar como, na forma de operar e produzir juízos se encontra a chave para a compreensão dessa aparente contradição da razão consigo mesma, ou seja, essa dificuldade de conformar um papel determinante da razão com uma aparente independência teleológica da natureza, ou ainda com uma diversificação não racional do gosto. Evocados a contento, os juízos reflexivos, ou reflexionantes, vêm justamente lançar luz sobre esta parte incompreendida da Crítica.

Para bem compreender o que são estes novos juízos reflexivos e qual o papel deles na sistematização do projeto Crítico, vale elucidar o que de fato se chama aqui de Faculdade de

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Julgar. O problema Metafísico todo consiste em conformar não contraditoriamente o incondicionado e o condicionado, quer dizer, o caráter determinante da razão com a esfera fenomênica, como vimos anteriormente. Ciente disso, Kant defende que a Faculdade de Julgar realiza essa passagem, ou seja, se apresenta como meio-termo entre a apetição da razão e a apresentação fenomênica.

(...) na família das faculdades de conhecimento superiores existe ainda um termo médio entre o entendimento e a razão. Este é a faculdade do juízo, da qual se tem razões para supor segundo a analogia, que também poderia precisamente conter em si a priori, se bem que não uma legislação própria, todavia um princípio próprio para procurar leis; em todo caso um princípio simplesmente subjetivo, o qual, mesmo que não lhe venha um campo de objetos como seu domínio, pode todavia possuir um território próprio e uma certa característica deste, para o que precisamente só este princípio poderia ser válido. (KANT, 1995, p. 21)

Kant está demonstrando, nesse momento da Crítica, que a faculdade de julgar funciona como o termo médio entre a esfera de um conhecimento fornecido pelo entendimento e a ação livre fornecida pela razão. A faculdade de juízo, por estar entre entendimento e razão, e não se ocupar nem com a simples intuição dos objetos, nem exclusivamente das apetições do incondicionado, julga de uma maneira diferente das até então estabelecidas; não por uma legislação independente e própria, mas por uma forma diferente de “procurar leis”. Significa isso que na faculdade de julgar não partimos de uma legislação determinante, seja pelo a priori da razão, como no caso dos juízos determinantes morais, seja pelo a priori do entendimento, como nas leis determinantes no mundo dos fenômenos. A faculdade de julgar, ao invés de legislar e atribuir um juízo determinante, procura leis que reflitam seu meio-termo entre entendimento e razão; desse modo é que seus juízos são juízos reflexivos, quer dizer, juízos que partem do particular na procura de uma lei invariável e não simplesmente na sua imposição por um a priori. Chamam-se juízos reflexivos justamente por serem dados a partir do particular e seu desdobramento, constituindo um meio termo entre entendimento, o particular concebido e sob o qual se reflete, e razão, o universal para o qual tende o juízo. Os juízos reflexivos são, assim, aqueles que não se dão por um a priori do sujeito transcendental e nem pelo objeto nele mesmo, mas pela faculdade de fornecer a si mesmo, por seu modo de operar como meio termo, princípios legislativos (por isso se pode falar em uma lei do gosto ou da teleologia da natureza) válidos, ainda que não determinantes. Estes juízos reflexivos podem então ser estéticos ou teleológicos.

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Trataremos apropriadamente dos juízos estéticos e recuperaremos os teleológicos no capítulo seguinte, quando problematizarmos o debate estético e do organismo na passagem do século XVIII para o século XIX. Interessa agora compreender de que maneira as contradições fundamentais da Crítica podem ser resolvidas pela consideração reflexiva dos juízos, apresentando a conformação a fins de seu modo de operar como a grande fonte da confusa concepção de fim independente da natureza, ou seja, de um fim independente da razão.

A regra geral de aplicação dos juízos reflexivos teleológicos na natureza está expressa na compreensão de Kant da finalidade, chamada então de conformidade a fins. Essa conformidade a fins é definida como o fundamento de um objeto, a composição de uma forma no reino dos fins. A faculdade de julgar seria responsável pela conformação a fins na natureza, mas não como fazem as leis causais e mecânicas na esfera dos fenômenos, e sim por tomar as coisas da natureza enquanto formas a partir dos juízos reflexivos, que então compõem a regra de ordenação a fins na multiplicidade de formas naturais.

Porque o conceito de um objeto, na medida em que ele ao mesmo tempo contém o fundamento da efetividade deste objeto, chama-se fim, e o acordo de uma coisa com aquela constituição das coisas que somente é possível segundo fins se chama conformidade a fins da forma dessa coisa, o princípio da faculdade de juízo é então, no que respeita à forma das coisas da natureza sob leis empíricas em geral, a conformidade a fins da natureza na sua multiplicidade. O que quer dizer que a natureza é representada por este conceito, como se um entendimento contivesse o fundamento da unidade do múltiplo das suas leis empíricas. (KANT, 19995, p. 24-25)

O conteúdo fenomênico, tomado sempre pela faculdade de entendimento, oferece na apresentação das formas empíricas tanto as categorias gerais oferecidas pelo entendimento quanto a forma de operar dos juízos reflexivos, tomando cada particular e recompondo-o na consagração de um universal, que nesse caso seria o fim ou o fundamento da multiplicidade das formas fenomênicas. É como se todas as formas estivessem dispostas e ordenadas segundo a fins, de maneira independente da razão, só que, em verdade, trata-se do mecanismo e do modo de operar da faculdade de julgar diante dos pressupostos a priori do entendimento, ou seja, diante do conteúdo fenomênico em sua multiplicidade e variedade. Segundo o próprio Kant (1995): “A conformidade a fins da natureza é por isso um particular conceito a priori, que tem sua origem meramente na faculdade de juízo reflexiva.” (p. 25).

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Kant considera que a multiplicidade empírica não oferece todas as formas de conexão ou a unidade efetiva da coisa-em-si, mas que se apresenta sempre pelos limites do entendimento, de modo que a visão de uma unidade da natureza como suscitada pela conformidade a fins é um conceito transcendental promovido pela faculdade de julgar. Ele explica oportunamente sobre o tema, que só nos são oferecidas as formas de ligação empírica e a própria empiria pelos limites do entendimento e pelas formas que se associam a este, de modo que aquilo que não é considerado por esta faculdade é tomado de maneira contingente, não nos oferecendo, portanto, nenhuma regulação para o múltiplo empírico sob um fundamento ou finalidade.

Temos que pensar na natureza uma possibilidade de uma multiplicidade sem fim de leis empíricas, em relação às suas leis simplesmente empíricas, leis que, no entanto, são contingentes para a nossa compreensão não podem ser conhecidas a priori. E quando as tomamos em consideração, ajuizamos a unidade da natureza segundo leis empíricas e a possibilidade de uma unidade da experiência (como de um sistema segundo leis empíricas) enquanto contingentes. (KANT, 1995, p. 27)

É por isso que Kant considerará a conformidade a fins da natureza em sua multiplicidade como um conceito transcendental promovido pela faculdade de julgar, haja vista que transcende as ligações essenciais do entendimento que compõem a unidade empírica, fenomênica, considerando o que para esta faculdade é contingente, bem seja, o fundamento ou unidade dessa natureza. A faculdade de julgar, desse modo, apresenta essa multiplicidade sob a forma de conformação a fins, remontando do particular e suas ligações contingentes promovidas pelo entendimento a unidade da natureza sob a forma de finalidade mediante a maneira de operar da faculdade de julgamento. O conceito transcendental de conformidade a fins da natureza se dá, portanto, pela ligação do entendimento com a faculdade de julgar, apresentando pela medida reflexiva dos juízos as ligações contingentes da natureza sob uma perspectiva temporal oferecida pelo entendimento; daí a finalidade.

Os juízos reflexivos teleológicos aparecem, portanto, como meio-termo, não sendo, no caso da natureza, nem um conceito do entendimento, ou seja, das leis a priori do campo fenomênico que derivam do sujeito transcendental, e nem uma atividade livre, já que não diz respeito ao incondicionado da razão e tampouco a uma natureza tomada como coisa-em-si e portadora de um telos incondicionado próprio. A teleologia da natureza é, nessa visão, a transposição dos princípios oferecidos pela faculdade de julgar, os juízos reflexivos, para a

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compreensão do fundamento da natureza que não se oferece às leis gerais do entendimento, mas que é evocada pela multiplicidade das leis e sua conexão numa visão sistemática, daí derivando, numa visão temporal, o princípio subjetivo de uma finalidade do mundo natural.

Este conceito transcendental de uma conformidade a fins da natureza não é nem um conceito de natureza, nem de liberdade, porque não acrescenta nada ao objeto (da natureza), mas representa somente a única forma segundo a qual nós temos que proceder na reflexão sobre os objetos da natureza como objetivo de uma experiência exaustivamente interconectada, por conseguinte, é um princípio subjetivo (máxima) da faculdade de juízo. (KANT, 1995, p. 28)

Embora não se fale aqui de um transcendental do entendimento na conformação a fins da natureza, trata-se de um transcendental fornecido não pelas leis instituídas pela faculdade de julgar e sim por seu modo de operar a priori; nesse caso, dado pelo funcionamento reflexivo que oferece finalidade e aparente autonomia à natureza tomada em sua multiplicidade e sob o pressuposto de um fundamento ou unidade. Como nos fala Kant (1995): “... a faculdade de juízo, da qual se tem razões para supor segundo a analogia, que também poderia precisamente conter em si a priori, se bem que não uma legislação própria, todavia um princípio próprio para procurar leis...” (p. 21). É nesse aspecto subjetivo fornecido pela atividade reflexiva da faculdade de julgar que se pode pensar uma finalidade, um telos, para o conjunto da natureza.

Por isso a faculdade do juízo possui um princípio a priori para a possibilidade da natureza, mas só do ponto de vista de uma consideração subjetiva de si própria, pela qual ela prescreve uma lei, não à natureza (como autonomia), mas sim a si própria (como heautonomia) para a reflexão sobre aquela, lei que se poderia chamar da especificação da natureza, a respeito das suas leis empíricas e que aquela faculdade não conhece nela a priori mas que admite em favor de uma ordem daquelas leis, suscetível de ser conhecida pelo nosso entendimento, na divisão que ela faz de suas leis universais, no caso de pretender subordinar-lhes uma multiplicidade de leis particulares. (KANT, 1995, p. 29-30)

Essa conformação a fins da natureza é, assim, uma forma de transposição do modus

operandis da faculdade de julgamento para uma concepção sistemática da natureza na ligação da

multiplicidade de leis empíricas promovidas pelo entendimento. Embora não seja aqui um a

priori transcendental determinante que interfira na ordenação da natureza e na apresentação de

uma finalidade, tem-se, em contrapartida, uma transposição da maneira de operar da faculdade de julgamento para a natureza fenomênica. O a priori é assim a forma invariável de proceder por

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parte da faculdade de julgar, não um princípio determinante da razão, como a lei moral, e, tampouco, um esquematismo transcendental dos juízos determinantes às categorias do entendimento, como a lei causal.

Importante, essa formulação de Kant pretende mantida toda a proposta Metafísica erigida com as duas primeiras Críticas, ao tempo que torna possível explicar como se apresenta nos fenômenos um particular tal que se dá como auto-organização e como portando em si uma finalidade independente da razão incondicionada. Todo o caldo de demandas contemporâneas que impunham uma necessária explicação dos fenômenos orgânicos é aqui respondido pela introdução dos juízos reflexivos e pela maneira singular de proceder aqui por parte da faculdade de julgar. Não se trata efetivamente de uma autodeterminação da natureza, mas, mantida a formulação geral do mundo como representação, como fenômeno, se assegura que a manifestação e apresentação do organismo é tão somente a transposição para a natureza de um desdobramento reflexivo levado a cabo pela faculdade de julgar, ao tempo que a natureza se mantém aqui ainda submetida às intuições de espaço e tempo e ligada às categorias do entendimento. Assim é que uma atividade reflexiva aparece como finalidade independente, posto que as intuições de espaço e tempo não são dirimidas e, tampouco, a maneira como consideramos o mundo a partir do entendimento, mas, em conformação com isso tudo, dá-se na composição e consideração sistemática exigida pela forma uma medida reflexiva mediante a faculdade de julgar. Astuto, Kant resolve assim a necessidade contemporânea de se pensar o organismo sem, no entanto, abrir mão de toda a filosofia Crítica que havia proposto.

Temos disso que, em termos metafísicos, nunca se tratou em Kant de uma natureza independente, considerada como coisa-em-si ou portadora de um fim autônomo da razão, mas pura e simplesmente da manifestação do modo de operar da faculdade de julgar nesse domínio da representação empírica (natureza fenomênica). Nada muda em termos de explicação Metafísica e o que vale são ainda as considerações das suas duas primeiras Críticas.

Há, entretanto, uma questão que ainda permanece problemática na sua composição Metafísica e na exposição dela como ciência fundamental. Trata-se da ruptura provocada entre sujeito e objeto. Esse ponto em específico parece não ter sido remediado satisfatoriamente pela

Crítica da Faculdade de Julgar, uma vez que a apresentação dessa faculdade como meio termo

entre razão e entendimento explica uma forma diferente de relação entre sujeito e objeto, mas mantém inexplicável como pode o incondicionado atuar na esfera das condições, posto que é

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distinto desta. Esse será, em verdade, o ponto de partida da crítica fichtiana ao sistema filosófico de Kant e, assim, de toda sua Metafísica. De todo modo, tudo o que seguirá em termos de discussão Metafísica dirá, direta ou indiretamente, respeito à exposição desse gigantesco filósofo. O desafio de inaugurar uma nova Metafísica e instaurar um idealismo transcendental crítico não abandonarão os propósitos exprimidos em toda formulação sistemática ulterior. Propriamente aqui começa filosoficamente o idealismo alemão de início do século XIX; o mais elevado período sistemático-filosófico produzido pela humanidade.